Paulo Augusto de Figueiredo, CONTRIBUIÇÃO AO ESTUDO DE UM MODELO

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Contribuigao ao estudo de um modelo politico brasileiro PauLo Nunes AuGusTO DE FIGUEIREDO Consultor-Geral do Senado SUMARIO — Introdugao — Democracia, antes de tudo — Pluripartidarismo, uma exigéncia da democracia — partido e ideologia — €& preciso rever o regime federalista — Redivisao politica do Brasil — Federalizagéo da Justiga — Conselho de Estado — Conclusdo INTRODUGAO Toda tese de natureza politica, quando em debate, é diferentemente encarada por quem a discute, pois a sua compreensao, o seu encaminha- mento e a sua possivel solugao estado estreitamente ligados a formagdo filosética de cada um. Assuntos desse jaez, essencialmente humanos, e, por isso mesmo, universais, contém, entretanto, acentos nacionais especificos, que hao de ser devidamente considerados no exame dos problemas, sob pena de divagag¢ées inconsistentes. R. Inf. legist. Brasilia a. 15 n, 57 Jon./mar. 1978 Ww A realidade nacional dos povos se inscreve na realidade internacio- nal do mundo, da qual nao pode dissociar-se, mas da qual, certamente, se diversifica. Ja se disse, a nosso ver com razao, que $6 o que for autenticamente nacional é autenticamente humano, e isto porque os homens que consti- tuem a “humanidade” nao sao uma coisa abstrata, antes estéo presos ao seu meio étnico, social, econémico, moral e geografico. Isso explica porque algumas questées como, por exemplo, o exer- cicio da liberdade, a garantia de direitos individuais, a intervengao es- tatal, o regime da propriedade, a organizagao da familia, o sistema de trabalho, a estruturagdo juridica do Estado, que interessam a todos os homens, de todos os tempos e de todos os lugares, s6 poderdo ser racio- nalmente equacionados se os considerarmos, no somente em seus ter- mos ideoldgicos, mas, também, em seus termos nacionais, isto 6, tendo- se sempre em mente as condigées espaciais especificas de vida dos diversos povos. A verdade 6 que qualquer acontecimento importante que ocorra, hoje, na vida de qualquer povo, de qualquer continente, tem repercussdes, mediatas ou imediatas, ténues ou marcantes, sobre a vida de todos os outros povos, pois, embora acontecendo em um pais, isto 6, sendo nacio- nal, esse acontecimento & humano e, como tal, interessa a todos os ho- mens de todos os lugares. Nesse sentido 6 que se pode dizer, com Cicero, que a patria do homem & o mundo, ou, com Wendel, que o mundo é um 86, afirmagées que nos permitem assegurar que tudo que 6 humano é igualmente nacio- nal, porque nada acontece fora de um clima, de uma economia, de uma “raga”, de uma cultura, de uma sociedade, de uma nagdo. Aceitas essas premissas, teremos estabelecido os fundamentos para © nosso trabalho, o qual se desenvolverd, portanto, em termos contin- genciais e em fungao de um fim ultimo e permanente, a ser tentado atra- vés de um regime politico, por ser este o meio natural de coexisténcia dos homens, no qual eles implantam instituigées capazes de possibilitar- lhes a consecugdo de seus ideais. Pretendemos contribuir, de algum modo, para a descoberta de um “modelo politico” para o Brasil, atendendo, assim, 4 chamada do Presi- dente da Republica, que, para tanto, convocou todos os brasileiros. O tema a abordar 6, logo se vé, vasto, complexo, profundo, dificil, comportando inumeras facetas. Evidentemente, um modelo politico inclui um modelo econémico e um modelo social, visto que a politica é abrangente, em sua acepgdo mais ampla, engloba todas as categorias de existéncia coletiva, ao mesmo tempo que, por ser uma ciéncia, esta vinculada a uma filosofia, ou seja, a uma compreensdo integral do homem e do universo. 12 R. Inf, legisl. Brasilia ¢. 