Download as pdf
Download as pdf
You are on page 1of 91
@ y da | | ‘| Hoa | O dia-bélico e 0 sim-bélico na construcdo da realidade EDITORA Boff, Leonardo. O despertar da aguia: o dia- VOZES WN = to Leonardo Boff 542 (0s guinze bilhes de anos de evolu- r O DESPERTAR DA AGUIA “ . ‘elo conhecem quatro grandes pata- ‘i ‘mares: 0 universo, a vida, o homem ¢ a humanidade, Estamos entrando ‘no quarto patamar: 0s seres humanos commen pase pos emjestados- s ‘i atom? numa aes it sipienien! ah Te ‘inica casa comum, Terra. Bes gaxe ae ee ‘A humanidade se descobre como es- pécie junto a outras espécies vivas, Descobre que possi um mesmo des- tino que o planeta Terra, que todos somos filhos e filhas da Terra. Mais ainda, que somos a prépria Terra em seti momento de sentimento, de re- flexio, de amok BG! veneragso. A i transigao do homem para a humani- : dade, do focal Jobal, do bem ‘ comum huma planetério se pelo mercado, ae : ¥ imordialmente 4 orto tizacdo sustenté- vel que garanta o patamar novo da Terra eda humanidade? 0 autor pro- longa neste livro as intuigSes do li- ‘ro anterior dguiae agalinha, uma metafora da condigao humana. Mostra como o universo, a histria social e pessoal se realizam dentro do jogo tenso ecriativo do caos edo boli- jimen- slio-iguia, Para entrarmos na nova $ abel {ase da humanidade urge despertar a ” ‘guia, Ela nos ajudaré a evitar uma -_ catdstrofee pode alimentar uma es- a r peranga sem fundada pelo sucesso de una planetizapo integradora “ Dados Internacionais de Catalogagéo na Publicacio (CIP) (Camara Brasileira do Livro, SR Brasil) Bolf, Leonardo (O dlespertar da Sguis: 0 dis-blico eo sim-bélica na construgio da realidade / Leonardo Bo. ~ Petrépolis, RJ: Vozes, 198, | ISBN 85- 1977-0 | 1. Antropologia filosfica 2. Civilizagio ~ Histéria 3. Cosmologia 4, Realidade 1 ‘Tiel, 97-5503 indices para catilogo: 1. Realidade: Filosofia. 111 epp-111 > Leonardo Boff Bibliotcce Mua. Ps, Afomso Asmses Bio soho oo vaorn - re O DESPERTAR DA AGUIA O dia-bélico e o sim-bélico na construgao da realidade 5* Edigao y EDITORA VOZES Petropolis 1998 © by Leonardo Boff Direitos para edigio brasileira cedidos & Editora Vozes Ltda. Dedicatéria Ruaa Frei Luis, 100 25689-900 Petrépolis, RJ Internet: http:/Avwvvozes.com. br Brasil A meméria de Frei Ludovico Gomes Mourao de Castro, ‘Todos os direitos reservados. Nenhuma parte desta obra poderd ser : " frade menor, grande editor e pensador césmico. reproduzida ou transmitida por qualquer forma c/ou quaisquer meios (Cletrénico ou mecinico, incluindo fotocépia e gravagio) ou arquivada em qualquer sistema ou banco de dados sem permis da Editora. Fez-se sdbio ao construir uma sintese viva entre 0 v6o da guia e as exigéncias da galinha. Fez-se mestre ao ensinar-nos quando deviamos ser Aguias e quando galinhas. FICHATECNICADAVOzES ee E animou-nos a buscar, por um caminho singular, a Gees Peacome : 2 pr6pria sintese, em todos os tempos e contratempos. DIRETOR EDITOR Vise Maar, OFM DIRETOR INDUSTRIAL Jou Lae Cas prroeagao Diggemag Romane oneng Sipe oi: aes Ries ISBN 85.326.1977-0 Ente lier foi composto¢impresso mas oficins gras da Editrn ones Lda ~ Rua Fei Las, 10. etsipolis, RJ ~ Brasil ~ CEP 25689-900 Te: (024 257-5112 - FAK: (024) 231-4676 ~ Caixa Postal 50023. Sumario | 3 dance Mun, Pe. Afow’ gelo no oneT® Biblistees Abertura, 11 axe Aaguia ea galinha, 0 sim-bélico eo dié-bélico: dimens6es da mesma realidade, 11 1. Que significa dia-bélico ¢ sim-bélico?, 11 2. Arcalidade é sim-bélica e dia-bélica, 13 3mm Meplons 0 demmenas 36 4, O jogo do sim-bélico ¢ do dia-bélico no universo, 19 % 5, As travessias do ser humano rumo A integragio, 21 Bibliografia para aprofundamento, 23 I Rumo & civilizacéo da re-ligagio, 25 1. Da insensatéz a sabedoria, 26 2. O fim das revolugées do neolitico, 27 3. O Adio dominador e o Prometeu conquistador, 29 4. Que sonhos nos orientam?, 32 5. A civilizagio da re-ligagio, 34 6. Aemergéncia de uma civilizacio planetiria, 38 7. Ahora e a vez da 4guia, 39 Bibliografia para aprofundamento, 43 big A éguia ca galinha, 0 sim-bélico e 0 dia-bélico na constitui¢ao do universo, 47 1. As varias imagens do universo, 47 2. Como é a cosmologia contempornea, 49 3. O planeta Terra e a emergéncia da vida, 54 4, Aemergéncia da vida humana, 61 5, A danga césmica da aguia ¢ da galinha, do sim-bélico ¢ do dia-bélico, 63 6. Se tudo comega, tudo também acaba?, 68 7. Caos e cosmos, dia-bolos e sim-bolos: 0 triunfo final da guia, 71 Bibliografia para aprofimdaménto, 79 ml A guia e a galinha, 0 dia-bélico e o sim-bélico na construgio da hist6ria, 83 1. Aevolugio bio-sécio-cultural dentro da evolucio césmica, 85 2. Qual é 0 motor secreto da histéria?, 92 2.1. Movimento versus instituigio, 93 2.2. Utopia versus historia, 97 2.3. Classes versus povo, 99 2.4. A casa versus a rua, 102 2.5. Conservadores versus progressistas, 103 2.6, Reforma versus revolucio/libertagio, 104 2.7, Esquerda versus direita, 105 2.8. O dionisfaco versus © apolineo, 108 2.9. Yin versus yang, 110 3, A guia e a galinha na civilizagio planetéria, 112 4, Um rito de passagem civilizacional, 113 5. O novo patamar da hominizacio: a noosfera, 118 Bibliografia para aprofundamento, 120 IV ‘A guia ¢ a galinha, o sim-bélico € 0 dia-bélico na construgio do humano, 124 1. A carteira de identidade do ser falante, 124 2. O ser humane, o iltimo a chegar no cenério da hist6ria, 129 3. O espirito: primeiro no cosmos depois na pessoa, 130 4. A subjetividade € césmica e pessoal, 133 5, Qual a misao do ser humane no universo?, 134 6, Polarizagdes do ser humano, 142 6.1. Ser humano: homem ¢ mulher, 143 6.2. Ser humano: utépico e histérico, 145 6.3, Ser humano: pottico ¢ prosaico, 147 6.4. Ser humano: ser de necessidade e de criatividade, 150 6.5. Ser humano: terrenal e divino, 153 6.6. Ser humano: sapiens e demens, sim-b6lico e dia-bélico, deca- dente e resgatavel, 157 6.7. Conclusio: o ser humano, né de relagdes totais, 160 Bibliografia para aprofandamento, 161 Conclusio, 165 Aluta entre a guia e 0 touro, 165 Glossario, 169 Abertura A guia e a galinha, o sim-bélico e 0 dia-bélico: dimen- s6es da mesma realidade O despertar da dguia significa 0 desdobramento da obra anterior, A dguia ea galinha: uma metdfora da condigéo humana. Naquela tentamos mostrar a coexisténcia da dimensao-éguia/galinha dentro da realidade circundante, especialmente do ser humano. Por dimensio-dguia entendemos a realidade e o ser humano em sua abertura, em sua capacidade de transcender limites, em seu projeto infinito. Por di- menso-galinha, seu enraizamento, seu arranjo existencial, os proje- tos concretos. Nessa queremos retomar esta tenso sob um Angulo semelhante, também desafiador e dialético: a coexisténcia do sim-bélico ¢ do dia-bélico no universo, na hist6ria e em cada pessoa humana. Ao lado do binémio 4guia/galinha, 0 sim-bélico/dia-bélico também nos pro- piciara uma fecunda experiéncia das coisas. E certamente nos possi- bilitaré um estado de consciéncia mais globalizador da realidade 1. Que significa dia-bélico e sim-bélico? Expliquemos, antes de mais nada, os termos sim-bélico e dia-b6- lico. Sua origem filolégica se encontra no grego clissico. Sim- bolo/sim-bélico provém de spmballein ou symballesthai. Literalmente significa: lancar (ballein) junto (syn). O sentido é: langar as coisas de tal forma que elas permanegam juntas. Num processo complexo significa re-unir as realidades, congregi-las a partir de diferentes Pontos e fazer convergir diversas forcas num tinico feixe. Originalmente existia por detras da palavra e do conceito simbolo (symbolas) uma experiéncia singular e curiosa: dois amigos, por con junturas aleat6rias da vida, tém que separar-se. A separacio é sempre dolorosa. Implica sentimento de perda. Deixa muita saudade para trds. Assim os dois amigos tomavam um pedaco de telha e cuidado- samente o partiam em dois, de tal modo que, juntados, se encaixavam perfeitamente. Cada um carregava consigo 0 seu pedaco. Se um dia voltassem a encontrar-se, mostrariam os pedacos que deveriam