LIMA Luiz Costa. Mimesis e Verossimilhanca

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Capitulo 1 Mimesis e verossimilhanga mimesis antiga ‘Assim como tivera em Platao seu adversario de respeito, a mimesis antiga em Aristételes seu grande sistematizador. Assim dizemos levando em 4 razo pela qual 0 autor dos Dialogos a hostilizava e a que assistia Aristoteles \ aceitacio. Conforme assinala Paul Woodruf em magnifico ensaio, Platao duas justificativas, uma pedagégica, outra ético-epistemolégica, para sua . Como textos poéticos, a exemplo dos homéricos, constituiam a base da fio grega, ao filésofo repugnava pensar que os estudantes “se tornassem eadores” (deceivers) e que algum deles fosse logrado pela pretensio de cimento, “quer por parte dos poetas, quer pelos poetas em nome de seus jonagens” (WOODRUFF, P:: 1992, 82). Ja a postura de Aristételes supunha um einio mais intrincado: Aparentemente, devemos crer ao mesmo tempo que um mal esta sucedendo © que nao esta. O poeta deve nos fazer reagir a eventos representados no palco como se estivessem de fato sucedendo, de modo a provocar terror € piedade e como se nao estivessem, de modo a provocar antes prazer do que dor. (WOODRUFF, P.: 1992, 86). ‘Assim, “de acordo com a Retérica, para sentirmos piedade ou terror, devemos impressao de que sucede uma acao que é dolorosa ou destrutiva; mas, no palco co, de fato, nada é destruido” (WOODRUFF, P.: 1992, 85). A mimesis era entao tada A medida que supunha, por parte do receptor, a experiéncia de um equivoco um isso ¢ aquilo) profundo. Seu produto, o mimema, provoca dor e prazer. A dor piedade e do terror pelos sofrimentos do protagonista; o prazer (catartico) por yer sentir uma dor que, no plano da realidade, inexistia. O que esta em pauta é a rejeicao ou a aceitacao de um modo capital na forma le © homem responder ao mundo. A mimesis aristotélica ensina algo que a ciéncia los primeiros principios, a obra em que ele mais se empenharia, nao se permitia ensinar: que é preciso aprender a viver sobre dupla via ¢ nao sobre a via tinica | tin verdade alcancada pelo pensamento. Intufa o filésofo que a vida nao cabe em ‘im caminho contemplativo, intelectual, em que a aprendizagem adequada nao se yostringe a principios eticamente corretos e cognoscitivamente competentes? E isso ee a jue é ela i i ae ee algo i si mesmo a tal ponto intrincado que € necessario Preparar. aprendizagem do sentir que, i 3 par y , cumprindo-se pela interior artificio préprio ao texto teatral, justifica 0 “engano” do eae oe A verdad i i ; es le de Pois uma dupla entrada: a classicamente filoséfica e a do “ Poético, Mas por queasegundaseria hecessaria? Uma boa respostaé sugerid ida ainda que orci, dos padroes encontrados na experiéncia” (REDFIELD, J. M.: sae ‘0, 0 mimema ensina. Se 0 mimema é incapaz de oferecer u ‘cao abrangente do mundo, se o poeta que descreve uma batalha nao é, or i oo em troca oferece © acesso a compreensao intuitiva dos i ficpb une ee a iAxiststeles de algum modo antecipasse o divers: habilitar o cidadao para oenredado da vida ProPunba meta bem em a — nem uma dupla justificacao: (a) de algum modo, serve para ieacdgae “ requente entre os comentadores do fildsofo: de que em ean fess Poctica, chegou a explicar o que entendia por mimesis: robataaal ae Reresse que se estendera por todo o livro ultrapasse 0 motivo Cone Ane : ea Procurar ver na mimesis a raiz da arte. Se a primeira hateatindiaty Pape’ contingente, a segunda, em troca, sera bisica. Ao ousarmos ‘mesis € reprop6-la como dotada de uma relacdo originaria com a arte, Por sua iti Gn a de entrada na Poética, a primeira passagem haverd de ser: “Ld ucrencia dos outros animais porque é particularmente inclinado 4 ‘imitar” (Poét., 48 b 9). A mimesis : - E receby i tala de bcio, menos uma definicao do que encerra um humana - fo: ; Sa hysis Te cla determinada por instintos, teria limites de interesses e alee assim inclusive ainda nao equivale a declarar em que consiste : —__ uso extenso do f problema para o dates : bree es £21 ti testrito, proprio & autonomizacao da arte,cria um 5 (cf. 4 Fragmentos, WV, i : e ‘ , IN). a mbora nos bast 4 endo por’ vemos na traducao de Dupont-Roc e Lallot, preferimos traduzir mimeisthai por “imi }epresentar” porque a solucio provocaria outros equivocos ‘ete! por “ita ee pil 10-1 | MIMESIS E VEROSSIMILHANCA oculta. A Um comentirio filolégico ajuda a ver a complexidade que al propdsito de 47 a 18s, Dupont-Roc e Lallot acentuam que mimeisthai é precisado pelo participio apeikazontes, cujo verbo apeikazein tem o sentido de “formar uma em”. Tal uso, ja atestado em Platao, mantinha “um traco comum aos verbos de imitacdo entre os dois autores: a ambivaléncia de base do acusativo de objeto”. Acrescentam entao os fildlogos: ao passo que a traducao tradicional, “imitar’, “seleciona abusivamente a interpretacao do acusativo como o do modelo’, a Pussagem em causa - “‘imitar’ em imagens uma quantidade de objetos” - mantém- @ ambigua “acerca do estatuto dos ‘objetos” (DUPONT-ROC, R. e LALLOT, J.: 980, 45). Assim nao se assegura se mimeisthai, 0 cognato verbal de mimesis, implica que a imagem produzida é uma cépia (imitagao) ou apenas leva em conta o modelo. A dhivida, entretanto, é indiretamente dirimida ao notarem os autores que s6 em duas oportunidades (54 b 9 ¢ 59 a 12) 0 verbo mimeisthai tem o sentido inequivoco de “seguir um modelo” (DUPONT-ROC, R. e LALLOT, J.: 1980, 266), i.e., de ser uma eOpia reprodutora. Embora o esclarecimento ainda nao ofereca a firmeza desejavel, é bastante para compreender-se que nao vigora na Poética a subordinagao platonica do mimema ao eidos (“aspecto/forma essencial”), enquanto este, em Platao, é separavel dos individuos que dele participam. Mas nao deve ser menos ressaltado que, nos dois fildsofos, a mimesis supde um ato de adequacao ou correspondéncia entre a imagem produzida e algo anterior - em Platao, anterior e superior - que a guia. Ao lado deste lastro comum, é certo entender que a mimesis aristotélica adquire uum acentuado grau de liberdade quanto a este algo anterior, seja por seu proprio ato de feitura, seja pelo efeito que causa. E isso que aponta na segunda passagem ressaltada: “Temos prazer em olhar as imagens mais cuidadas das coisas cuja visto nos é dolorosa na realidade, por exemplo as formas de animais perfeitamente igndbeis ou de cadaveres” (Poét., 48 b 9-12). Sobre ela, comentam os fildlogos: ‘Toda obra mimética, mesmo executada com um extremo cuidado de exatidao (malista ékribomenas), € uma transposicao que capta uma forma (morphas; in morphén), cf. cap. 15, 54 b 10: os pintores devolvem a “forma prépria’, dissociando-a da matéria & qual est associada na natureza, (DUPONT- ROC, R. e LALLOT, J.: 1980, 164). E verdade que um pouco acima os autores advertem contra a tentacao de ali ver “o esboco de uma estética do sublime”, pois a perspectiva aristotélica nao era propriamente estética (DUPONT-ROG, R. e LALLOT, J.: 1980, 164). Isso contudo nao nos impede de notar a nitida diferenciacao da mimesis artistica: ela sobretudo nao se confunde com a reproducao de um pré-dado senao que, pelas operacdes légicas que estabelece, provoca um efeito diferenciado no receptor. (Sem se ressaltar esse efeito diferencial, ruiria toda a reflexao feita acima). Sem que tomasse a mimesis = Se ee ae Oe TD como sinénimo da arte, ja para Aristételes nao é idéntica a resposta do receptor diante de uma cena da natureza ou diante de um quadro. E 0 fato mesmo de que os Bregos nao concebessem uma autonomia do artistico acentua o traco diferencial da passagem. Por ela se entende que ser a mimesis geral aos homens nao basta paraa apreciacao da producao especifica da arte. Isso