15 m. 57 Jon./mor. 1978 Esse entendimento induz a4 convicgao de que a “construgao” de um modelo politico brasileiro ha de ser obra nao apenas de politicos, mas ainda de filésofos, de socidlogos, de juristas, de economistas, de educa- dores, de psicélogos, de gedégrafos, entim, de quantos possam, de alguma maneira, participar do processo cultural do Pais. Limitaremos, por isso, o nosso estudo a alguns problemas de carater mais acentuadamente politico, todos controversos, sem divida, mas todos, em nosso modo de ver, de importancia fundamental para o Brasil e na solugdéo dos quais achamos se devam fixar, com nitidez, certos marcos fundamentais para a instituigao, no Pais, de um regime politico realmente humano e realmente brasileiro. DEMOCRACIA, ANTES DE TUDO Desde os comegos dos tempos histéricos os homens lutam renhida- mente em busca de um sistema de vida em comum onde Ihes seja garanti- da uma distribuigao mais eqiiitativa dos bens da civilizagao e da cultura, de forma que possam cumprir, superiormente, seu destino de seres livres e@ teleolégicos. E, dos entrechoques de idéias, muitas vezes sangrentos, chegou-se & conclusao de que, pelas experiéncias realizadas, o regime mais adequado as necessidades humanas, o unico suportavel (porque o unico em que eles encontraram efetivas condigdes de vida e desenvolvimento), foi o demo- cratico. Quando, por conseguinte, se cogita de um modelo politico, a primei- ra coisa a deixar bem clara é que esse regime ha de ser democratico. Sucede, todavia, que a palavra democracia é, hoje, nao raro, uma bela bandeira a encobrir mercadoria suspeita, urgindo, pois, antes de tudo, fixar-se, com precisdo, o seu conceito. A democracia é ou nao é. Pode-se, todavia, falar da democracia plena e da democracia em desenvolvimento. Porque as condigGes ambientais em que a democracia se realiza variam de pals para pais, de cultura para cultura. Certo 6, também, que a democracia é totalitaria, na medida em que integra todas as categorias de vida coletiva: a politica, a social e a eco- némica. O desconhecimento — ou o esquecimento — desses aspectos que a cercam e a distinguem 6 que tem levado os homens a falsas definigdes. Donde fafarem alguns em democracia econémica, outros em demo- cracia social, outros em democracia politica, quando nao se deve separar, nela, os elementos econémicos, sociais e politicos, que nela se entrosam, se condensam, se completam e se harmonizam, para, justamente, compé- la como um todo que, no consenso mundial, constitui a meta de todos os povos, R. Inf, legisl. Brasilia a. 15 nm. 57 Jan./mar, 1978 13 E claro, repitamos, que, em sua forma, a democracia pode apresentar- se de maneiras diferentes nos diversos paises que a adotam, uma vez que © seu processo de execugao esta necessariamente vinculado as disponibi- lidades culturais desses paises. lnglaterra, Franga e Estados Unidos, para sé citar trés exemplos, sao Estados democraticos e, no entanto, séo grandes as diferencas nos siste- mas politicos, dentro dos quais 6 a democracia perseguida, em cada um deles. & que a nagdo é uma realidade positiva, inaliendvel, e, por isso, o nacional, ou seja, aquilo que cada povo tem de préprio, de tipico, de espe- cifico, de seu, ha de influenciar na sua organizagao politica, social e eco- némica, informando, assim, as suas instituigdes e dando determinada fisio- nomia ao Estado em que a nagdo juridicamente se projeta. Esse condicionamento nacional dos regimes politicos nao implica, porém, nenhum conceito de relatividade, vale, exclusivamente, como uma maneira propria, digamos pessoal, de se procurar um mesmo objetivo: o bem comum. Mediante seus recursos, de acordo com os seus métodos, dentro de suas oportunidades, os povos tém, contudo, na procura da democracia, um mesmo 6 Unico objetivo. Através da democracia, buscam-se aqueles fins superiores da existéncia, que sé ela, no plano politico, ¢ capaz da ensejar. Isso mesmo é o que ensina Tristéo de Athayde, quando escreve: “Se aceitarmos aqueles principios gerais da politica que ontem desenvolvemos em resumo, como sendo a ciéncia, a arte e a vir- tude no governo do bem comum, podemos admitir que haja mais de um tipo de democracia. O que nao podemos admitir, sem in- coeréncia, 6 que possa haver uma democracia sem o respeito aquelas trés notas tipicas de autenticidade