en- caixar-se exatamente. Caso se encaixassem, simbolizava que a ami- zade nao se desgastou nem se perdeu. Era o simbolo (eis a palavra), vale dizer, 0 sinal de que, apesar da distancia, cada um sempre conservou a meméria bem-aventurada do outro, presente no caco bem cuidado de telha. Deste significado origindrio de sfm-bolo, derivou-se natural- mente 0 outro: sim-bolo cofo sinal de distingao. Cada pafs, cada cidade, em certa época cada familia de algum renome, e hoje cada produto, tém sua marca registrada, seu logotipo ¢ seu simbolo. Até na religifo penetrou essa significacio. Para a teologia cristi, por exemplo, cunhou-se a expressio técnica siimbolo da fé para expressar o credo e os dogmas fundamentais. Eles sio os sinais de distingao, a marca registrada da f€ cristi, diferente de outras formas de f. E 0 dia-b6lico? : Dia-bélico provém de dia-ballein. Literalmente significa: langar coisas para longe, de forma desagregada e sem diregio; jogar fora de qualquer jeito. Dia-bdlico, como se vé, € 0 oposto do sim-bilico. E tudo o que desconcerta, desune, separa e opée. Como se pode facilmente depreender: a vida pessoal e social € urdida pela dimensio sim-bélica e dia-bélica. A nivel pessoal é feita de amizades, de amores, de solidariedades, de unides e de conver géncias. E a0 mesmo tempo é atravessada por inimizades, édios, impiedades, desunides e divergéncias. A nivel social vem caracteri- zada por lutas entre povos, entre sistemas sociais, entre classes, entre instituigdes e seus usuarios. E, a0 mesmo tempo, nela h4 convivéncia acifica, pactos de solidariedade e convergéncias politicas em vista do bem comum das nagdes ¢ do planeta. Mas nunca o dia-bélico e 0 sim-bélico se anulam ou um suplanta totalmente 0 outro. Eles convivem sempre em equilfbrios dificeis, dando dinamismo a vida. Nao perpassario eles toda a realidade, também a césmica e natural? 2. A realidade é sim-bélica e dia-blica Sim, podemos ir mais longe e afirmar: dia-bélico ¢ sim-bélico so principios estruturadores da natureza e do cosmos, dos compor- tamentos sociais e da prépria natureza humana, Na linguagem da ecologia se constata, por exemplo: a natureza tem caracterfsticas de associagio, de interdependéncia, de solidarie- dade e de complementaridade, numa palavra, de cosmos (= harmo- nia ¢ beleza). Ao mesmo tempé, caracteristicas de parasitismo, concorréncia, oposicéo, antagonismo e destruicio, numa palavra, de desequilibrio e desorganizagio) caos Da biografia da Terra sabemos das inimaginaveis violéncias que ocorreram com exterminacdes em massa espantosas. Nos tiltimos 570 milhdes de anos, apés 0 aparecimento dos vertebrados, ocorre- ram cerca de 15 devastagdes biol6gicas em massa. Duas delas exter- minaram cerca de 90% da vida das espécies. A primeira coma fratura da Pangéia (0 continente tinico originério) e a conseqtiente formagio dos continentes. O fragor foi tio avassalador que a vida animal, terreste ¢ marinha quase desapareceu. Encerrava-se 0 paleoz6ico. A segunda ocorrett hé 65 milhées de anos. Aconteceram mudan- gas profundas nos climas e no nivel das éguas acednicas. Associado a isso um asterdide rasante, do tamanho presumivel de 9.6 quilometros de diametro, teria colidido com a Terra. Ter-se-ia produzido uma hecatombe formidavel de fogo, de maremotos, de detritos lancados a0 ar, a ponto de provocar uma noite prolongada de anos, infestada de gases venenosos e assassinos. Pereceram os dinossauros depois de 43 130 milhGes de anos de dominio soberano sobre todas as espécies ¢ em todo o planeta. Desapareceu 50% da vida na Terra e 90% da vida no mar. Encerrou-se a era mesoz6ica, Bis a presenga devastadora do dia-bolico na natureza e na Terra. Hi analistas vindos da biologia e da cosmologia que suspeitam estarmos na iminéncia de outra devastagio em massa. Ela estaria em curso jé ha dois milhdes de anos com as glaciagées que, notoriamen- te, dizimaram vidas vegetais e animais. Mas apés 0 neolitico irrom- peu um meteoro rasante, perigoso e ameacador: o ser humano, 0 homo habilis e sapiens. Com sua tecnologia, especialmente hoje alta- mente energfvora, acelera 0 processo de exterminagio a nfveis quase incontrolveis. Ser possivel evitar 0 colapso ecoldgico? Eis 0 desafio ético e politico que se nos antolha, Podemos contornar a ameaga com sabedoria, com autocorrecio, com veneragio € com compaixio, Nosso livro cré neste processo de resgate do ser humano e da Terra. Vamos dar mais um exemplo da bipolaridade com referéncia 4 natureza e a Terra. E sem dtivida fascinante e tranqiiilizador andar numa floresta virgem e priméria, captar a consorciagao das plantas, detectar os parasitas nos troncos, identificar as grandes érvores, os arbustos, as tabocas e as gramfneas; desfrutar do frescor do ar, das nuances do verde, da sinfonia dos ruidos, da filtragao dos raios solares ¢ da sombra benfazeja. A harmonia do ecossistema nos pervade ¢ alimenta nosso centro pessoal. E uma experiéncia do sim-bélico. Conhecendo, entretanto, um pouco de biologia e de botinica, mal imaginamos a luta renhida que simultancamente se trava no reino vegetal. As plantas se sobrep6em umas as outras ¢ lutam para garantir seu lugar ao sol. Em fungio de ganhar espaco, promovem guerras quimicas no subsolo, com emissio de venenos, inibidores e bactérias, opondo plantas e raizes a outras plantas e raizes. Procura-se vencer a concorrente ¢ eventualmente eliminé-la. Eis a agio do dia-bélico, “a O que pareceria, 3 primeira vista, cooperativo, associativo e soli- dirio, emerge agora como concorrencial, biofigico e destruidor. Hi coexisténcia tensa ¢ dramética do sim-bélico com o dia-bélico. aia (© que dissemos da floresta, podemos estendélo a toda a nature- za. Ela é mie generosa e ao mesmo tempo mie voraz, E sébia (nela pé regularidades ¢ harmonias, a articulacio da parte e do todo). E simultaneamente também insana (crueldade na reprodugio quando 9 macho € morto, como no caso do louva-a-deus, extingdes em ‘massa, cataclismos destruidores). Produz tudo e também tudo dévo- 1a, Nela ha vida e morte em profusio. TrilhGes de partfculas ¢ feixes energéticos jorram do vacuo quintico a cada fracio minima de tempo. Produzem-se milhdes de espermas. Um sem-nimero de évulos. Flores aos milhares. E sementes incontéveis. A maioria desaparece € morre no momento mesmo em que nasce. Como se hi de entender esse fendmeno de vidae de morte? Fenémenodia-bélico: ¢ sim-bélico? Historicamente, uma linha de interpretagio privilegiou 0 pélo sim-bélico da natureza, quer dizer, 0 casmético (que vem de cosmos = ordem e beleza). Vé a natureza como mie-natureza, produtora fecunda, nutridora generosa, regencradora inteligente, criadora sabia de equilibrio e de harmonia. O lema é: “a vida vivifica a vida”. Outra enfatizou 0 pélo dia-bélico, quer dizer, 0 caético (que vern de caos desestruturacio). Ressalta na natureza a huta entre as espécies com a vit6ria do mais adaptével, a violéncia de bactérias, de animais como © tubario, ¢ a implacavel viruléncia dos vulcdes ¢ furacées. O lema € “a tua morte éa minha vida" Ambas as correntes fizeram historicamente fortuna. De certa forma dividem até hoje as opiniées. Incidem na cultura, nas atitudes de pessimismo ou otimismo cultural, politico, econdmico ¢ ecold- gico. Face ao futuro, produzem cenérios de esperanca ou de tragédia, conforme se acentue mais 0 sim-bélico ou 0 dia-bélico A mesma polarizagio dia-bélico/sim-bélico encontramos no ser humano. Ele é simultaneamente sapiens ¢ demens. E portador de 15 inteligéncia, de amorizacio, de propésito. Eao mesmo tempo mostra deméncia, excesso, violéncia e impiedade. Aprofundemos um pouco mais essa questio, pois ela dever4 embasar nossas reflexes a0 longo de todo o livro. 