Posto, dois ultimos destaques hao de ser feitos: concernem eles a relevancia da metifora e ao papel da verossimilhanca, A propésito de 59 a 4-14, onde a Poética ressalta a propriedade dos recursos Para 0 verso e, mais especificamente, de 59 a 6-8, em que a metafora é exaltada - fazer uma metafora “é signo de uma natureza bem dotada. Bem fazer metaforas é ver o semelhante” ~, Dupont-Roc e Lallot observam: LJ Entre as espécies do nome, a metafora é aquela que se apresenta mais nitidamente como uma producao mimeética. A diferenca do nome corrente, que, de algum modo, denota diretamente a coisa ¢ das outras espécies de nomes nao habituais (xenika), de que s6 0 significante é estranho, a metafora pode-se descrever como um processo de transformacao do sentido que seria, dentro da linguagem, 0 analogon do movimento de mimesis, que transforma uma acao humana em histéria, mythos. (DUPONT-ROC, R. e LALLOT, J.: 1980, 367). A anotacao impoe dois comentarios: (a) a exaltacao da metafora por provocar quese veja osemelhante (homoios) reiteraquea mimesis naose configura comorepeticao ou imitacao de um pré-dado (para maiores informacdes sobre o condicionamento cultural dentro do qual o juizo aristotélico se conforma, cf. IV, 4); que a semelhanca alcangada € efeito de uma intervencao sobre a imagem verbal. Em consequéncia, a imagem (eikon) jé nao cabe a caracterizacao que Ihe dava O Sofista: “Ela nao é de modo algum verdadeira mas semelhante” (Sof. 240 a-b), onde, como vira Vernant, cikon habita “entre o ser e o nao-ser, entre o verdadeiro e © falso”, constituindo “o espaco do ficticio e do ilusério VERNANT, J. P.: 1975, 111). Em Aristételes, do salto metaférico — que se ha de entender no sentido amplo do termo e nao dentro dos limites da definicao retérica -, a imagem abre outra cena para a verdade; & sua colaboradora e nao sua mera sombra; (b) desta maneira ou se leva em conta a dupla entrada que o intrincado da vida exige, conforme se apontava no inicio deste item, ou se considera que o tratamento da imagem é uma via particular e especifica para @alcance da verdade do um, do Ser, objeto primeiro da ciéncia primeira, do que se chamara Metafisica, Mas a articulacao da Poética com 0 livro dos Principios nos faz também entender os limites que, no sistema aristotélico, cercam a metafora e toda a mimesis. O fil6sofo nao s6 as exalta como restringe seu uso. através A metafora é possibilitada Por um jogo de analogia entre o sentido comum de um termo eo salto que executa © agente bem dotado. Essa analogia Supe que o salto metaférico, desfazendo-se da aparéncia habitual de um objeto ou fenémeno, o aproxima de sua esséncia (ousia). ee! 04 movimentos contrarios de dignificacao e rest Cariruio 1 |) MIMESIS & VEROSSIMILHANCA 3 ‘Opa, 0 ousia é tao s6 a “primeira forma de que se reveste” (AUBENQUE, P.: 1962, Le (Ser, sendo-lhe impossivel confundir-se com este, sobretudo se se houver preferido ‘expo-lo sob o principio da analogi .] Se o ser enquanto ser todavia conserva ima certa unidade de significagao, nenhuma analogia permitira dela dar conta” (AUBENQUE, P: 1962, 203). Ou seja, a metafora, porque depende da analogia, nao é ‘propriada para a compreensao da esséncia de algo. —_ / Evidentemente, pois, no realce da metafora (e da mimesis) estao compreendidos ‘ao. Eles se integram na theoria Aristotélica, Em formulacao mais direta: digna por si, supondo a frequentacdo do caminho da analogia, a metéfora seria inadequada para a apreensio da unidade imeira do Ser, ambicao maxima da Metafisica. ; Se bem que, para Aubenque, essa demanda nao é, na Metafisica, coroada de Oxito - “a unidade das significacdes multiplas do ser [é] uma unidade ela mesma equivoca e cujo sentido sera sempre de se ‘buscar” (AUBENQUE, P.: 1962, 249) -, no seria menos verdade que, de um estrito ponto de vista aristotélico, tal unidade dlependia do emprego de uma logica, a falarmos com Castoriadis, “identitaria’, que ‘Nunea se satisfaz com 0 analdgico. Por isso, em suma, a Poética tinha por objeto um fendmeno subordinado, que terminava por remeter a uma ciéncia primeira, ainda que os resultados finais desta supusessem um constante “work in Progress’ Cotejando esse resultado com 0 elogio a Aristételes com que een item, deparamo-nos com 0 limite a que Aristoteles estava submetido. Antes pois de tematizarmos 0 limite interno de sua concepcao da mimesis, ja temos presente sus fronteira externa: a mimesis é valida quanto a certo fendmeno Particular, passivel de ser encenado, mas nao cabe para a explicagao propriamente filoséfica do mundo. A filosofia amplia seu raio de acao até ela, mas nao a incorpors a seu fazer proprio. Embora o pensamento ocidental deva ser sempre grato aquele que soube destacar 4 mimesis, dar-lhe a dignidade que muitos séculos depois levaria & autonomizacao da arte, ha de se considerar que, em Aristoteles, ndo ha nenhum gesto que faca o pensamento como tal identificar-se com a mimesis. / hh A conclusao a que chegamos é entretanto demasiado abrupta. Para melhor justifica-la, precisamos detalhar melhor a questao da metafora, em wae Dizia-se hé pouco que a imagem abre outra cena para a verdade. A metifora ¢ entao colaboradora da verdade. Qual o grau entretanto dessa colaboragao? Duas Em certos casos, nado ha nome existente para designar um dos termos da analogia, mas nao se exprimira menos metaforicamente a cD, Por exemplo, lancar 0 grao é semear, mas para a luz que vem do sol nao hé nome; entretanto essa acao é para o sol o que semear é para 0 grao, de modo que se pode dizer: semeando a luz divina, (Poét., 57 b 25-30). MIMESIS: DESAFIO AO PENSAMENTO Correlacione-se a essa passagem a que aparece no tratado sobre a retérica: [..] E preciso nao tirar as metaforas de longe, mas sim de objetos pertencentes a um género préximo ou a uma espécie semelhante, de modo que se dé um nome ao que nao o tinha até entio ¢ que se veja com clareza que o que designado pertence ao mesmo género. (Ret., III, 2, 12). Ambas as passagens apontam para a inexisténcia de um nome que pudesse ser escolhido de acordo com o mecanismo da analogia. A falta do nome, que analogicamente seria apropriado, exige o estabelecimento de um nome inexistente (anonymon, Poét., 57 b 28). A falta pois concerne ao universo do léxico. E valido entao se perguntar: tal lugar vazio, a ser ocupado pela metafora-catacrese, diria também respeito a physis? Por sua concepcao substancialista, Aristoteles é levado a manter a catacrese subordinada a analogia. Por si, o mundo estaria pleno. Dai a restricao de sua propria concep¢ao de mimesis (cf. ainda 4 Fragmentos, IV, b). O tratamento de cada um dos destaques torna o seguinte mais econdmico. E 0 que agora se da na indagacao do papel da verossimilhanca. Duas passagens sio a propésito imprescindiveis. Na primeira, tratando da extensao que a peca tragica deve ter, escreve o tratadista que a adequada sera aquela que permita a reviravolta (metabasis) do estado de felicidade ou de infelicidade do protagonista, “segundo © verossimil ou o necessirio” (51 a 12). A segunda se lé como um esclarecimento suplementar de eikos (verossimil): “[...] E verossimil que muitas coisas se produzam também contra 0 verossimil” (56 a 24). Relacionando 51 a 12 com 50 b 30 - um fimé 0 que sucede “em virtude seja da necessidade, seja da probabilidade” - Dupont-Roc e Lallot definem 0 verossimil como “uma forma atenuada da necessidade (ananké), sob 0 Angulo subjetivo da expectativa” (DUPONT-ROG, R. e LALLOT, J.: 1980, 212). O verossimil pois aponta para a importancia do receptor, enquanto este re-conhece a dinamica do efeito, e, ao mesmo tempo, aponta para o carater antes tortuoso do que reto do acesso a ousia (cf. 56 a 24). Os