politica. E a primeira delas é a universalidade e a intemporalidade de exigéncias funda- mentais, com uma legalidade baseada no respeito a liberdade e & justiga, nos direitos intocdveis do cidaddo, no voto livre, na liberdade de imprensa, na justiga social e em tudo que exprime a participagao efetiva do povo no governo do Estado.” (2) Os rumos da democracia s4o universais, invaridveis no espago. O modo de segui-los 6 que depende das condigées nacionais de cada povo, que os tenta, por isso, por processes variados. De qualquer modo, seja em que pais for, a democracia, em esséncia, 6 uma sé, e — escreve Afonso Arinos (7) — o que a caracteriza — ‘sao, primeiro, as fontes do poder; segundo, a temporariedade do poder; tercei- ro, respeito aos direitos humanos”. (1) Tristhe do Athatde — mocracla @ democracias” — in Jornal do Brasil, de 3-6-1977. (2) Afonso Arinos de Melo Franco — Depolmento no inquérito telto pelo © Globo, publicado em ‘30.5476, sob o titulo: “A democracia estd morrendo?". + 14 R. Inf. legisl. Brasilia o. 15 n, 57 Jan./mar. 1978 Com a monarquia ou com a republica, com o presidencialismo ou com © parlamentarismo, com o federalismo ou o unitarismo, com o bi ou o unicameralismo, a democracia é, em substancia, sempre igual a si mesma, integraram-na certos valores permanentes, imutdveis, irredutiveis as contin- géncias nacionais. O mesmo sucede com outras ideologias, como o socialismo. Seus Processos variam na URSS, na China, na Hungria, na lugoslavia, em Cuba, na Pol6nia, na Alemanha Oriental, no Vietnam e em outros paises. Em cada um deles 0 socialismo apresenta uma cor prépria. Entrementes, no que tem de essencial, ele € 0 mesmo em todas as nagées que o adotaram. Supremacia do fator econémico na estruturagao da sociedade; inter- vencionismo estatal sem limites; luta de classes como determinante da historia; propriedade coletiva dos bens de produgéo; materialismo como. tilosofia de vida, séo, entre outros, acentos ténicos de todos os regimes socialistas (ditos comunistas), pois estao no préprio cerne da doutrina marxista, fonte inspiradora de todos eles. Poder oriundo da vontade popular; prevaléncia dos valores espirituais sobre os materiais; liberdade de pensamento e de iniciativa; garantia da propriedade privada; representatividade do povo no governo; respeito aos direitos fundamentais do homem, sao, a seu turno, principios inerentes & democracia, seja esta tentada em paises ultra ou subdesenvolvidos. Consegiientemente, quando, em debates sobre a democracia, se fala em relatividade, deve-se entender que, no que lhe toca, somente sdo relativas as possibilidades de cada povo de alcanga-la, visto serem os diferentes paises diferentemente desenvolvidos. Possui ela, fora dai, algo de absoluto, e esse absoluto esté no seu contetido humanista, que faz da democracia um ideal politico permanen- te, pelo qual os povos vém batalhando ha séculos. Democracia é fiberdade, 6 igualdade, é solidariedade. E regime do Povo, com o povo, pelo povo, para o povo. Se o povo nao esta presente na condugao da coisa publica, néo se fale em democracia, mesmo que tudo esteja correndo as maravilhas. Pode um ditador praticar atos genuinamente democraticos. Entre nés, inclusive, temos o exemplo de Vargas, que, quando ditador, iniciou, no Brasil, uma verdadeira revolugaéo social, através de uma legislagéo trabalhista de largo alcance democratico. Nem por isso, no entanto, se deve confundir as coisas, e, por muito que o Estado Novo tenha feito — e fez — pelo povo e pelo Brasil, ele ndo foi um Estado democratico. O mesmo se pode dizer em relagdo a Italia de Mussolini, € Alemanha da era de Hitler, ao Portugal Salazarista, 4 Espanha de Franco e a Russia de Stalin. Seria estupidez ou ma fé nao reconhecer que, naqueles paises, com aqueles ditadores, néo se tenha, em determinados setores de atividade, R. Inf, legis! Brosilio a. 15 n, 57 Jon./mar. 1978 1s feito algo de bom e de sério para o povo, conquanto a democracia tenha sido banida de todos eles. De outro lado, ninguém ignora que, até