3. O homem sapiens ¢ demens Todaa nossa cultura, 4 deriva do iluminismo, exalta o homo sapiens, o homem inteligente e s4bio. Duplicou-Ihe até a qualificagio. Cha ma-o de sapiens sapiens, s4bio-sdbio. Magnifica sua atitude conquis- tadora do mundo, desvendadora dos mecanismos da natureza, interpretadora dos sentidos da hist6ria. Reconhece no ser humano sapiens sapiens uma dignidade inviolavel. Curiosamente, os mesmos que afirmavam tais exceléncias do ser humano na Europa, especialmente a partir da revolucio francesa (1789), as negavam em outros lugares: escravizavam a Africa, assu- jeitavam a América Latina, invadiam a Asia. Por onde passavam deixavam rastos de devastacio e de pilhagem de riquezas materiais ¢ culturais. Mostravam no ser humano o lado de deméncia, de lobo voraz ¢ de sata da Terra. E 0 homo demens demens. Hoje, dada a degradacao da condigéo humana e ecolégica mun- dial, despertamos do sono iluminista. Estamos espantados com a possibilidade de o ser humano demens demens se fazer ecocida® e geocida*, vale dizer, de eliminar ecossistemas e de acabar com a'Terra. Ele ja mostrou que pode ser suicida, homicida e etnocida. Colocados os dados assim, justapostos e em miitua contraposigio ~0 diabélico e o simbélico, o sapiens e 0 demens ~ lanca-se esponta- neamente a pergunta: como construir 0 humano se nele convivem © anjo da guarda e 0 diabo exterminador? Como articular uma ars combinatoria (arte combinat6ria) que permita uma alguimia para » Sempre que aparecer ese sna junto palora signi que ela sero explicadse no lotto. 16 construir o ser humano utilizando com sabedoria as energias do ‘im-bolico ¢ do dia-bélico? Onde esta o mago capaz desta transfor- macio? Precisamos construir pontes. Criar uma terceira margem. Ultra~ passar oposigSes. Importa assumitr o dia-bolico e o sim-b6lico num hivel superior e includente. Antecipando uma resposta inicial a esse desafio na natureza. rio ser humano, direi com referéncia as questdes acima suscitadas: as devastagoes da biosfera foram de suprema vio- Jéncia, mas nunca exterminaram completamente a vida. Depois de cada hecatombe a Terra necessitou de 10 milhes de anos para refazer-se do impacto e reconstituir a biodiversidade. Mas conseguiu reconstruir stia ordem e sua harmonia . A floresta, com seus antago- nismos e associagdes, forma um ecossistema ordenado e belo. A natureza, maternal ¢ ameagadora, constitui um imenso superorga- nismo vivo, sistema aberto de inter-retro-relagbes que Ihe confere unidade, totalidade, dinamismo ¢ elegincia. Ela nao € biocentrada, como se a vida devesse sempre triunfar, Ela dé lugar 4 morte como forma de transformacio. Ela, na verdade, equilibra sempre vida ¢ morte. Avida humana, demente e sabia, € parte ¢ parcela da hist6ria da vida, Esta, por sua vez, € parte e parcela da hist6ria da Terra. A vida humana deve, pois, ser entendida na légica que preside os processos da Terra, da natureza e do inteiro universo. Nao pode ser tomada como uma provincia’ parte, desarticulada do todo. O dia-bélico deve ser sempre visto em relacio dialética com o sim-bélico ¢ vice-versa, Por mais que isso nos custe em termos de compreensio. A razdo nao € tudo, Tem alcance ¢ limites. H4 razGes que transcendem a razio. Asvezes somente a empatia, a intuicio e 0 coragio podem alcancé-las. Outras vezes elas permanecem na dimensio do mistério, possivel- mente sé decifrével na vida para além desta vida. Por isso, ao longo deste livro vamos sustentar a seguinte tese: 0 humano se constr6i e deve construir-se, nfo apesar da contradicio dia-bélico/sim-bélico ou Aguia/galinha, mas com e através dessa 7 contradigao. Na construgio do humano entram 0 caos ¢ 0 cosmos o demens e 0 sapiens, o dia-bélico e o sim-bélico. Nao somente ele se constr6i nessa l6gica complexa, mas também © préprio universo. Os conhecimentos cosmolégicos, as vis6es da nova fisica das particulas elementares e dos campos energéticos, a percepcio que a biologia molecular e genética nos fornecem, numa palavra, o que o discurso ecolégico (que incorporae sistematiza todos estes saberes) nos ensina, é a inclusio dos contrarios, é a lei da complementaridade, € 0 jogo das interdependéncias. F a teia de relag6es pelas quais tudo tem a-ver com tudo em todos os momentos € em todas as circunstancias. E 0 funcionamento articulado de sistemas e subsistemas que tudo e a todos englobam. Numa palavra, 6a visio holfstica* e hologréfica®. O dia-bélico e © sim-bélico, a éguia e a galinha se encontram dentro de um sistema maior que os encerra, os dinamiza ¢ também os supera. Na verdade, como veremos, eles constituem 0 motor secreto da evolucio e de todo movimento universal. Ambos tém uma raiz comum: a interdependéncia entre todos os seres. Um precisa do outro, vive com o outro, através do outro, para 0 outro. Todos se complementam, Ninguém fica fora da rede de relagées includentes e envolventes. Ninguém apenas existe. Todos inter-cxistem ¢ co- existem, This oposig6es so lados de uma mesma realidade, una, diversa, contradit6ria, plural. Quando falamos de complexidade, queremos expressar essa natureza singular da realidade. Nao hi o ser simples. Todos os seres so complexos. Quanto mais relacionados, mais complexos. Conseqiientemente surge a légica do complexo que ultrapassa a I6gica linear da identidade pura simples. E a légica dialégica que se realiza estabelecendo conexdes em todas as direcdes As dificuldades referentes a coexisténcia do dia-bélico com 0 sim-bélico se prendem ao fato de serem vistos separados e opostos. 18. Nio se toma em conta a conexio, nem sempre visivel ¢ nio raro misteriosa, existente entre eles. A muitua pertenca e complementari- dade dentro de um sistema maior. -bélico no universo 4, O jogo do sim-bdlico ¢ do dic ‘Antecipamos aqui d que iremos detalhar num capitulo espectfico mais adiante. A légica do universo e de todos os seres nele existentes é esta: organizacio — desorganizacdo — interacdo — reestruturagéo — nova organizacio. Nunca hé um equiltbrio estitico, mas dinamico e sempre por fazer. Sempre hé a eco-evolucio. A virtude principal nio é aestabilidade, mas a capacidade de criar estabilidades novas a partir de instabilidades. A légica da natureza nfo é recuperar 0 equilibrio. anterior, mas gestar novas formas de equilfbrio aberto. Esta aptidio permite a vida desenvolver-se, produvzir a diversidade e perpetuar-se ‘A vida inventa até a morte para poger continuar num nivel superior € mais aberto. universo se construiu e se constréi a partir € através do dia-b6lico, do caos, o big bang primordial. Esse dia-bélico é genera tivo, pois propicia novas formas de organizacio. Faz evoluir o cosmos sob formas cada vez mais sim-bélicas, complexas ¢ ricas. Nas palavras de nosso tema, 0 sim-bélico se constr6i a partir do dia-bélico, O sim-bélico se refaz € se reestrutura continuamente na medida em que se confronta, integra e eleva a niveis mais altos o dia-bolico que carrega sempre dentro de si. Um exemplo singelo tirado do estémago de uma vaca pode ilustrar 0 que estamos afirmando. O est6mago € habitado por uma imensa col6nia de bactérias que se nutrem de celulose. A vaca come © pasto que contém celulose. Eis o alimento das bactérias. Por outra Parte, a vaca faz 0 bolo alimentar que absorve trilhdes e trilhdes destas bactérias. Alimenta-se delas mediante aruminagio do boloalimentar. A vaca se faz, assim, predadora das bactérias, como as bactérias se _fazem predadoras da celulose. As bactérias comem o pasto-celulose da vaca ¢ sio, por sua vez, comidas pela vaca. Sem 0 pasto-celulose as bactérias nao existiriam. E sem as bactérias as vacas também nio, porque sem a ruminagio das bactérias no bolo alimentar morreriam de inanigio e de fome. Vé-se aqui a miitua dependéncia, a simbiose entre as bactérias e a vaca. Importa ver, portanto, 0 conjunto, a unidade feita dos elementos opostos, 0 dia-bélico ¢ 0 sim-bdlico, bactérias e vaca. Eles se fazem complementares. A vaca precisa das bactérias € as bactérias precisam davaca. Elas dizem:a tua vida éa minha morte, a tua morte €a minha vida. Elas se complementam A teologia crista, em sua sabedoria antiga, contemplava esta mes- ma dimensio na Igreja de Cristo. Chamava-a ousadamente de casta meretrix, casta meretriz. E casta, dizia-se, porque vive da graca do Cristo. E meretriz porque continuamente atraigoa 0 divino