dois motivos tornam 0 verossimil decisivo. Enquanto sujeita a uma expectativa interna, a mimesis aristotélica nao poderia ser normativa, pois, embora eleja e aconselhe topoi, ao tomar o terror e a piedade como partes indispensaveis do efeito tragico, implicitamente descarta a eficiéncia de uma formula para alcanca-los; ser tortuosa a sua estrada significa que tanto 0 artista como o receptor hao de ser inventivos. Ora, pelo menos desde © Renascimento, a mimesis, entendida como imitatio, tornou-se explicitamente normativa. Cabe perguntar se para isso nao contribuiu decisivamente a distorcao a que foi submetido o papel da verossimilhanga. E o que parece indicar a metamorfose que 51a 12 sofre nas maos de Robortello. No inicio de seu In librum Aristotelis de arte poetica explicationes, escrevia 0 comentarista: A tarefa propria do discurso é proferir aquilo que é verdade, pois ele nao pode determinar senao sua relacdo com a verdade (Orationis maximé proprium e& Caprruio 1 | MIMESIS E VEROSSIMILHANCA 35 genuinum munus est, proferre id, quod verum est, & quia aliter sese habere non potest, necessarium). (ROBORTELLO, F.: 1548, 1). Ananké, sob a voz do necessarium, agora cobre toda a area que, no tratado aristotélico explicado por Robortello, antes dividia suas tarefas com eikos. O Aristoteles redescoberto na abertura dos tempos modernos vinha pois revestido de uma légica bastante dura e univoca, contraria a dupla entrada a que nos referimos no inicio. Talvez o cristianismo, com a conversaio do ser uno problematico na \unidade postulada de Deus, tenha contribuido para a severa rigidez com que © filésofo passava a ser lido. Como a concepcao de um Deus tinico, onipotente e Mmagnanimo seria conciliavel com a legitimacao de um sistema filoséfico que acatava a validade do engano, a suspensao proviséria da verdade como maneira de emocionalmente experimenta-la? A relativa proximidade que a Poética ainda mantinha com um Gorgias agora desaparece por completo. Ao ser redescoberta, nenhum vestigio restara na Poética do argumento do sofista. E uma peca como o seu “Blogio de Helena” nao poderia ser considerada senao como um... sofisma. Acentue-se um tltimo traco, se bem que aqui tenha pequena utilidade: em 48 a1, acaracterizacao da mimesis é restringida a “personagens em acao”. Assim parece explicavel que a Poética se contente em analisar géneros propriamente narrativos ¢ exclua a lirica. Como nesta a narrativa pouco ou nada importa, é coerente que 0 tratado aristotélico a ela nao se refira. Embora a delimitacao entao estabelecida torne embaracosa (ou impossivel) a aplicacao da letra do tratado além dos géneros que privilegiam a acao, nao é isso que mais estreita a Poética sendo que sua dependéncia das categorias trabalhadas na Metafisica. Contentemo-nos com uma brevissima explicagao. Em duas passagens, a Metafisica assinala o papel da indagacao da esséncia na definicao do Ser; [..] Do fato de que em “um homem” nada mais é predicado do que no “homem’, assim também o ser nada é & parte da esséncia ou da qualidade ou da quantidade; e ser um é ser uma coisa particular. (Met., X, 2, 1054 a 16-18). A ciéncia lida sobretudo com o que é primeiro e de que todas as outras coisas dependem e por meio de que so nomeadas. Se isso entao é a esséncia, é das ios ¢ as causas. (Met., IV, 2, esséncias que o fildsofo devera captar os princi 1003 b 16 ss). ‘Tais passagens parecem corroborar a interpretacao tradicional da Metafisica, ie, ser o tratado em que os primeiros principios alcancam sua plenitude, ultrapassando qualquer resultado problematico, Elas sé recuperam a nuanca imprescindivel quanto cotejadas com passagem posterior: 36 Se nenhum universal pode ser uma esséncia, |...], e se proprio ser nao pode ser uma substancia no sentido do um separado do muito (pois € comum a muitos), mas é apenas um predicado, claramente 0 um nao pode ser uma esséncia; pois 0 ser eo um sao 0 mais universal de todos os predicados. (Met., X, 2, 1053 b 16-21). A razao inclina-se pois para o comentario de Pierre Aubenque: A esséncia é bem apresentada por ele como fundamento (arkhé) das outras categorias, mas desde que se procura tomar ao pé da letra essa declaracao e se tenta efetivamente fundar as outras categorias pela esséncia, chega-se a uma pluralidade irredutivel de respostas: ha para a esséncia tantos modos de fundar quanto ha categoria, de maneira que a pluralidade irredutivel das categorias se reencontra, em um nivel ainda mais fundamental, na ambiguidade do papel fundador da esséncia. (AUBENQUE, P.: 1962, 247). Nao é acidental que essa problematizacao seja recentemente retomada. E mesmo que ela seja correta, i.e., que Aristoteles nao creia ter chegado ao fundamento ultimo buscado, nao altera, no corpus aristotélico, a subordinacao da indagacao da mimesis quanto ao papel da esséncia. Dito mais precisamente: conquanto a “platonizacao de Aristételes” tenha classicamente simplificado a fecundidade da Metafisica e emprestado a seus resultados uma certeza que se revela falsa, nao é menos verdade que a concepgao classica da mimesis era restringida, pelo viés essencialista que a atravessava, Esse viés a tornava prisioneira dos quadros da physis. i.e., se a imagem perdia a conotacao platonica de aparéncia enganosa, seu resgate se prendia a exploracao que cumpriria da poténcia (energeia) inerente a aparéncia atualizada (ergon). Ou seja, como o mimema nao € cépia, sua atualizagdo da aparéncia a conforma ao que esta atrds de ergon, i.e., 4 sua poténcia. Portanto, se Aubenque tem razao em acentuar que a mimesis aristotélica nao imita a natureza (cf. AUBENQUE, P.: 1962, 498), nao é menos correto que o filésofo a encerrava no interior do trabalho de categorias com que pensava a natureza, em geral. Em termos kantianos, poder-se-ia dizer que Aristoteles mantinha a mimesis nas proximidades do juizo determinante, sem que essa proximidade constituisse algum outro modo de juizo. Sua posicao, em suma, era ambigua. Se, por um lado, sua admissao supunha a dupla entrada a que nos temos referido, por outro, a feitura do “engano”, i.e., 0 mimema era explicado por uma potencialidade interna da physis, que admitia a geracao de um objeto, uma obra plastica ou teatral, diferente do objeto real a que corresponderia. Essa hesitacao - marca da faléncia humana presente até mesmo entre as obras geniais — viria a facilitar sua sujeicao ao cativeiro de normas prescritivas. O tiltimo destaque distingue-se dos anteriores porque antes visa a reconhecer © que aqui se mantém da concep¢io antiga. Ele parte da caracterizacao da tragédia. Aexemplo do que fizeram Dupont-Roc e Lallot (cf. DUPONT-ROC, R. e LALLOT, Cartruio 1 | MIMESIS E VEROSSIMILHANCA 37 ‘J, 1980, 188), tomamos como basico a definicao aristotélica da tragédia o seguinte enunciado reduzido: “A tragédia é uma mimesis (que, pela) piedade e 0 terror, provoca uma depuragao deste género de emocoes’ (Poét., 49 a 24-28). Independentemente das imensas polémicas, acumuladas desde a redescoberta do texto, que vao desde a traducdo adequada para phobos (terror) e katharsis, na passagem é evidente que o género poético maximo para Aristoteles, a _tragédia, realiza-se através do pathos, do impacto passional provocado no receptor. Bastard reconhecé-lo para que se eritenda 0 que, na reconsideracao da mimesis, sera mantido de sua concepcao antiga. Mas isso nao impede que procuremos enriquecer esse reconhecimento pela recorréncia a comentadores, aos quais estaremos assim também prestando nosso reconhecimento. Os primeiros sao os tantas vezes ja citados Dupont-Roc e Lallot, a propésito do sentido da catarse. Ela, dizem os autores, nio se impoe simplesmente por haver um relato (mythos), sendo