nos Estados democraticamen- te mais adiantados, seus governantes — quando no seu préprio povo — as vezes praticam atos que ferem frontalmente a democracia. A discrimi- nagao racial, nos Estados Unidos, e a discriminagao religiosa, na Irlanda, comprovam essa assertiva. Assente esse entendimento, forgoso é reconhecer, também, que, jus- tamente pela altitude em que se coloca o ideal democratico, é muito dificil atingi-lo e, para alcangé-lo, temos de caminhar por etapas, embora sem tergiversagées, O senso das realidades obriga, por isso, muitas vezes, a certas para- das e, mesmo, a certos recuos, que devemos tomar como estratégias, para efeito de resguardar a democracia, convindo firmar-se que esses recuos e essas paradas hao de ser situados como incidentes, apenas, inevitaveis, porém temporarios, no processo de desenvolvimento democratico. O mal 6 que, ali como aqui, hA os que procuram eternizar o efémero, & base de argumentos especiosos, como o de que o povo nao esteja pre- parado para a democracia. Ora, 0s povos, todos os povos, ndo séo mais do que agrupamentos de homens, os homens s4o todos iguais em natureza e todos, de qualquer parte, de qualquer condigao e em qualquer situag&0, sonham, em sua vida comunitaria, com aqueles valores que a democracia representa e por eles pugnam. Dentro dessa vis&o politica, havemos de admitir que todos os povos, em principio, estao preparados para a democracia, se bem que, de acordo com OS seus recursos e a sua cultura, a pratiquem com maiores ou meno- res imperfeigdes. Assim, cabe afirmar, sem sofismas, que a democracia, seja qual for a sua modalidade nacional, exige: a) poder fundamentado na vontade do povo; b)} regime representativo, com a participagao do povo na condugao da coisa publica, através das assembiéias legislativas; c) eqiiitativa participagao de todos nos bens da civilizagao e da cultu- ra, isto é, igualdade efetiva de oportunidades para todos os ho- mens, 0 que significa justi¢a social; d) garantia dos direitos fundamentais do homem: direito a vida, di- reito a educagao, direito ao trabalho, direito & assisténcia e di- reito ao ideal; e) pluralidade de partidos, a fim de que sejam aceitas todas as cor- rentes de opiniao; 16 R. Inf, legisl. Brasilia o. 15, 57 Jan./mar. 1978 f} subordinagao dos valores materiais aos valores humanos, posicio- nando-se o Estado como érgdo a servigo do homem, ‘ogo, colo- cando-se no homem, na sua plena realizagao, o fim ultimo do Es- tado; e g) decorrentemente, intervengdo do Estado unicamente na medida em que se fizer necessaria para que a sociedade que ele represen- ta alcance os seus objetivos, ou melhor, para que a nacdo se estru- ture, se fortalega, se afirme e se movimente, no concerto interna- cional, como uma coletividade humana. Finalizando essas consideragdes em torno da democracia e do papel do Estado, lembremos um trecho das “Exigéncias Cristas de uma Ordem Politica’, documento editado pela Conferéncia Nacional dos Bispos Bra- ‘OS, que se ajusta, com precisdo, ao nosso pensamento sobre a ma- “No nivel dos fins, o Estado ordena-se 4 pessoa. Essa, como su- jeito de direitos naturais inalienaveis, 6 origem, centro e fim da sociedade. No nivel da execugdo deste fim, as pessoas subordi- nam-se ao Estado, que dispde da autoridade para urgir a cola- boragaéo de todos no esforgo comum. Em virtude desta autori- dade, que tem sua Jjustificagao nos planos de Deus, sendo o ho- mem, por sua natureza intima, um ser social, o Estado pode tudo aquilo e s6 aquilo que 6 exigido para a realizagéo do bem comum.” (3) PLURIPARTIDARISMO, UMA EXIGENCIA DA DEMOCRACIA — PARTIDO E IDEOLOGIA Estabelecido ser necessario, em um modelo politico brasileiro, res- guardar-se a democracia, que a histéria demonstra ser o melhor dos regi- mes politicos, passemos a um outro tema de relevo, intimamente associa- do ao da democracia, também apaixonadamente discutido, nem sempre convenientemente equacionado, e que deve, igualmente, ser analisado a fundo, com honestidade, isengao e patriotismo, eis que de sua