Esposo. ‘Como sinal de Deus no mundo (sacramento), participa da ambigitidade de todo sinal: pode ser incompreendida ou mal interpretada. Em razio. disso pode ser um sinal e um anti-sinal de Deus. Como ensinavam, ha muito, os tedlogos: o sacramento da Igreja contém inevitavelmente uma dimensio dia-bélica ¢ uma dimensio-sim-bilica. O esforgo no con- siste em acabar com esta tensio. Enquanto vivermos na histéria cla é insuperdvel. O esforco consiste em nunca permitir que o dia-bélico ganhe hegemonia, mas o sim-bélico. E também ni se h4 de querer erradicar o dia-bélico, sendo que ele seja integrado de tal maneira que acabe por reforcar e conferir dinamica ao sim-bélico. Voltemos a situagio do ser humano. Ele é sapiens e demens. Como construf-lo nos dias de hoje, pessoal e socialmente, quando mostrou falta de sabedoria e imensa capacidade de deméncia? A questéo € complexissima. Talvez 0 caminho seja até inacessivel & pura razio analitica. Exige, antes, uma razio pritica ¢ simbélica, sensfvel a valores. Efetivamente, a deméncia humana comporta uma dimensio ética. Vale dizer, supde responsabilidade, culpa, reparagio, reversibilidade e evitabilidade. O mal ético na historia sempre, desde — 16, foie continua sendo um desafio para toda concepeio humanistica da vide (© mal nao est af para ser compreendido, mas para ser combatido. Na medida em que é superado, deixa entrever sua ordenagio a um todo maior no qual deixa de ser absurclo. Apresenta-se como incen- tivador na construcio dle novos caminhos ¢ de estados de consciéncia fais altos ¢ maduros. A partir daf ele vem investido de sentido, Do gia-bélico gesta-se 0 sim-bélico Importa, portanto, descongelar o mal ¢ 0 dia-bélico. Colocé-los em movimento, como parte de um processo. Fazem parte da cosmo- génese ¢ da antropogénese. £ condi¢ao originaria da evolucio Mas cabe honestamente reconhecer: nem sempre esse sentido perceptivel. Ele exige f e esperanca. Essas atitudes nfo sio volunta~ tisticas. Estio fundadas no carter virtual da propria realidade que carrega em seu bojo 0 sentido encoberto. Num sentido global, esse sentido se revela em sua paténcia somente no fim. Até Ii cabe-nos esperar e crer pacientemente. Essa atitude exige desprendimento, serenidade e sabedoria. E uma condicao inevitavel de nosso estado de criaturas, limitadas e sempre abertas para frente ¢ para cima. 5.As travessias do ser humano rumo ad integragio. Para alcangarmos sabedoria que nos oferega alguma luz sobre a conexio dia-bélico e sim-bélico da realidade, importa: Em primeiro lugar, tirar o ser humano de seu falso pedestal e de sua solidio onde se autocolocou: fora e acima da natureza. E seu antropocentrismo ancestral e seu individualismo visceral. Ele inter- existe € co-existe com outros seres no mundo ¢ no universo. Ele precisa reconhecer esse vinculo de solidariedade césmica, ¢ inserir-se Conscientemente nela. A centralidade em si mesmo — antropocen- trismo ~ é sinal de arrogincia e de falsa consciéncia. Em primeira instincia, nés somos para a Terra. Somente a partir daf, a Terra é para és. aa Em segundo lugar, importa devolver o ser humano a comunidade dos humanos. Descobrir a familia humana, o sentimento de solida- riedade, de corresponsabilidade, de familiaridade, de intimidade ¢ de subjetividade. Hoje a planetizacao se realiza em sua idade de ferro, sob 0 mercado competitivo ¢ nao cooperativo. Por isso faz tantas vitimas. Mas ele cria as precondig6es materiais para novas formas de planetizacao: a politica, a ética, a cultura ¢ outras. Oferece a base imprescindfvel para uma nova etapa da hominizacio: a etapa plane- téria, da consciéncia da espécie ¢ da tinica sociedade mundial. A ela se ordena, quer queira quer nao. Em terceiro lugar, importa passar da humanidade 4 comunida- de dos seres vivos (biocenose*). O ser humano precisa desenvol- ver veneragio, respeito, piedade, compaixio para com todos os seres que sentem ¢ sofrem. Cruel e desumano é matar criancas e torturar animais. E falta de/compaixio manter vacas confinadas, num estreitfssimo cubjculo, com alimentagio quimicamente ba- lanceada, para que se transformem em fibricas de carne. Dramé- tico, entretanto, € perder a piedade para com a vida humana e compaixio para com todos os que sofrem. Sem essas atitudes, nada seré impossfvel, nem guerras nucleares, nem colapsos eco- logicos, nem a autodestruicio da espécie homo. Importa defender a vida, os valores da vida e uma politica orientada para a salvaguar- da ¢ desenvolvimento integral da vida Em quarto lugar, urge passar da comunidade dos seres vivos (biocenose*) a Terra, entendida como Grande Mae, Gaia* ¢ super- organismo vivo. O ser humano é filho e filha da Terra. Mais ainda, € a propria Terra que em sta evolucéo chegou ao estégio de consciéncia reflexa, de amorizagio, de responsabilizagio e de veneragio do Mistério, Em quinto luger, importa passar da Terra ao cosmos. O que o set humano é em relagio 3 Terra (a consciéncia eo amor), € a Terra em relacio ao cosmos. Um dos lugares, quem sabe, entre outros milhées milhées onde irrompeu reflexamente 0 Espirito ¢ a Consciéncia ¢ ‘jmor incondicional. A Terra é um dos cérebros e um dos corages do cosmos por n6s conhecido, Por fim, urge passar do cosmos ao Criador. Cabe ao ser humano Geciftar 0 Mistério que perpassa e suibjaz a todos os seres e a todo 0 gniverso. © homen/mulher moderno que passou pela universidade @geralmente agnéstico, Tem dificuldade em crer. E, quando cré, tem Gificuldade em mostrat sua fé. Diferentemente se comportava 0 ser hpumano de outras etapas da evolugio. Ele sabia dar ao Mistério mil enominac6es. Fazer-Ihe festas, celebrar-Ihe o advento. Enfim, 0 ser Jhumano se descobriae se descobre ainda hoje um ser espiritual, filho " efilha de Deus, Deus mesmo por participacao. Queremos, em nosso texto, dialetizar a guia ¢ a galinha, o dia-bélico e 0 sim-bélico, 0 caos e o cosmos, a fim de apresentar uma tentativa singela de integraco que seja holistica*, aberta e esperan- psa face A crise que a todos desola e acrisola Bibliografia para aprofundamento Araiijo de Oliveira, M., Erica e préxis histbrica, S. Paulo, Atica, 1995. Arendt, H.,.A condi¢éo humana, Sao Paulo, Forense Universitaria, 1997. Assmann, H., Metdforas para reencantar a educagdo. Epistemologia ¢ didatica Editora UNIMER Piracicaba 1996. Berry, Th., O sonho'da Terra. Petropolis, Vozes, 1991 Boff, L., O momento sim-bélico ¢ dia-bélico no sacramento da Igreja (do livro em alemio Die Kirche als Sakrament im Horizont der Welterfahrung, Paderborn, Bonifacius-Druckerei, 1972, 476-498) Boff, L., Elementos de uma teologia da crise, mA vida segundo o Espirito Petrépolis, Vozes, 1982, 11-35. Boff, L., A nova eva: a civilizagao planetdria. Atica, S. Paulo, 1994. Capra, F., Sabedoria incomum. 8. Paulo, Cultrix, 1991 Capra, E, A teia da vida. Uma nova compreensao cientifica dos sistemas vives. S. Paulo, Culerix, 1997 23 Duve, C. de, Poeira vital. A vida como imperativo césmico. S. Paulo, Campus, 1997. Gleick, J., Caos. A criago de uma nova ciéncia. S. Paulo, Campus, 1989. Gribbin, J., No inicio, Antes e depois do big bang. Rio de Janeiro, Campus, 1997, Johnson, G., Fogo na mente. Ciéncia, Fé ea busca da Orden, Rio de Janeiro, Campus, 1997. Leis, H.R. et al., Ecologia e politica mundial. Petrépolis, Vozes, 1991. Lipnach, J/Stamps, J., Networks, rede de conexes. Pessoas conectando-se com ‘pessoas. S, Paulo, Aquariana, 1992. Lutzemberger, J., Fin do futuro? Porto Alegre, Editora Movimento, 1980, Maturana, H. ¢ Varela, FA drvore da vida. As bases bioldgicas do entendimento ‘humano, Campinas, Editorial Psy II, 1995, ‘Morin, E., Ciéncia com consciéncia. Rio de Janeiro, Francisco Alves, 1995. Miller, R., O nascimento de uma cvilizagao global. S. Paulo, Aquariana, 1994. Prigogine, I. e Stengers, L., A nova alianca, Metamorfose da ciéncia. Brasilia Editora da Universidade de Brasflia, 1990. Russel, P, O despertar da Terra. O cérebro global. S. Paulo, Cultrix, 1991. Sagan, C., Pilido ponto azul. Uma visio do futuro da humanidade no espaco. S