porque piedade e terror derivam da “alquimia mimética’, i.e., decorrem da depuracao formal operada pelo poeta tragico. O efeito tragico é, portanto, andlogo a construcao formal do mimema (cf. DUPONT-ROCG, R. e LALLOT, J.: 1980, 190). Vale desde logo reiterar que a mimesis artistica nado depende simplesmente da matéria com que trabalha, as imagens, mas da configuracao que elas alcancam. O comentador a seguir destacado é 0 autor de uma obra injustamente pouco lembrada, o Lessing und Aristoteles, de Max Kommerell. Dele destacamos, sem a aprofundar, a comparacao entre as concepcées de tragédia que separam Aristoteles e Goethe. A diferenca esta apenas em que a representacao do tema por Goethe é estatica, ao passo que é dinamica em Aristételes. Goethe vé a tragédia como um fenémeno artistico, que se plenifica no cumprimento (Abrundung) do produto (Gebilde), o que, na tragédia, que é um processo entre duas partes, sucede por um ato de equilibrio; Aristételes nao tem diante dos olhos por : um lado uma obra, por outro, um efeito (Wirkung), nem tampouco apenas ‘este efeito, mas sim uma obra do efeito, 0 processo vital da comocao (Erschiiterung) tragica que se cumpre na tragédia, que é, evidentemente, a comocao do espectador. (KOMMERELL, M.: 1940, 62). Perguntemo-nos: a visdo estatica de Goethe nao configura uma visio imanentista, autotélica, estética, da arte, impossivel de imaginar-se na ambiéncia grega? Por isso mesmo, como Kommerell assinala em nota, sem entretanto fazer justica a esse condicionamento histérico, Goethe ironiza o efeito catartico (cf. KOMMERELL, M.: 1940, 258 ss). Levarmos de nossa parte em conta esse condicionamento nao deveria nos forcar a ter mais cuidado em dizer que o reconhecimento do efeito no espectador reaproxima, por esse aspecto, a mimesis refigurada 4 sua concepcao antiga? A resposta plena consiste em afirmar que, nas MIMESIS: DESAFIO AO PENSAMENTO duas concep¢des de mimesis, mantém-seo realce do efeito, mas naoasua significagao. Em Aristételes, “a alma (do espectador) se cura de uma excitabilidade alta por um afeto, de mesmo carater, artificialmente produzido” (KOMMERELL, M.: 1940, 102). ‘Cura” que nao haveria de se entender nem no sentido ético, que daria a tragédia uma funcao pedagégica, nem no estrito sentido médico, liberando-se o espectador dos sentimentos desagradaveis que a tragédia converteraem prazer. Tal cura, insiste Kommerell, se cumpria na “ordem das festas” (KOMMERELL, M.: 1940, 104), em que as competicoes tragicas se realizavam. (Para uma descricao mimucios da celebracdes em que se davam os concursos entre os autores das tragédias e seu papel na constitui¢ao de um imaginario social favorecedor da experiéncia democratica, cf. MEIER, C.: 1988, espec. caps. 3-4.) Era uma descarga cumprida no ambito da socializagao de valores politicos, em que as lendas da Grécia arcaica indiretamente serviam a vivéncia e compreensao dos dilemas contempordneos, Por inconcilidveis que sejam os horizontes dos homens antigo e moderno, como: ja o demonstra o “desentendimento” goethiano, a tragédia nao deixa de ser ‘uma obra do efeito” (ein Werk der Wirkung). Como, em nossos dias, a tragédia — ou a obra de arte, em geral ~ nao esta mais ligada ao calendario da pélis, fazendo parte de suas celebragdes, mas a experiéncia isolada do individuo, seu efeito ja nao mais pode ser entendido como purificacao, efetuada no ambito da festa civica, de determinados afetos (piedade e terror). Seria a forma moderna da catarse o mecanismo compensatério? Resisto a dizer que sim. Mas mesmo que assim seja, nao se interdita que se estabelecam as condigdes para outro efeito. Repensamos a mimesis na esperanga, talvez bastante iluséria, de que assim se estimule o efeito que sua obra atue como um ato critico, como questionamento das verdades naturalizadas. 1.2 Um estranho no ninho: Kant e a reconsideracgao da mimesis ; Parecera intrigante introduzir Kant em uma reflexao reapreciativa da mimesis. Quaisquer que sejam as camadas arqueolégicas presentes na Kritik der Urteilskraft (cf. TONELLI, G.: 1954, 423-448), indicadoras ora da permanéncia, ora do reajuste do prisma epistemolégico que governara a Primeira Critica, nao se cogita que Kant houvesse mudado seu Pensamento sobre a mimesis, Para ele, o termo. rego cabia com perfeicio em Nachahmung, que condizia com o latino imitatio, confundindo-se com um estorvo para a compreensio do fenomeno estético, Ao Passo que o enrijecimento da mimesis aristotélica provocara 0 catalogo de normas do correto e do falso no tratamento da arte, formulado desde antes dos poetélogos renascentistas, Kant contra-afirmava: — Capiruio 1 | MIMESIS E VEROSSIMILHANGA 39 Nao ha uma regra objetiva de gosto, que, por meio de conceitos, determine © que é belo. Pois todo juizo provindo desta fonte é estético; i.e., sua razao determinante é o sentimento do sujeito nao o conceito de um objeto. (KANT, 1.:1790, 17, A 53). Seguia-se, de imediato, a afirmacao de que os produtos que se destinam ao juizo de gosto nao podem ser adquiridos por imitacao (cf. KANT, 1: 1790, 17, A 53). Além do mais, a proscricdo kantiana da Nachahmung nao se restringia ao campo da arte. No ambito da religiao, a virtude ou a santidade nao é alcangada por imitagao ‘e sim por sucessao (Nachfolge) de um precedente (cf. 32, B 139). Ainda se podia supor que a imitacao fosse legitima no ambito do juizo determinante, onde um cientista é capaz de seguir os passos de um inventor. Mas certamente nao 0 seria na parte da ambiéncia do juizo de reflexao, onde a experiéncia estética se cumprira. Para que essas afirmacoes nao parecam esquemiticas, ao menos para 0 leitor que nao tenha Kant na ponta da lingua, acrescentam-se alguns esclarecimentos convencionais. Mas a intengao que os preside é apenas secundariamente didatica, pois tém um alvo mais complicado: mostrar por que tomamos Kant como ponto de partida para a reconsideracao da mimesis. Para essa dupla meta, partamos de uma caracterizagao banal. No # 8 da “Estética transcendental”, quando ainda apenas introduzia suas pecas, Kant anotava a propésito da representagao (Vorstellung): [...] Toda nossa intuicdo nada é senao a representacao de fendmeno. |...) As coisas que intuimos nao sao em si mesmas como as intuimos |... ¢ |...] se suprimissemos nosso sujeito ou também apenas a constituigao subjetiva dos ia, todas as relacdes dos objetos no sentidos desapareceriam toda a consistén espaco e no tempo e mesmo o espaco e o tempo |..). (KANT, |: 1787, 8, B 59). Logo a seguir ainda declara: “[..] A representacao de um corpo na intuicao nao contém nada do que se pudesse atribuir a um objeto em si mesmo mas apenas 0 fendmeno de algo e o modo como somos afetados [...]” (KANT, L: 1787, 8, B 62). Tal como Kant a entende, a Vorstellung inequivocamente declara 0 modo como recebemos os objetos e ndo as propriedades deles. Para que entao a representa¢ao assuma validade cognoscitiva, sera preciso que a sensibilidade, através da imaginacao reprodutiva, ofereca uma primeira sintese do fendmeno dado as categorias do entendimento, que transformarao esta sintese em conceito abarcador de fendmenos semelhantes. Ou seja, para que se estabeleca um juizo determinante, a Vorstellung depende da intervencao da faculdade de cognicao. Se é verdade que, de todas as trés Criticas, é a Primeira que oferece resultados inequivocos, nao é menos verdade que essa sua positividade restringe o conhecimento ao campo das ciéncias mecanicas. Isso nao obsta que seja ainda dentro da Primeira Critica que apareca definido um conceito cujo desenvolvimento 40 (MIMESIS: DESAFIO AO PENSAMENTO. levaré Kant a zonas bem mais nebulosas. “Da anfibologia dos conceitos de reflexao” come¢a com a passagem: A reflexao (reflexio) nada tem a ver com os préprios objetos, para deles diretamente receber seus conceitos, sendo que é o estado da mente pelo qual nos dispomos, inicialmente, a descobrir as condigdes subjetivas sob as quais podemos chegar a conceitos. (KANT, .: 1787, B 316). O papel, ainda entao secundario, reservado a reflexao sofrera uma reviravolta na Terceira Critica. A ampliacao do quadro epistemolégico estabelecido na Primeira ja comecara com a Segunda Critica. Mas sera na Critica da faculdade de julgar que alcancara seu apice. Essa mudanca tema ver com 0 papel de que a imaginacao passara aestar investida. De submissa ao entendimento, ela se abre ao campo das ideias; de passiva, far-se-a ativa, de reprodutiva, produtora, Essa metamorfose nao a torna, entretanto, rival do entendimento, pois a imaginacao produtora traz uma caréncia: “[..] E possivel & imaginacao agir de acordo com as regras do entendimento mas sem 0 explicito reconhecimento delas [...