boa colo- cagao depende a propria estabilidade da democracia. Pronunciamentos os mais variados tém sido feitos a respeito, uns sé- rios, neutros, outros casuisticos; uns fundamentados, outros superficiais; uns ideatistas, outros cinicos; uns bem intencionados, outros interesseiros; uns realistas, outros fantasiosos. A verdade, ndo obstante, 6 que o problema dos partidos, em uma democracia, é dos mais importantes e deve ser encarado com objetividade, senso realista e civismo, considerados, apenas, os superiores interesses do homem e da coletividade. Partido 6 uma organizagao que visa ao poder. Mas nao ao poder pelo poder, como um fim ,e, sim, como meio. Porque o poder nao pode ser (3) Exighncias Cristis de uma Ordem Politica — documento da CNBB. R. Inf, legist. Brasilia a. 15 n. 57 Jan./mar. 1978 7 isolado de suas fontes e de seus fins. O poder, em si, é neutro. Nao 6 um bem, nem um mal. A sua qualificagao esta na dependéncia do emprego que dele se fizer. E essa sua utilizagéo esta vinculada aos fins que o partido tem. A ideologia do partido. Porque o partido 6 uma ideologia em agdo. O partido quer o poder para, através dele, realizar um programa. E um programa é uma carta de principios. £ uma filosofia politica. E uma ideologia. No se pode conceber um partido que pretenda o poder pelo poder. Isso seria 0 nao partido, o no poder. Politica, ciéncia do Estado, pressupde uma compreensdo do Estado, um conceito de Estado, um obje- tivo para o Estado. Que objetivo é esse? O que o partido que alcangar o poder inserir em seu programa. Isto 6, a ideologia do partido que estiver no poder. O partido comunista quer o poder para, pelo Estado, implantar o co- munismo. O partido fascista busca o poder para, por ele, organizar o Estado a imagem e a semelhanga do fascismo. Qs partidos democratas hao de tentar, também, pelo poder, a exe- cugao da ideologia democratica, Todo partido politico auténtico ha, por isso tudo, de ser ideolégico. 0 que nado quer dizer que atue fora das realidades. Um partido, por ser programatico, nem por isso deve deixar de ser, igualmente, pragmatico. Porque um programa naéo pode cegar os que o adotam, tirando-Ihes 0 senso comum e a visdo da realidade. Os homens de partido, sendo politicos, sabem que a politica, sobre ser uma ciéncia, 6, também, uma arte, a arte do possivel, e esse possivel 6 determinado pela realidade do meio em que os homens operam. No Brasil, os velhos partidos, por vicios de nossa formagao cultural, sempre estiveram alheios a essa realidade. Limitamo-nos, no passado, a imitar modelos alheios, europeus e americanos. Viviamos de costas volta- das para a nossa terra, embasbacados com as coisas de além-mar. Vale, por isso, a critica de Vamireh Chacon: “© que nos faz falta é, acima de tudo, uma visdo global da reali- dade nacional, para, a partir dela, tentarmos montar estruturas que sejam duradouras, isto 6, atendam as realidades nacio- nais”. (*) Depois de 1930, e, principalmente, depois de 1937, com a pregacao nacionalista de Vargas, simbolizada na “marcha para o oeste”, passamos a olhar mais brasileiramente os nossos problemas. Essa visdo da realidade 6 indispensavel aos partidos. Porque essa rea- lidade € elemento tipico, nacional, condicionante de suas atividades. &, em Ultima andlise, a cultura de cada pais, o fator caracterizante da hist6- tia de cada povo, inclusive de suas instituigdes. (4) Vamiren Chacon — entrevista a O Globo, em 20-12-76, 18 R. Inf. legisl. Brasilia a. 15 n. 57 Jan./mar. Nenhum partido pode dispensar esse elemento, que 6 o ch3o em que ele pisa, e, se n&o o levar em conta, faltar-Ihe-4 base e ele nado se firmara. Isso explica as diferengas formais que existem entre os regimes so- cialistas na URSS, na Hungria, na lugoslavia, na China, na Polénia 6 em Cuba, por exemplo; como explica, do mesmo modo, as diferengas entre os regimes democrAticos na Inglaterra, na Franga, na Alemanha Federal e nos Estados Unidos; como explicou, no passado, as diferengas entre os regi- mes fascistas de Portugal, da Italia, da