Paulo, Companhia das Letras, 1996. - Souza, E., Do diabélico ao simbélico em mitologia. Brasflia, Editora da Univer- sidade de Brasilia, 1980. Tolan, DS., Cosmolagia numa era ecoligica. S. Paulo, Loyola, 1994 Unger, N.M., Encantamento do humano: ecologia ¢ espirtualidade. S. Paulo, Loyola, 1991. Ward, P, O fim da evolugio, Extingdes em massa ea preservagio da biodiversidade. Rio de Janeiro, Campus, 1997. Weil, P, Sementes para uma nova era. Petropolis, Vozes, 1986. Zohar, D., O ser quéntico. Uma visio revolucionéria da natureza humana e da consciéncia baseada na nova fisica. S. Paulo, Best Seller, 1991. m4 I Rumo a civilizagao da re-ligacio ‘Analistas, especialmente vindos da biologia, das ciéncias da Terra edacosmologia, nos advertem que o tempo atual se assemelha muito as épocas de grande ruptura no processo da evolucio, épocas carac- terizadas por extingGes em massa. Efetivamente, a humanidade se encontra diante de uma situagio inaudita. Deve decidir se quer continuar a viver ou se escolhe sua propria autodestruicio. Orrisco nao vem de alguma ameaga césmica—o choque de algum. meteoro ou asteréide rasante — nem de algum cataclismo natural produzido pela propria Terra ~ um terremoto sem proporgées ou algum deslocamento fenomenal de placas tectonicas. Vem da propria atividade humana. O asterdide ameacador se chama homo sapiens demens, surgido na Africa h4 poucos milhées de anos. +) Pela primeira vez no proceso conhecido de hominizagio, o ser hhumano se deu os instrumentos de sua propria destruigao. Criou-se Verdadeiramente um principio, o de autodestruicio, que tem sta contrapartida, o principio de responsabilidad. De agora em diante a existéncia da biosfera estara mercé da decisio humana. Para conti- Duar a viver o ser humano deveré queré-lo. Teri que garantir as condigdes de sua sobrevida, Tudo depende de sua prOpria responsa- bilidade, O risco pode ser fatal e terminal. Nos iltimos trés séculos, a humanidade ocidental se organizou Mais na insensatez do que na sabedoria. Seu estilo de vida € hoje Tuundializado. A cle estéligada a destruicao de ecossistemas,aameaga Nuclear ¢ a falta de compaixio, relegando milhées e milhdes de Pessoas 4 miséria. Os indicadores da situagio mundial sio alarmantes. Deixam transparecer pouco tempo para as mudancas necessirias. Estimativas otimistas estabelecem como data-limite 0 ano 2030. A partir daf a sustentabilidade do sistema-Terra nio estar mais garantida, Agora, porém, mais do que nunca precisamos ter sabedoria Sabedoria para captar as transformacées imprescindiveis. Sabedoria para definir a diregio certa. Sabedoria para projetar o sonho que nos guiard. Sabedoria, enfim, para priorizar as agdes concertadas que Vio traduzir este sonho em realidade. 1. Da insensatez a sabedoria Resumidamente, trés sio os nés probleméticos que, urgente- mente, devem ser desatados: 0 né da exaustdo dos recursos naturais nio renovaveis, o né da suportabilidade da Terra (quanto de agressio. ela pode suportar?) € 0 né da injustica social mundial. Nao pretendemos detalhar tais problemas amplamente conhe- cidos, Apenas queremos compartilhar e reforcar a conviegio de muitos, segundo a qual a solucio para os referidos problemas nio se encontra nos recursos da civilizacdo vigente. Pois 0 eixo estru- turador desta civilizagio reside na vontade de poder e de domina- cao. Assujeitar a Terra, espoliar a0 maximo setis recursos, con- quistar povos e apropriar-se de suas riquezas, buscar a prosperi- dade mesmo 3 custa da exploraco da forca de trabalho e da dilapidagdo da natureza: eis 0 sonho maior que mobilizou e con- tinua mobilizando o mundo moderno. Ora, esta vontade de poder ede dominagio esta levando a humanidade e a Terra a um impasse fatal. Ou mudamos ou pereceremos ‘Temos que mudar nossa forma de pensar, de sentir, de avaliar € de agir. Somos urgidos a fazer uma revolugio civilizacional. Sob outra inspiracio e a partir de outros princfpios mais benevolentes para com a Terra e seus filhos e filhas, Por ela os seres humanos poderio salvar-se e salvar também o seu belo e radiante planeta Terra. Mais ainda. Esposamos a idéia de que os sofrimentos atuais ssuem uma significa que transcende a crise civilizacional. Eles F ordenam a algo maior. Revelam o trabalho de parto em que estamos, sinalizando o nascimento de um novo patamar de homini- gacio. Estio surgindo os primeiros rebentos de um novo pacto social entre 0s povos e de uma nova alianca de paz e de cooperacio com a Merra, nossa casa comum. Recusamo-nos a idéia de que os 4,5 bilhées de anos de formacio da | era tenham servido a sua destruigéo. As crises ¢ os softimentos se " ordenam a uma grande aurora, Ninguém poder deté-la. De uma época de mudanca passamos a mudanga de época. Estamos deixando para tris tum paradigma que plasmou a hist6ria nos tiltimos quinze mil anos. 2, Osfim das revolugses do neolttico Ha dez ou doze mil anos atrfs o ser humano inaugurava o neolitico. Abandonou as cavernas e se aventurou na conquista do mundo exterior. Transformou-o por sucessivas revolucées que po- demos chamar de revolugées do neolitico. ) Aprimeira delas, a mais universal de todas, foi a revolugao agricola Domesticaram-se animais ¢ plantas, irrigaram-se campos, criaram-se © vilas ¢ cidades e garantiu-se a infra-estrutura da subsisténcia material ‘dos seres humanos. A partir desta época langaram-se as rafzes do / patriarcalismo, quer dizer, da dominagio do principio masculino e dos homens sobre as mulheres na organizagao da vida humana. Em fermos tecnolégicos foi uma grande libertagio. Mas a que custo? 14 mil anos apés, fez-se a revolugao industrial. Criou-se a maquina ue incorporou a si a forca fisica do ser humano. Este nio precisa Mais fazer grandes esforcos, carregar pesos e gastar sta satide na Producio. A maquina o substitui. Manteve-se e até se reforgou o Patriarcalismo, pois aumentaram os meios e as formas da dominagio Sobre as pessoas e a natureza. No obstante, com relacao as caréncias, lumanas foi uma considervel libertagio. Mas a que custo? Nos nossos dias, trezentos anos apés, fez-se a revolugio do conheci~ mento e da comunicagdo, Criou-se outro tipo de maquina que incorpo- rou a sia forca mental do ser humano: o cflculo, o trabalho intelectual, ainvengao através do computador, do robé e da informa- tica. Avancou-se para dentro do coragio da matéria, tirando informa- Ges das particulas subatémicas e das energias primordiais Penetrou-se para dentro do mistério da vida, colhendo as informa- g6es do cédigo genético e revolucionando o futuro pela biotecnologia ¢ pela co-pilotagem da evolucao. E uma libertago tecnolégica ini- magindvel, Mas a que custo? Importa, entretanto, reconhecer que assistiu-se emergéncia do ferninino, desmascarando a presenga do poder masculino em todos os campos da vida familiar e social, nas expresses da linguagem, na formulagio dos saberes ¢ na instituicao de ritos e tradigdes, denun- ciando o patriarcado como poder opressor da mulher e do préprio homem. Especialmente o ecofeminismo obrigou o masculino e toda a cultura a uma redefinicio no sentido de mais equilibrio e de relagdes mais inclusivas e participatérias, HA que se reconhecer: todas estas revolugGes nascidas na viragem do neolitico transformaram, sem diivida, a face da Terra, Encurtaram distancias ¢ aceleraram o tempo. Trouxcram comodidades para a vida cotidiana, enchendo, por exemplo, nossas casas de eletrodomésticos e de outros instrumentos de comunicacio. ‘Tocaram as paisagens. Onde ontem era mar hoje é uma cidade. Onde havia uma montanha, hoje funciona uma fibrica. A prépria composigio fisico-quimico- biol6gica do Planeta é outra, O ser humano acumulou um poder imenso mas perigoso. Este processo conquistou, em maior ou menor escala, todos os quadrantes da Terra. Penetrou em todas as culturas até as mais recénditas no coragio da floresta amaz6nica ou no interior do Su- deste Asiftico. Af pode faltar comida na mesa, mas nio falta um aparelho de radio ou de televisd que permite aos moradores estar ligados ao