|" (ZAMMITO, J. H.: 1992, 85). Noutras palavras, ao se libertar de sua posicao servil, a imaginacao se mostra capaz de executar as operacdes do entendimento, sem entretanto conhecer o que faz. Essa propriedade resulta de que sua produtividade aponta para outra forma de juizo, nao determinante mas sim o de reflexao. Ao mimema, em geral, cabe 0 que Adorno, em seu ensaio sobre 0 tiltimo Hélderlin, dizia da “grande musica’: ser ela “sintese aconceitual” (begriffslose Synthesis) (ADORNO, T. W.: 1965, 184). A faculdade de julgar, em geral, é a faculdade de pensar o particular como compreendido no universal. Se o universal (a regra, o principio, a lei) é dada, entao a faculdade de julgar que nele subsume o particular |... é determinante. Se, contudo, apenas o particular é dado e ela deve encontrar o universal, entao a faculdade de julgar é apenas de reflexao. (KANT, L: 1790, BXXVD. A simplicidade da distincdo ainda nao a explica por completo. Porque © principio do juizo de reflexao permanece indeterminado do ponto de vista de leis universais, ele ha de ser considerado “segundo uma unidade tal que um entendimento (por certo nao 0 nosso) teria podido daé-la em proveito de nossa faculdade de conhecer, para tornar possivel um sistema da experiéncia conforme leis particulares da natureza” (KANT, L.: 1790, B XXVII). Noutras palavras: 0 juizo de reflexao cumpre-se fora do ambito das leis mecanicas que regem a natureza. Por isso mesmo, ele opera com uma ideia que, mesmo porque ideia, nao faz parte da matéria fenoménica e nao tem a capacidade de esclarecer a realidade material do objeto: a ideia de fim. E nesta pois que consiste a unidade a que se referia a passagem acima de B XXVII. Cariruo 1 | MIMESIS E VEROSSIMILHANCA Na acep¢aio kantiana, por conseguinte, uma ideia é um produto da razio e nilo um conceito, sendo o conceito (Begriff) um enunciado que agarra (begreift) a fenomenalidade da coisa conceituada, cabendo por isso em um juizo determinante. f enquanto (mero) produto da razao que a ideia de finalidade (Zweckméfigkeit) é considerada como explicativa da propria forma como um objeto aparece (cf. KANT, 1: 1790, B XXVII). Assim, por exemplo, a natureza “poderia proceder de mil outras maneiras” (KANT, L: 1790, 61, B 269) na estrutura anatémica dos passaros, na disposicao de suas asas e de sua cauda, etc. Isso nao causa estranheza: enquanto 0 conceito de natureza opera mecanicamente, a unidade referida, embora proposta quanto a coisas da natureza, é da ordem da finalidade. O que equivale a rei ideia de fim nao cabe no juizo determinante, nao declara propriedades do objeto; é um suplemento com que a razdo contribui para que as coisas tenham sentido. Assim compreendida, a ideia de fim e de finalidade da natureza se atualiza a propdsito das relagoes entre parte e todo dos seres organicos e implica a imposicao de um sentido, pelo homem e s6 para o homem, a uma multiplicidade de fendmenos que, sem aquelas ideias, seria cadtica para nds: “O conceito das ligacdes e das formas da natureza segundo fins (nach Zwecken) € a0 menos um principio a mais para submeter a regras os fenomenos da natureza” (KANT, L.: 1790, 61, B 269). Essa suplementaridade de sentido, que, como ja sabemos, nao encontra 0 endosso do puro entendimento, ainda contém outra expansao. E 0 que daa entender exemplificacao anterior: flores, plantas inteiras, a graca das formas animais de todas as espécies, “iniiteis para seu uso proprio, mas, por assim dizer, escolhidas para nosso proprio gosto’, “parecem ter como todo fim a contemplacao externa” (KANT, 11790, 61, B 248). A dugere Beschauung (contemplacao externa), mais até do que uma suplementacao de sentido, aponta para uma forma especifica de relacionamento com o mundo. Ela nao visa a seu dominio — pois o entendimento é também uma forma de dominio - senao que supoe uma experiéncia de consonancia e desafio. O principio teleolégico é portanto indissociavel do juizo de reflexao. O juizo de reflexao abrange 0 juizo estético e o teleolégico propriamente dito. Os dois entre si se distinguem pelo uso diferencial da ideia de finalidade: “A beleza é a forma da finalidade de um objeto a medida que é nele percebida sem a representacao de um fim” (KANT, L: 1790, 17, B 62). Dito de maneira mais explicativa: as regras que impomos a ordem das coisas, nao se confundindo com as leis mecanicas a que as coisas obedecem, sao arbitrarias, i.e., “produtos do propésito ou da vontade racional. Arazao éa tinica fonte de regras no mundo. Ser limitado a regras (rule-bounded) é ser sujeito a razao” (ZAMMITO, J. H.: 1992, 135). Mas, na “finalidade sem fim” da obra de arte, o juizo de reflexao assume a peculiaridade de a atribuicao ao objeto de uma finalidade nao vir acompanhada doutra atribuicdo: a de tom4-lo como meio para oalcance de um fim. Dito de forma mais redundante: a atribuicao de finalidade a algo é usualmente acompanhada de uma atribuicao segunda, que subordina a forma 42 MIMESIS: DESAFIO AO PENSAMENTO do objeto a consecucao de certo fim. (Ao observar, por exemplo, a ligagao entre as partes e o todo de uma planta, estabeleco uma relacao de finalidade entre o caule ea extensao de suas folhas - 0 caule tem tal extensao e é macio para que permita galhos, que, sendo tenros, nao podem ter folhas pesadas. Ao “principio regulador” da finalidade, ainda costumo acrescentar um fim: ¢ assim sucede para que, etc.). No juizo de reflexao estético, a “finalidade sem fim” significa que 0 contemplador se contenta com sua pura forma; toma-a como condicao suficiente para a postulagao de certa intencionalidade. A “finalidade sem fim” é por isso correlata ao interesse_ desinteressado. Ou seja, ao passo que a imposicao de um fim as coisas da natureza supde um interesse que nela se investe, o interesse desinteressado significa que esse interesse se contenta com a prépria forma de ser do que se contempla. (Ao ver a “Venus” de Boticelli, nao desejo para mim a magnifica figura que surge das aguas. Sei mesmo que tela e tinta substituem sua carnagao. Mas meu interesse nao decresce por ser desinteressado. A finalidade que lhe atribuo - 0 pintor a compés de tal modo com a intencao de, etc., etc. — ndo se acompanha de um fim, que seria 0 contetido de meu interesse.) Acentuar esse ponto nos permite apontar para a importante tese de John. Zammito. Ao passo que é frequente ler a Terceira Critica como se ela fosse formada por duas partes independentes, a que se refere ao juizo estético e a que concerne ao teleolégico, Zammito mostra sua integracdo. Dai seu carater especulativo, contrastante com o tom que dominava na Critica da razdo pura. Se, na Critica da faculdade de julgar, Kant se impunha autonomizar a experiéncia do belo em face do