Espanha e da Alemanha. Entretanto, malgrado essas nuances, o socialismo, como ideologia, & 9 mesmo na URSS, na Hungria, na jugoslavia, na China, na Polénia e em Cuba; como a democracia é idéntica na Inglaterra, na Franga, na Alema- nha Federal e nos Estados Unidos; como o totalitarismo da direita foi igual em Portugal, na Italia, na Espanha e na Alemanha. Os valores fundamentais do socialismo néo mudam na filosofia politi- ca que inspira os diversos paises que o praticam, nem os valores ultimos da democracia diferem nas nagées que a adotam, nem os valores basicos do fascismo divergem nos Estados que o seguiram. Nenhum partido 6, portanto, auténtico, se nao estiver a servico de uma ideologia, pois esta é sua ténica, a nota que o marca, o trago que o dis- tingue, o sinal que o qualifica. Partido puramente pragmatico, na acepgao de organizagao que busque © poder pelo poder, 6 a negagdo mesma do partido, definido como ins- trumento institucional com que se tenta o poder, sim, mas, para neste, com este, e através deste, chegar-se & consecugdo daqueles ideais que os homens nele agremiados procuram. S6 uma ideologia justifica a cria- ¢ao de partidos e a luta pelo poder que, dentro deles e por eles, os ho- mens empreendem. Partido sem ideologia n&o é partido, é simples aglomeragdo amorfa de individuos, 6 uma farsa, é um espetaculo triste, As vezes até circense. Realmente, nada mais doloroso, no plano politico, que presenciar-se, dentro de um mesmo “partido” alguns individuos defendendo a interven- gao estatal, enquanto outros advogam o laissez-faire; uns pregando o federalismo, outros o sistema unitério; uns querendo o regime bicameral, outros o unicameral; uns a livre iniciativa, outros o controle das ativida- des produtivas. E, infelizmente, em muitas partes do mundo, inclusive no Brasil, 6 o que se tem visto. Politica 6 atividade ideolégica, que se pratica com vistas a um obje- tivo. Lincoln, Hitler, Statin, Salazar, Franco, Mussolini, Churchill, Kennedy, Gandhi, esses foram, realmente, politicos. E foram, todos, homens de partido. Homens que tinham uma ideologia e lutaram por ela (até morre- ram por ela). E que, no poder, tentaram executar seus programas, trans- formando suas idéias em realidades sociais. Se, em todos os paises, ha miultiplos partidos politicos, isso ocorre justamente porque os homens tém diferentes e divergentes concepgdes R. Inf. legis!. Brasilia a, 15 n. 57 Jan,/mar, 1978 td da vida, das coisas do mundo. Pensam diferentemente sobre os proble- mas da religido, da economia, da administragado, da educagao, da faml- lia, da politica. E como todos se consideram certos, achando melhores que as dos outros as suas idéias, e desejando, por isso, que elas preva- tegam, reunem-se em grupos afins, isto 6, em diferentes partidos, dentro dos quais e através dos quais tentaréo atingir o poder e, uma vez no poder, implantar suas idéias. \sso explica os partidos da direita, do centro, da esquerda, da meia direita e da meia esquerda. Ha uma gama enorme de idéias, razao por que os homens se orga- nizam em tantos partidos. Trahit sua quemque voluptas, j4 dizia Virgilio. N&o podemos, dessarte, admitir partidos exclusivamente pragmaticos, pois, fazendo-o, estarlamos criando partidos sem finalidade, cujos mem- bros, ao invés de politicos, seriam a prépria negagao destes, eis que pretendendo o poder pelo poder, desvirtuariam o sentido da politica, atividade necessariamente teleoldgica e que, desse modo, seria ofendida, humilhada, distorcida e degradada. O poder, repitamos, em si, 6 neutro. E 6, também, o elemento unico pelo qual os povos podem realizar o seu destino. Esse destino esta marcado pelo uso que se fizer do poder. E isso é obra dos partidos, que, pelo poder, procuram alcangar esse ou aquele fim, ou seja, realizar esse ou aquele programa, em suma, transformar, em vivéncias politicas, socials e econémicas, as suas idéias, a sua filosofia, a sua concepgao do homem, da vida e do universo. Como diz G. Burdeau: “le pouvoir est une force au service d’une idée”. (5) O