mundo e sonhar. Tado hoje é pensado, projetado e produ- 28 ‘Ado em fungio da aldeia global planetéria em que se esté transfor~ mando nosso planeta Terra. simultaneamente, este processo € responsavel pela devastacdo do sistema-Terra, pela monocultura tecnolégica e material, pelo patriar- calismo ainda dominante, pela desumanizacio e falta de compaixcio nas relagées sociais. A Terra e os humanos pagaram um prego dema~ siadamente alto pelo tipo de desenvolvimento que projetaram. Hoje aperpetuidade deste processo pode destruir-nos. 3, 0 Adao dominador ¢ 0 Prometeu conquistador Para ultrapassé-lo, importa identificar as causas geradoras. Nao basta, porém, narrar a hist6ria cronolégica, como fizemos rapida- mente. Urge denunciar o motor que empurrou esta hist6ria ao ponto dramitico em que ela chegou nos dias atuais. Que propésito se esconde por detras de todo este imenso processo técnico-cientifico- cultural, a um tempo benfazejo e perverso? Respondemos: esconde-se a figura do Adio biblico que, consoan- te texto sagrado, sente 0 chamado de dominar a Terra e tudo o que ela contém: as aves do céu e os peixes do mar. Oculta-se a figura mitol6gica de Prometeu, divindade que roubou o fogo do céu ¢ 0 entregou aos humanos, fazendo-se assim inspirador do processo Civilizatério, assentado sobre o poder-dominacio. Avontade de poder e de dominagio é 0 projeto antropolégico em vigor desde o neolitico. Ele ganhou sua expressio clissica no antro- Pocentrismo que marcou toda a trajet6ria cultural a partir de entéo, Assujeitar a Terra, aproveitar-se de seus recursos, ignoraraautonomia dos demais seres vivos ¢ inertes, conquistar outros povos e subme- t@-1os para construira prosperidade: eis o sonho maior que mobilizou desde sempre aquela porcio da humanidade, detentora dos meios de Poder, de ter e de saber. O projeto de podei Partir do século XVII. Naquela época comegou a ser montada a dominagéo ganhou sua expressio dura a 29 maquina industrialista. Jé se haviam construido as bases filoséficas para tal empresa através de René Descartes (1596-1650). Este ensi. nava que o ser humano deve ser “o mestre e o dono da natureza”, ‘Ou também através de Francis Bacon (1561-1626), 0 pai do métodg cientifico, que via 0 laboratério como uma cémara de torturas de inquisidor. Deve-se forcar, coagir, torturar a natureza, escrevia ele, até que ela entregue todos os seus segredos. Foi o autor da expressio: saber é poder. Eo poder era entendido como capacidade de dominar, isto é, fazer com que os outros fagam aquilo que o mais forte quer. Com essa postura radicalizou-se 0 antropocentrismo: a domina~ io total da natureza pelo ser humano. Reafirmou-se destarte o patriarcalismo, pois o projeto de dominacio foi excogitado e implan- tado pelo homem-macho, marginalizando a mulher e identificando-a com a natureza. Natureza e mulher, no entender desse projeto, devem ser submetidas pelo homem-macho. Em conseqiiéncia per deu-se o sentido da unicidade de toda a vida e da diversidade de suas manifestagSes, a percepcio espiritual do universo € 0 esprit de finesse (espirito de fineza) face a0 mistério da vida e do universo. ‘Todas estas caracteristi anima, no homem e na mulher, mas principalmente na mulher) poderiam ter dado a humanidade. Ao invés disso imperou o esprit de géometrie (0 animus, o espirito de célculo e de controle), expressio maxima do masculino s sio contribuigées que © feminino (a dimensio da Esta base filos6fica foi conjugada com a base cientifica. Galileo Galilei (1564-1642), Copérnico (1473-1543) e Newton (1643-1727) forneceram a nova imagem do mundo fundada na matemitica, na fisica e na astronomia heliocéntica. O casamento da teoria com a pritica originou a cosmologia*, chamada moderna. Esta cosmologia possui as seguintes caracteristicas: € materialista € mecinica; é linear e deterministica; 6 dualista e reducionista; € atomistica e compartimentada. Expliquemos estes termos. O universo, nesta percepgio do mundo (cosmologia), é compos- to de matéria, essencialmente estatica e inerte. Ele funciona como 30 gma méquina que existe desde sempre. As leis sio deterministicas permitem uma descricio matemética exata de todos os fendme- pos. A I6gica é linear, pois para cada efeito existe a causa corres pondente. Toda a complexidade da realidade é reduzida aos seus glementos mais simples. £ reducionista porque reduz a capacidade de conhecimento dos eres humanos somente ao enfoque cientifico. Submetendo-a 3 manipulacio técnica, reduz-se a capacidade da natureza de regene- rar-se criativamente. VE todas as realidades, das estrelas a0 corpo humano, compostas pelos mesmos elementos bisicos (os atomos indivisfveis ¢ inertes), discretos, justapostos, sem qualquer relagio ins com os outros, cujos processos sio todos mecanicos. E dualista porque separa matéria e espirito, homem e mulher, religiio vida, economia ¢ politica, Deus ¢ mundo. O espirito vem ignorado ou isolado 4 esfera do privado. O que conta é a matéria, mensurével, matematizavel, manipulivel ¢ destituida de qualquer irradiacao e propésito. E entregue, sem qualquer consideracio ética ou espiritual prévia, a0 projeto de desenvolvimento material arqui- tetado pelo ser humano, Jsse disse que os efeitos desta visio reducionista e dividida sobre a mente humana corresponde a uma verdadeira lobotomia: deixou- hos a todos obtusos para as maravilhas da natureza e insensiveis face Areveréncia que o universo naturalmente provoca. Deixou-nos desencantados. HA coisa pior do que perder a magia, o brilho, a imradiacao da vida, das pessoas, das coisas e do universo? Em termos sociais, a vontade de poder concretizou-se como Vontade obsessiva e desmesurada de concentrar poder, de enriquecer, de conquistar novas terras e de subjugar outros povos. Tal propésito Constitui a grande obsessio a partir do século XVI, no alvorecer da Modernidade, que se traduziu em colonialismo, em imperialismo e haimposi¢io da monocultura material, cultural e religiosa onde quer ue chegassem os comerciantes e os missionSrios europeus. Apli- cou-se a sociedade o que Darwin (1809-1882) ensinou acerca da evolugio das espécies ¢ da selegio natural: s6 sobrevive o mais forte, Isso significa: os povos considerados menos desenvolvidos ¢ as classes tidas por mais fracas devem ser subordinados aos autoconsi- derados mais fortes, no caso aos europeus brancos e cristéos, Estes assumiram, efetivamente, a fungio de mostrar a todos aqueles o seu lugar de subordinados. E de conduzi-los para i geralmente utilizan- do a violéncia, muita violéncia, Entretanto, nfo é suficiente denunciara vontade de poder-domi- nagdo com suas incontaveis vitimas. H4 por detrés uma raiz ainda mais finda que no nosso livro Ecologia: grito da Terra, grito dos pobres tentamos aprofundar. Voltaremos a ela mais adiante em nossa refle- xo. Aqui acenamos apenas com uma répida consideragio. O ser humano, na sua aventura evolucionsria, foi se afastando lentamente de sua casa comum, a Terra. Foi quebrando os lacos de coexisténcia com os demais seres, seus companheiros na eco-evolugio. Perdeu a meméria sagrada da unicidade da vida nas suas incontéveis manifes- tagdes, Esqueceu a teia de interdependéncias de todos os seres, de sua comunhio com os vivos e da solidariedade entre todos. Colo- cou-se num pedestal. Pretendeu, a partir de uma posicio de poder, submeter todas as espécies e todos os elementos da natureza. Tal atitude introduziu a quebra da re-ligacio de todos com todos. Eis 0 pecado de origem de nossa crise civilizacional que esta chegando nos dias de hoje ao seu paroxismo. ‘Temos que encontrar 0 elo perdido. Urge refazer 0 caminho de volta, como filhos prédigos, a casa materna comum, a Terra. Abragar os demais irmios e irmis, as plantas, os animais ¢ todos os seres. Para regressar do exilio a que nos submetemos, como na parabola biblica do filho prédigo, temos que alimentar saudades e cultivar sonhos. 