bem, a estética em relacao a moral, nao se dedica menos a, a0 mesmo tempo, articular a arte a moral, o sensivel ao suprassensivel. Assim, se a experiéncia estética compreende as espécies da belezae do sublime, aquela se cumpre no jogo harmonioso entre imaginacao e entendimento, enquanto o sublime, nao tendo o recorte de uma forma determinada, nao admite a sintese do jogo livre das faculdades e ultrapassa a capacidade do entendimento. Mostra-se entao como “um conceito indeterminado da razao” (KANT, L.: 1790, 23, B 75). E aqui entra a tese de Zammito. Procuremos torna-la compreensivel por duas passagens: “De uma exposic¢io do conceito do sublime emergira que o aspecto do sujeito a que a experiéncia aponta é, precisamente, a dimensao moral da liberdade transcendental e, dai, o fundamento suprassensivel da subjetividade. Como determinante, em vez de determinado, o “suprassensivel” nunca poderia ser um verdadeiro objeto de cognicao. Mas Kant agora enfatizava que ele poderia ser pensado e que também poderia ser tratado através da reflexao, i.e., esteticamente* ‘(ZAMMITO, J. H.: 1992, 278 e 271, respect,). Em suma, com a “ideia indefinida do suprassensivel em nds’, Kant, sem contradizer a epistemologia da Primeira Critica, a emenda de tal maneira que permite a admissao, em seu sistema, de uma finalidade abarcadora do mecanico Cariruco 1 | MIMESIS & VEROSSIMILHANGA da natureza, se bem que tal finalidade permanecesse indemonstravel: a finalidade oriunda do suprassensivel. Enquanto nao fenoménico, o suprassensivel permanece fora do entendimento, ie, de apreensao cientifica. Mas a “finalidade sem fim’, permanecendo um principio apenas regulador, assinala a presenca de um suprassensivel que regeriaa propria matéria, emborao homem sé pudessea ela aceder problematicamente. Por isso Kant nao se contentava em assinalar a autonomia do estético ou nao se empenhava nela mesma mas sim, a0 mesmo tempo, a considerava *simbolo da moralidade”. Ou seja, a utopia que Kant permite que se conceba anularia 4 propria diferenciacao do belo quanto ao bom. Pois, se essa diferenciacao se impunha no campo do sensivel, sua razdo desapareceria se o sensivel e 0 suprassensivel pudessem, ainda que eventual e problematicamente, se reunificar. O que para o pensamento religiosamente orientado era um pressuposto aparecia em Kant como projeto apenas utdpico. Bastava sua presenca contudo para que fosse neutralizada a autonomia concedida ao estético. Assim, por um caminho enviesado, temos melhor possibilidade de entender o que significara aquela autonomia. Areferéncia a tese de Zammito tem 0 propésito explicito de servir de contraste para as interpretacoes que, na Terceira Critica, ressaltam, com exclusividade, a parte da experiéncia estética. Esse destaque nao é por si criticavel ~ por que a Critica da faculdade de julgar teria que forcosamente ser vista em sua sistematicidade? E questionavel porque estimula a permanéncia de certo impasse, que vemos associado As diversas teorias levantadas contra a mimesis da arte. Por que falamos em impasse? Porque, se a arte tem uma finalidade em si, se sua qualidade depende tao so de sua estruturacao interna, a qual nao tem satisfagdes a dar ao mundo, nem ha de se preocupar com 0 efeito que cause, i.e., se é absolutamente autorreferente, se, por conseguinte, é uma técnica que nado mostra as vantagens das técnicas pragmaticas, como pode interessar a um ntimero consideravel se nao estiver apoiada ou conjugada a outro tipo de experiéncia, de algum modo pragmatica? Do contrario, como se haveria de justificar o interesse que, apesar de tudo, provoca? O impasse para o qual contribuem as teorias contrarias 4 mimesis parte de considerarem a obra de arte em sua imanéncia, quando, em si mesma, como “finalidade sem fim’, ela nao provocaria © interesse senao dos ja interessados. Os quais, dado 0 autoencerramento da obra de arte, so poucos, em principio. Ao considerarem que é isso um problema para a sociologia da arte, se nado mesmo para uma reflexao critica da sociedade, tais tedricos contribuem para a perda de prestigio da arte. Este sera aqui um tema recorrente. Tome-se um exemplo de reflexao assim autotélica. No curso de uma anilise dedicada aos ## 23-29 da Terceira Critica, escreve seu autor: A Ideia estética é uma representacao de objeto tal que nao ha propriedade correspondente no conceito deste objeto. A Ideia racional é a concepgao de um objeto inapresentavel; a Ideia estética, a apresentagao de um “objeto” que escapa a concepgao deste objeto, a apresentacao do que Kant, (..J chama “das Ph adil MIMESIS: DESAFIO AO PENSAMENTO: Unnennbare’, 0 inomedvel, nao do proprio objeto (a forma) mas o inominavel do estado que o objeto propicia ao pensamento. (LYOTARD, J.-F: 1991, 86). A passagem cumpre a primeira funcao de um comentirio: é correta e inteligente. De imediato, é ela corroborada pelo que o préprio Kant escrevera: “Como faculdade produtiva de conhecimento, a imaginacao é, com efeito, muito potente na criacao, por assim dizer, de uma outra natureza (gleichsam einer andern Natur), a partir da matéria que lhe daa natureza real” (KANT, L.: 1790, 49, B 193). Ou antes ainda: “Flores, desenhos livres, entrelacamentos sem propésito (Absicht), sob o nome de folhagem, nada significam, independem de qualquer conceito determinado e, no entanto, agradam” (KANT, L.: 1790, 49, 4, B Il). Taisatestagoes confirmam odesrespeito kantiano ao limite classico da mimesis; mais precisamente, seu descarte do que, na época, poderia passar por uma teoria da mimesis. Pareceria pois explicavel que Lyotard considere a constituicao de “uma outra natureza” como legitimacao antecipada de uma arte nao representacional. Por que, entao, nao a aceitariamos? E, no entanto, nossa objegio se considera respaldada pela argumentacao do préprio autor das Criticas. Em termos estritamente kantianos, a forca produtora e, dai, libertaria da imaginacao, que alcanca seu auge na experiéncia do sublime, rompe com a prépria autonomia do estético ¢ toma a arte, conforme © préprio titulo do # 59, como “simbolo da moralidade’, como propedéutica que prepara a “transicao para reflexes sobre o destino ético do homem’ (ZAMMITO, J. H.: 1992, 3). Nao leva-lo em conta é ainda mais problematico quando assim se faz a propésito do sublime. O desconforto inicial que, segundo Kant, o sublime provoca converte-se em sensacao de algo agradavel exatamente porque a “outra natureza” que produz exige do contemplador a constituigdo de uma sintese mais ampla e mais alta, que sé se cumpre com uma hipétese de sentido que abrange... o suprassensivel. Em poucas palavras, nossa recusa se funda, inicialmente, na funcao utépica do projeto arquiteténico de Kant. E neste sentido que dizemos: ao desvencilhar a Critica da faculdade de julgar do compromisso unitario e arquitetonico de seu criador, Lyotard passa a conceder & experiéncia estética kantiana um sentido exclusivo que ela, univocamente, nao tinha. Explicitando 0 solo em que se ampara nossa divergéncia, abrimos espaco para a discussao. Imediatamente, cabe contestar: desde quando a intencao que presidiu um projeto intelectual teria de ser respeitada? Mas nao se trata de respeito a intencionalidade. Trata-se antes de saber quando a “traicao” é aceitavel. Ora, a “traigdo” seria procedente se nao conduzisse ao embaraco, hi pouco indicado, que encontramos nas teorias antirrepresentacionais. Se a obra de arte nao tem um referente ~ que ndo teria de ser, como na mimesis antiga, a natureza ~ se a “outra natureza" que produz nao encontra nada a que se confronte, como pode ser ela apreciada? Ou como essa apreciagdo deixa de ser mais que um puro arbitrio? Nos Cariruuo 1 | MIMESIS E VEROSSIMILHANCA