que o partido faz, uma vez no poder, 6, mutatis mutandis, 0 que o pai, no lar, procura fazer, exercendo seu patrio poder, o que o professor tenta, nas escolas, com sua autoridade de mestre; o que o empresario, como chefe de empresa, executa no setor industrial ou comercial. O pai usa seu poder para evitar aos filhos os maus caminhos e fazé- tos seguir os bons; o professor prega as verdades que aceita e que julga as melhores para os seus discipulos, que procura, assim, modelar ao seu jeito; da mesma maneira, 0 empresario, na diregao de suas empresas, conduz-se segundo um principio e visando a um objetivo claro, para tanto servindo-se de um método adequado. Em sintese, os homens, quando nao fogem 4 sua natureza, agem sempre em fungdo de uma meta a atingir, e, se assim procedem, em sua vida particular, n&o modificam sua conduta quando operam no plano coletivo, ao ingressarem num partido politico. Ter uma “filosofia de vida” é da esséncia mesma do homem, e este, que jamais renuncia a ela, sabe que, em politica, o Gnico modo de con- seguir o que se almeja é chegando ao poder, e este, normalmente, s6 pode ser obtido através do partido. jurdoau — Tralté de selonce polltique — Paris, 1966. (a 20 R. Inf. legisl. Brasilia a. 15 n. 5% Jan./mar. 1978 A propésito, é verdadeiramente edificante o que se passou na URSS, do que nos dé noticia o escritor americano Joseph Davies. Conta ele, no seu livro “Misséo em Moscou”: “A 5 de marco, no Plendrio do Comité Central do Partido, Stalin pronunciou um discurso extraordindrio sobre esta questao. Cri- ticou o Partido, por este ter dado excessiva aten¢ao ao desen- volvimento econémico e muito pouca ao funcionamente da ma- quina partiddria. Exigiu que cada membro do Partido se tornasse’ um soldado vigilante da protegdo de seus ideais contra os Esta- dos capitalistas, os espiées estrangeiros etc.” (°) £ comenta: “na URSS a politica penetra nas fabricas, nas oficinas, nas casas comerciais, nos transportes, etc.” Dessa noticia, verdadeira aula de politica dada por Stalin, cabe des- tacar: 4% — Justamente no maior pals onde se processa a experiéncia do marxismo, sistema flloséfico conhecido como “materialismo histérico”, no qual se d& supremacia ao fator econdémico no jogo das relagdes sociais, o Chefe de Estado condena a “exces- siva ateng&o” dada ao desenvolvimento econémico, em prejuizo “do funcionamento da maquina partiddria", conclamando os so- cos a que sejam “soldados vigilantes da protegao de seus ideais”. Isso é bastante significativo e exprime toda a forga das ideologias. Patenteia a primazia do idea! na informagdo das sociedades, mostrando a necessidade de nao se fugir aos principios e aos fins da filosofia que nés aceitamos para explicar e justificar a vida. 2° — Daf decorre, também, outro ensinamento: a necessidade da Infiltragdo politica em todos os setores de atividade humana. Porque uma ideologia sé se realiza pela politica, isto 6, quando os seus principios se traduzem nos 6rgaos institucionais que re- gem a vida coletiva. Os democratas devem aproveitar a ligéo. Dever, também, estar pre- sentes, com as suas idéias, nas fabricas, nas oficinas, nos lares, nos es- critérios, nas repartigées, nos quartéis, nos campos e nas cidades. Dis- cutindo, doutrinando, tentando conscientizar os seus semelhantes para as exceléncias da democracia. E como indaga Maritain: "... ndo tera a santidade crista que trabalhar no lugar onde também trabalha o heroismo particular da foice e do martelo, do fascio ou da cruz gamada?” (") A politica {auténtica) 6 sempre um veiculo de idéias, que ela semeia por todo o territério humano dos Estados. Nao ha politica verdadeira sem ideologla, sendo esta a medida do seu valor. (6) Josoph Davies — Mlsslo em Moscou — Editorial Calvino — Trad. ds Eduardo de Sena Castro — Filo, 1942. (7) Jacques Maritain — Humanismo integral — Trad. do Afranlo Coutinho — Gomp. Editora Nactonal, 1842 — $80 Paulo, : R. Inf, legisl. Brosilia a, 15 m. 57 Jon./mar. 1978 21

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