4. Que sonhos nos orientamn? Para refazer a alianga coma Terra e selar um pacto de benquerenca para com todos os seres, 0s sonhos séo da maior importincia. Mor- sem 2s ideologias e envelhecem as filosofias. Mas os sonhos perma- pecem. Sao eles o hiimus que permite continuuamente projetar novas formas de convivencia social ¢ de relacio para com a natureza. Com certo escrevia 0 cacique pele-vermelha Seattle, a0 governador Ste- ‘yens, do Estado de Washington em 1856, quando este forgoua venda as terras indigenas aos colonizadores europeus. O cacique, com yario, nao entendia por que se pretendia comprar a terra. Pode-se " comprar c vender a aragem, o verde das plantas, a limpidez da égua eo esplendor da paisagem? Neste contexto reflete que os peles- yermelhas compreenderiam 0 porqué ¢ a civilizagao dos brancos se conhecessem os sonhos do homem branco, se soubessem _quais as esperangas que esse transite a seus filhos e filhas nas Jongas noites de inverno, e quais as vis6es de futuro que oferece ‘para o dia de amanha” Qual € 0 nosso sonho? Que esperanga transmitimos aos jovens? Que visdes de futuro ocupam as mentes e o imaginério coletivo através das escolas, dos meios de comunicagio e de nossa capacidade de criar valores? Que cuidado desenvolvemos para com a naturezae que benevoléncia suscitamos para com todos os seres da criacio? Que novas tecnologias utilizamos que nao neguem apoesia ea gratuidade? Que itmandade estabelecemos entre todos os povos ¢ culturas? Que nome damos 20 Mistério que nos circunda e com que simbolos, festas e dangas 0 celebramos? As respostas a estas indagagSes geram um novo padrio civilizat6- Tio, Face 4s transformag6es que atingem os fundamentos de nossa Civilizacao atual indagamos: quais so os atores sociais que propdem lum novo sonho hist6rico e desenham um novo horizonte de espe- Fanga? Quem sio os sujeitos coletivos gestadores da nova civilizagio? Sem detalharmos a resposta podemos dizer: eles se encontram £m todas as culturas e em todos os quadrantes da Terra. Eles irrom- Pem de todos os estratos sociais e de todas as tradigdes espirituais Eles estio em toda parte. Mas sao principalmente os insatisfeitos om o atual modo de viver, de trabalhar, de sofrer, de alegrar-se e de morrer, em particular, 0s exclufdos, os oprimidos e os marginaliza dos. Sio aqueles que, mesmo dando pequenos passos, ensaiam um comportamento alternativo ¢ enunciam pensamentos criadores. Sig ainda aqueles que ousam organizar-se ao redor de certas buscas, de certos niveis de consciéncia, de certos valores, de certas priticas ¢ de certos sonhos, de certa veneracio do Mistério e juntos comecam a criar vis6es e convicgées que irradiam uma nova vitalidade em tudo co que pensam, projetam, fazem ¢ celebram. Por tais sendas desponta.a nova civilizacéo que sera de agora em diante nao mais regional mas coletivae planetiria, e, esperamos, mais solidéria, mais ecol6gica, mais integradora e mais spiritual. 5. A civilizagao da re-ligagiio Que nome vamos dar 4 civilizagio emergente? Ensaiamos uma resposta: sera uma civilizagdo mais sintonizada com a lei funda mental do universo que é a panrelacionalidade, a sinergia e complementaridade. Serd a civilizacao da re-ligago de tudo com tudo e de todos com todos. Que experiéncia fontal faré encontrar o elo re-ligador? Sem maiores mediacGes aventamos a hipétese de que seri uma nova experiéncia do sagrado. O sagrado nao € uma coisa. E a qualidade luminosa das coisas. Trata-se de uma irradiacao que emana de toda existente, de cada pessoa ¢ do inteiro universo. Tudo pode causat admiracio ¢ encantamento. Tudo pode conter uma mensagem 4 ser decifrada. Tudo, pode ser portador de um mistério. Mistério nao constitui um enigma que, decifrado, desaparece. Mistério é @ profundidade de cada realidade que, conhecida, nos desafia 2 conhecer mais e que permanece sempre mistério em todo 0 conhecimento. Mistério nao € 0 limite do conhecimento, mas 0 ilimitado do conhecimento. Esse conhecimento-mistério nao é frio e formal. E carregado de emogio, de significado e de valor: Por isso € um conhecimento cordial. Produz uma experiéncia rerior perpassada de comocio . A percepcio do sagrado das coisas jumdado originérioe irrédutivel ‘Aestrutura do sagrado ou do numinoso, como foi detectada pelos Iesudi0sos antigos e modernos, se organiza ao redor de duas expe~ Tpiencias seminais: a do fascinosum (fascinante) ¢ a do tremendum (gemivel). A realidade nos fascina como o Sol, nos atrai poderosa- mente eos enche de entusiasmo. E, ao mesmo tempo, suscita em inés 0 temor, leva-nos & fiuga, pois como o Sol pode cegar-nos ¢ queimar-nos. Quando confrontados com a Suprema Realidade, essa experiencia irrompe avassaladora, como testemunham pessoas reli- giosas e misticas de todos as tempos e lugares. Esta experiéncia evoca um sentimento profundo: de veneracio, de encantamento, de res- peito e de reveréncia. Semelhante sentimento emerge quando contemplamos a Terra a partir do espaco exterior. Parece uma bola de natal, azul-branca, cheia de vitalidade, dependurada no universo. E 0 nosso planeta, 0 tinico que temos. Sentimos reveréncia e temor por seu encantamento e pelos riscos que corre. Estas atitudes sio fundamentais se quisermos salvaguardar a Vida ¢ resgatar a dignidade de nossa grande Mie, Pacha Mama c Gaia*, a Terra. Sem o cultivo da experiéncia do sagrado nao Conseguimos impor limites 4 voracidade depredadora do tipo de desenvolvimento dominante, nem salvar ecossistemas e espécies vivas ameagadas de extingio. Entretanto s6 nos abriremos ao sagrado da Terra, do ser humano, do universo e de tudo 0 que nele se contém se, antes, criarmos a Precondi¢io de sua emergéncia. E esta se encontra na dimensio da 4hima, do feminino, no homem e na mulher, tio recalcada desde o Reolitico ¢ na cultura técnico-cientifica da modernidade, sige “minino, como veremos mais detalhadamente 20 longo deste i i 'vro, € a capacidade de captarmos totalidades articuladas, de termos i Mteireza, de cultivarmos o mundo interior, de desenvolvermos ni- veis profundos de espiritualidade, de pensarmos por intermédio dg corpo, de apreendermos, na nossa intimidade, as ressonancias do mundo exterior em termos de simbolos e de arquétipos, de darmog espaco A ternura e ao cuidado, de abrir-nos ao sentimento, 3 gratui. dade e & sensibilidade para com o mistério das pessoas, da vida e do inteiro universo. E o esprit de finesse, proposto por Blaise Pascal (1623-1662), que se distingue do esprit de géometrie. O espirito de finura representa, nos homens e nas mulheres, a dimensio do feminino, com as caracterfs- ticas sinalizadas acima. Ela se completa com a dimensio do mascu~ lino, nas mulheres e nos homens, que é o espfrito de geometria, a capacidade de ordenagio, de racionalizagio, de abertura de caminhos, de superacao de dificuldades e de construgo de um projeto de vida ou de civilizagdo. Esse, o espfrito de geometria, foi inflacionado nos {iltimos séculos mediante aaventura técnico-cientifica da humani~ dade, recalcando o feminino, em detrimento de uma experiéncia mais global e integradora do ser humano. Importa, nesta quadra da hist6ria, recuperarmos a dimensio do feminino. E ela que nos abre ao sagrado ¢ A veneragio tio necessarias para inaugurarmos uma civilizacio da re-ligacio, do reencantamento da natureza e da veneracio pelo universo. Ser4 seguramente a expe~ riéncia do sagrado e do numinoso que funcionaré como elo articu- lador e como a experiéncia seminal da nova civilizagio nascente. Cabe enfatizar: esta experiéncia é antropologica. Esté ligada a estru~ tura bisica do ser humano, Re-liga o ser humano continuamente 4 Fonte originante. Nao € monopélio das religides. Antes, da re-ligaca0 provém a re-ligido. Fungio primacial da religiao € religar a pessoa ao seu Centro, onde moraa divindade com seu brilho. A partir da recuperacao do sagrado, entrevisto em todas as coisas, os seres humanos darao novo alento 3s religides histéricas ¢ as varias tradigdes espirituais ou reinventar40 outras religides ou caminhos espirituais. 