termos do sistema ortodoxo kantiano, a questo supunha que o sublime incita 0 confronto com o suprassensivel, a que, afinal, se integra. Portanto simplesmente Jomar a arquitet6nica kantiana como datada, 0 que é verdade, termina por eonverté-la em um torso. Em poucas palavras, excluindo-se a referéncia, cria-se © problema da referéncia. Ha décadas, um critico de arte da qualidade de Robert Klein ja percebera a dificuldade assim criada: Uma vez abandonada a “referéncia’, nao se medindo a obra senao por ela mesma, nao ha mais critica, pois todo comentario, até o mais flexivel ¢ fiel, instala, ao lado da pintura, algo a que se compara; nao ha mais efeito, pois © efeito visa a um terceiro e assim introduz um ponto de vista estranho intencionalidade do criador; néo ha mais obra, pois a obra é, faca-se o que se consciéncia que a poe. (KLEIN, R.: 1963, 419). queira, uma realidade opos' E claro que a formulacao de Klein ¢ insuficiente, pois subordinava a referéncia A intencionalidade autoral. Mas nao deve ficar menos claro que, em termos kantianos, a questao da referéncia é fundamental. A recusa de sua anquiteténica simplesmente ‘poe a descoberto. O problema da referencia é demasiado rduo para que possa ser aqui diretamente enfrentado. Por isso mesmo capitulo posterior retomaraa discussio. Apenas como antecipacao do que entao se dira, note-se que nao se defende ume referéncia fixa e “natural” — seja a alcancavel por uma concepsao de natureza, seja “westabelecida, como em Klein, por uma intencionalidade do criador — mas sim uma referéncia mével, histérica e culturalmente cambiante. Esta é antes um impensado que lima regra ou uma materialidade privilegiada; impensado que comanda a apreciacao do objeto de arte. Ele é por certo criador de uma “outra natureza mas, seo receptor — e que € 0 critico senao um tipo de receptor? — nao atinar por onde vé-la, simplesmente ela nao sera lida; no melhor dos casos, esperard por melhores tempos. Que nao serao melhores, do ponto de vista da obra apreciada, senao porque se encontrou, possivelmente dentro dela mesma, uma referéncia para a obra. Do estrito ponto de vista da obra de arte, tempos melhores sao aqueles em que ela sai do ostracismo. O problema criado pelo desprezo do lastro_referencial parece entao estar em que assim se retorna a uma concep¢ao imanentista da arte, que, aparentemente apoiada em Kant, termina por contrarié-lo duplamente: (a) porque nega 0 efeito sobre o receptor, central na propria caracteriza¢ao do juizo de reflexao; (b) porque, simultaneamente, investe aquele que a propde, enquanto filésofo, teérico ou mero critico pragmitico, da condicao de ser a consciéncia bastante para julga- la. i.e, torna o seu proponente no arbitro da qualidade do objeto. Em suma, o imanentismo antirrepresentacional nos traz potencialmente de volta aos critérios normativos pré-kantianos.’ Repetindo o gesto de Robortello, embora com valores +0 argumento introduz a suspeita,a ser enfatizada nos capitulos seguintes, de que 0 critico contem- MIMESIS: DESAFIO AO PENSAMENTO: bem diferentes, o verossimil é desprezado como associado & intervencao do sujeito e afirmado o necessério, que, nao por acaso, o nao representacionalista postula. Pelas razées levantadas, parece-nos que, se queremos nos manter afastados da arquitetura kantiana, com sua postulacao do enlace, mesmo que problematico, entre 0 sensivel e 0 suprassensivel, precisamos dar outro encaminhamento a genialidade da Terceira Critica. Para tanto, duas admissdes sao imprescindiveis: (a) pelo exame _ da mimesis antiga, aprendemos que a subordinacao da mimesis as categorias com as. quais se pretendia captar a unidade do Ser terminava por prender a arte ao limite da physis; (b) aceitamos com Deleuze que, implicando “o figurativo” “a relagao de_ uma imagem com um objeto que se julga por ela ilustrar’, sera preciso “liberar a Figura” (DELEUZE, G.: 1981, 9). Dentro do mesmo raciocinio, é também justo dizer que, se “a arte pode entao ser figurativa, vé-se bem que ela nao o é antes de tudo e que a figuracao é tao sé um resultado” (DELEUZE, G.: 1981, 81). O que vale dizer: _a arte nao tem 0 perceptivo por necessaria matéria-prima. Mas como iluminar a circulagao do que ela entao produz? Como fazé-lo sem torna-la exclusividade ou da intencionalidade do produtor ou da interpretacao proposta? Ou seja, como romper 0 privilégio, operacionalmente danoso, de um sujeito privilegiado? E este o papel que reservamos a mimesis. Mas como falar de mimesis a propésito de uma produgao que nao se deixa guiar pelos modos metafisicos de indagacao da natureza? Como falar de mimesis sem sujeité-la seja a alguma esséncia ou, conforme a tradicao hegeliana, a modelagem a que uma época hist6rica a amolda? O nao ser guiada por critérios estabilizadores nao significa que a obra seja incomparavel ao que a envolye. Ela apenas nao é moldada pelo principio da semelhanca senao que pelo vetor da(diferenca, em suas diversas formas (a distorcao, a configuracao distinta ou oposta, a negatividade, etc.). Por mais radicais que sejam as formas de diferenga, elas sempre mantém um resto de semelhanca, uma correspondeéncia, nao necessariamente com a natureza mas sim com o que tem significado em uma sociedade, com a maneira como a sociedade concebe a propria natureza. Como se trata de um ponto tanto importante como delicado, tentemos concretiza-lo. Trata-se entao de acentuar que: 8) desligar a _mimesis_do campo de percepgado dos. objetos, tornd-la independente das formas da natureza ou do principio narrativo da acao nao significa restringi-la as obras que nao tém por objeto a percepgao de objetos, a natureza, o principio narrativo da acao! Muito ao contrario, pois a aconceitualidade da imagem e a diferenca que ela privilegia por si nao explicariam 0 interesse que a obra provoca, e, portanto, a circulacio poraneo, normalmente um critico-filésofo, acata entusiasta o que the parece o antirrepresentacionalismo kantiano,a partir da destruicao da teoria do sujeito e da representacao. Mas essa destruicao é consequen- te com 0 retorno da normatividade. Tao sé. Caviruvo 1 | MIMESIS E VEROSSIMILHANCA em que ela é passivel de entrar. Nao explicariam porque 0 proprio realce da diferenga se cumpre sobre um horizonte de semelhangas. (A propria diferenca s6 é percebida por alguém que nela encontra ao menos um ponto de semelhanca com aquilo de que se distingue o diferente.) Com isso, também se descura que essas semelhancas sao constituidas a partir de um horizonte sociocultural; 9) a composicao de uma “outra natureza” do texto kantiano deve ser entao esclarecida pela correspondéncia com o que Durkheim e Mauss entendiam por formas de classificagao da sociedade: “Toda classificacao implica uma ordem hierarquica de que nem o mundo sensivel, nem nossa consciéncia nos oferecem o modelo” (DURKHEIM, E. e MAUSS, M.: 1903, 2, 18). A forma de classificacao, com o privilégio do simbélico sobre o fluxo dos eventos ea configuracao de valores que orientam a conduta social, constitui o fundo de semelhanca sobre o qual operam as diferencas da mimesis. A obra de arte circula porque a “outra natureza” que a enforma encontra um parametro nem natural, nem consciente: a forma de classificacao da sociedade em que se elabora ou em que-é recebida. A mimesis nao tem pois um modelo mas traz em si um outro que a alimenta, com que dialoga, que aparece como resto que se mantém sob 0 arabesco da diferenca, que o motiva, se nao o orienta. Neste sentido, a mimesis funciona como o analogo de uma lingua: a diferenca que uma signature (Deleuze) nela introduza sé é legivel em funcao das estruturas que a circundam. Sem visar imediatamente 4 comunicacao, a obra de arte traz em si aquilo de que a comunicacao depende: a comunidade de um cédigo, mesmo que, na obra, haja do cédigo apenas restos, a exemplo de, em The unnamable, de Beckett, a cabeca e 0 tronco enterrados em uma jarra, restos do cédigo “sujeito psicoldgico”. A mimesis é teorizavel a partir do confronto (mental e inconsciente) do gesto, da atitude, da inflexao da voz, da disposigao do objeto,.em suma, do mimema, em que se perfaz, com a classificacao com que eles sao lidos. Por isso o mesmo mimema, ao ser recebido por outra forma de classificacdo, sofre uma inevitavel mudanca de leitura. E ingénuo pensar que a leitura “estrangeira” seja necessariamente melhor ou pior que a nativa. Podera suceder que seja melhor, a exemplo do que ocorreu com Borges e 0 jazz na Franca; poder ser mediocrizante, a exemplo do que sofreu Guimaraes Rosa nos Estados Unidos.* ‘A mimesis nao pode ser pensada a partir do individuo, quer 0 produtor, quer o receptor. Nela, sempre uma coletividade se faz ouvir. Nessa coletividade de tao distintos efeitos, ¢ possivel enumerarem-se as distingdes e as equivaléncias. As distingdes atuam sobre 0 mimema e as manifestagdes propriamente coletivas. A estas cabe 0 que Gabriel Tarde observava: “[...] O que quer a coisa social, antes ’ Basta a propésito lembrar o (pré-)juizo de Fredric Jameson sobre o Grande sertdo,"[...] That curious Brazilian ‘high literary’ variant of the Western [...]" JAMESON, F.: 1981, 118)! MIMESIS. DESAFIO AO PENSAMENTO de tudo, como a coisa vital, é se propagar e nao se organizar” (TARDE, G.: 1890, 80). Isso equivale a dizer que, nos grupos, nas coletividades, nas aglomeracoes, nas multidoes, a mimesis é fundamentalmente imitativa e, entao, passiva. Trata-se ai de estabelecer uma semelhanca que facilite a convergéncia do recém-advindo com um padrao reconhecido e modelante. Na obra de arte, ao contrario, trata-se de aprender uma forma, um estilo, uma técnica, na expectativa de que de seu dominio derive o caminho da diferenca. A mimesis entao se torna ativa. (Nada por certo impede as incidéncias contrarias: que, de ativa, a mimesis artistica se torne passiva - éa peculiaridade dos epigonos; que, de passiva, a participacao em um grupo se torne ativa, se bem que, neste caso, se torne iminente o risco de marginalizacao do agente, a menos que seja ele capaz de criar 0 seu proprio grupo.) Tanto a mimesis ativa como a passiva se prendem ao principio inconscientemente orientador da classificagdo social, cuja condensacao, ademais, acentuavam Durkheim e Mauss, nao se faz por critérios légicos: “Ha afinidades sentimentais entre as coisas como ha entre os individuos e é segundo essas afinidades que elas se classificam” (TARDE, G.: 1890, 86). A classificacao social nao é um precipitado légico, nem a ela temos acesso por um esforco de consciéncia. Nela, nos integramos pelo processo da vida. Dai a dificuldade do estrangeiro em nao ser sempre visto como um meteco. Dela, s6 nos aproximamos pelo acesso a indicios guardados na historia. Os interesses que movem a classificacao social, que se concretizarao em uma hierarquia, tem uma motivacdo nao sé pragmatica mas afetiva: “[.. E possivel classificar outra coisa que conceitos e doutro modo que conforme as leis do puro entendimento” (TARDE, G.: 1890, 86). Uma exemplificacao do papel decisivo das classificacoes era dada, ainda que acidentalmente, por Max Weber: “...] O conhecimento das proposigdes mais seguras de nosso saber tedrico ~ por exemplo, das ciéncias da natureza ou matematicas, assim como o agucamento e a depuracio do saber sao, antes de tudo, produtos da cultura” (WEBER, M.: 1904, 152). A passagem mostra a distincao entre uma sensibilidade social e a capacidade de especulagao metafisica. Sem menosprezo da segunda, é aquela que nos é imediatamente imprescindivel. Ao articularmos o fendmeno da mimesis com as formas de classificacao, nao saimos do terreno kantiano em que de inicio nos pusemos. Se ha alguma discrepancia com o desenvolvimento anterior, ela esta em havermos ampliado o espectro de atuacao da mimesis, que, provisoriamente, deixou de ser vista apenas em sua incidéncia artistica. As formas de classificagao de Durkheim e Mauss nao podem ser pensadas como a culturalizacao do esquematismo kantiano?* © Eis um dos pontos que terminamos por nao desenvolver como o pretendiamos. Na Primeira Critica, Kant desenvolvia a necessidade do esquema em virtude de, sendo as categorias conceitos puros do entendimento e nao se deixando elas reconhecer pelos sentidos, 0 entendimento necessitava da intervengao de um elemento que fosse sensivel, como os fendmenos, e intelectual e puro (ie., sem Cartruvo 1 | MIMESIS E VEROSSIMILHANCA Limitemo-nos a essa afirmagao: para nao se tornar arbitraria e, de acordo om a influéncia do autor do arbitrio, tendencialmente normativa a apreciagao da “outra natureza” processada pela obra de arte, sera preciso que o analista olhe para tras e ao redor de si, ie., para as formas de classificagao empregadas por sua sociedade, capazes de dar sentido A heterogeneidade do objeto artistico inovador. “Isso paralelamente significa dizer que, como a concebemos, a mimesis ainda se listingue de sua formulacao antiga por trocar a subordinacao conceitual que a presidia por uma relacao de correspondéncia com a classificacao (0 esquematismo cultural) que lhe subjaz; correspondéncia que nao da lugar a resultados previsiveis, mesmo porque seu modus operandi é a diferenca com que se transforma o pré-dado. Se entao concluimos que a mimesis supde a correspondéncia com a classificagao social impulsionadora, correspondéncia que se atualiza numa gradacao indefinida ~ desde a coincidéncia, provocadora do anonimato, do homem na massa até a discrepancia cuja Gnica semelhanca se denuncia na revolta que a motiva -, ha de se entender que seu traco de atuacao mais aparente é a verossimilhanca. A ela dedicamos a reflexao final. 1.3 A verossimilhanga: sua ambiguidade’ Parta-se de um autor insuspeito de simpatias pela mimesis. Refiro-me a Schlegel. Lé-se no fragmento 74 dos “Athentium Fragmente”: No uso corrompido da linguagem, verossimil significa tanto quase verdadeiro ou um pouco verdadeiro ou o que ainda pode se tornar verdadeiro. Mas tudo isso a palavra, de acordo com sua formacao, nao pode designar. O que parece verdadeiro nao precisa, por isso, e em grau algum, ser verdadeiro: mas deve positivamente parecer (Was wahr scheint, braucht darum auch nicht in kleinsten Grade wahr zu sein; aber es mug doch positiv scheinen). (SCHLEGEL, F: 1798, II, 175). nada de empirico). Ao elemento que combina essas propriedades chamara esquema, considerando-o © “conceito sensivel de um objeto” (B 186). Para Kant, ademais, nessa condi¢ao de simultaneamente formal e sensivel, o esquema seria universal. Suspeitamos que a obra chamada néo figurativa encontra condigdes de reconhecimento através da culturalizagéo do esquema kantiano. Le., que ele suplementa para 0 receptor 0 reconhecimento daquilo que nao se the apresenta com a ajuda de um objeto do mundo. Esse o papel ento desempenhado pelas formas de classificagao social. Terminamos por nao desenvolver teoricamente hipdtese, contentando-nos com sua “tradugao" durkheimiana, tanto porque Kant excluia 0 esquema da experiéncia do sublime, quanto porque a questao da abstracao na arte nos obrigaria a uma analise especializada da pintura, Ainda que nao fossem problemas insuperaveis, o tratamento deles e a melhor determinacao do conceito durkheimiano levariam este livro a um tamanho assustador. Uma primeira versao da questdo da verossimithanca aparece no final de Vida e mimesis (cf. COSTA LIMA, L: 1995, 300-307).

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