36 Esta espiritualidade, fundada na re-ligacio, na experiéncia da anima e do sagrado, deixa para trés as religides de cunho patriarcal. © proprio cristianismo assumin as caracteristicas patriarcais, au- sentes na experiéncia de Jesus, que é antes ferninina. Ele apresenta o Abba (paizinho) celestial com caracteristicas de mie, cheia de miseric6rdia e reconciliagao. Mas foi traduzida (e em parte trafda) no quadro da dominacio dos homens que se entendem os tinicos representantes de Deus ¢ de Cristo (hierocracia, clericalismo, celibatarismo). Esta forma patriarcal de religiio introduziu pro- fundos dualismos: entre Deus e mundo, espirito e matéria, vida terrena ¢ vida eterna, religiio natural e religiio revelada, religido verdadcira c religides falsas. A nova religiio que integra o mascu- Iinoe 0 feminino (animus e anima) enfatiza a ligagao entre fé c vida Identifica a profunda unidade da experiéncia espiritual, expressa nos muitos caminhos ¢ religides. Sublinha o panentefsmo pelo qual se afirma: Deus est4 em todas as coisas ¢ todas as coisas esto em Deus. Hé comunhio e nio separagdo entre Deus e criatura Deus nio habita apenas nos céus, mas em todas as partes, espe- cialmente na profundidade do coraco humano. Por causa de todos esses valores, a civilizagao da re-ligacio dard centralidade a religiéo e 4 espiritualidade como aquela instancia que Se prope re-ligar todas as coisas entre si, com o ser humano ¢ com ©Supremo, porque as vé todas re-ligadas umbilicalmente com 0 seu Criador. Esta civilizacdo emergente serd religiosa ou nio ser4. Pouco importa o tipo de religido ~ ocidental, oriental, antiga, moderna — fontanto que seja aquela que veicule ¢ alimente continuamente a experiéncia radical de re-liga¢io, expressa em mil caminhos religio- $08 ¢ espirituais, experiéncia que consiga re-ligar, efetivamente, todas 4S coisas ¢ gestar um sentido de totalidade ¢ de integracio. Entio Poder surgir a civilizagio da etapa planetéria, da sociedade terrenal, 4 primeira civilizagio da humanidade como humanidade. vege nos-emos todos enredados numa mesma consciéncia co- le tiva, numa mesma responsabilidade comum, dentro de uma mes- mae tinica arca de Noé que € a nave espacial azul-branca, a Terra Nela e com ela nos salvamos ou nos perdemos todos. 6. A emergéncia de uma civilizagao planetéria Esta nova civilizagio nfo € apenas um desiderato e um sonho ridente. Ela est4 emergindo. Vem, antes de mais nada, sob o nome de mundializagao © de globalizagéo. Trata-se de um processo irreversfvel. Representa indis- cutivelmente uma etapa nova na hist6ria da Terra ¢ do ser humano. Estamos superando 05 limites dos estados-nagdes e rumando para a constituiggo de uma tinica sociedade mundial que mais ¢ mais demanda uma diregio central para as questdes concernentes a todos os humanos como a alimentagio, a agua, a atmosfera, a satide, a moradia, a educagio, a comunicacio e a salvaguarda da Terra. E verdade que estamos ainda na fase da globalizacio competitiva, oposta a globalizacéo cooperativa, que supe uma outra economia estruturada ao redor da producio do suficiente para todos, seres humanos e demais seres vivos da cria¢io. Mas ela preenche uma condigio fundamental: criar as bases materiais para outras formas de mundializacdo, mais importantes ¢ necessérias. Efetivamente, quer queiramos ou nfo, jé est4 se anunciando também uma mundializagio sob o signo da ética, do senso da com- paixio universal, da descoberta da familia humana e das pessoas dos mais diferentes povos, como sujeitos de direitos incondicionais, direitos ndo dependentes do poder econdmico e politico dos povos ou do dinheiro de seu bolso, nem da cor de sua pele, nem da religiao que professam. Estamos todos sob 0 mesmo arco-fris da solidarieda- de, do respeito e valorizagio das diferengas e movidos pela amoriza~ gio que nos faz a todos irmaos e irmis. ‘A mundializagio far-se~4 também na esfera da politica que dever’ reconstruir as relagdes de poder, nfo mais na forma de dominagio/ex- ploragio sobre as pessoas e a natureza, mas na forma da mutualidade piofilica (= reciprocidade entre os seres vivos) e da colaboracio entre todos 0s povos, base para a convivéncia coletiva em justica, em paze ‘emalianca fraternal/sororal coma natureza. Ela deverd organizar-se yo redor de uma meta comum: garantir o futuro do sistema-Terra ¢ gs condicdes para o ser humano poder continuar a viver e a desen- ‘yolver-se, como jé-vem fazendo hé cerca de 10 milhées de anos. Por fim haver4, seguramente, uma mundializagio da experiéncia do Bppirio no cultivo das energias espirituais que pervadem 0 universo, trabalham a profundidade humana e das culturas e reforcam a sinergia, ‘asolidariedade, o amor A vida a partir dos mais ameacados e a veneracio doMistério que em tudo penetrae em tudo esplende, mistério cultuado na ora¢do, na contemplagio € no caminhar a sua luz. Estamos diante de um experimento sem precedentes na hist6ria da humanidade. Ou criamos nova luz, ou vamos a0 encontro das trevas. Ou trilhamos o caminho de Ematis da partilha e da hospita- lidade para todos, ou entio experimentaremos 0 caminho do Calvé- rio, a descida solitéria ao inferno em cujo portal Dante Alighieri escreveu: “deixai toda esperanca, vos que entrais”. 7. Ahora ea vez da dguia A construgio da nova civilizagao no Terceiro Milénio passa por tim gesto de extrema coragem. A coragem de fazer caminho onde nao h4 caminho. J e agora. Em momentos cruciais, da prova maior, ©nde vamos inspirar-nos? De que fundo vamos tirar os materiais para 4 nova construgao? ee: imbuir-nos da esperanca de que o caos atual prenuncia jova ordem, mais rica e promissora de vida para todos. Bem Versejava Camées (1524-1580): “Depois de procelosa tempestade Soturna noite e cibilante vento ‘Taz a manhi serena claridade Esperanga de porto e salvamento”, Mas, para que este salvamento ocorra, precisamos ter bem clara a conviccio de que este futuro necessério nao se faré a partir dog principios que organizaram o passado. Foram eles que levaram ao impasse atual. Quem ainda persiste em neles crer, labora num pro- fiando equivoco. E desta vez nio h4 tempo para ensaios, equivocos ¢ erros. Pois nao haverd possivelmente tempo para correcdes. Em contextos assim devemos recorrer as grandes metéforas, cujo sentido emerge cristalino, Voltamos a contar a histéria de um educa dor e Ifder politico da pequena reptiblica de Gana, na Africa Ociden- tal, James Agerey (t 1927). Ela foi objeto de nosso primeiro livro 4 guia e a galinha, uma metdfora da condicao humana. Vamos novamente: Ja, dada a sua beleza e sua densidade. transcrevi “Eratuma vez um camponés que foi a floresta vizinha apanhar um: passaro para manté-lo catiyo em sua casa. Conseguiu pegar um! filhote de 4guia. Colocou-o no galinheiro junto com as galinhas, Comia milho e ragio prépria para galinhas. Embora a 4guia fosse 0 rei/a rainha de todos os pissaros. Depois de 5 anos, este homem recebeu em stia casa a visita de um naturalista. Enquanto passeavam pelo jardim, disse o naturalista: ~ Esse passaro af nao € galinha. £ uma Aguia. — De fato ~ disse 0 camponés. £ éguia. Mas eu criei-a como galinha. Ela no é mais uma 4guia. Transformou-se em galinha como as outras, apesar das asas de quase trés metros de envergadura. — Nio = retrucou o naturalista. Ela é ¢ ser sempre uma Aguia. Pois tem um coracdo de 4guia. Este coragio a faré um dia voar 3s alturas —Nio, nio- insistiu o camponés. Ela virou galinha ¢ jamais voard como aguia. Entio decidiram fazer uma prova. © naturalista tomou a 4guia ergueu-a bem alto e desafiando-a disse: pulou ¢ foi para junto delas. _ Jéique vocé de fato é uma dguia, jé que voc€ pertence 20 céu € jngo 3 terra, entio abra suas asas ¢ voe! ‘A éguia ficou sentada sobre o braco estendido do naturalista. hava distraidamente ao redor. Vit as galinhas ld embaixo, ciscando grfos. E pulou para junto delas. O camponés comentou: Ihe disse, ela virou uma simples galinha! _ Nao tornowa insistir o naturalista. Ela é uma 4guia. E uma guia ser sempre uma guia. Vamos experimentar novamente amanhi. No dia seguinte, o naturalista subiu com a dguia no telhado da casa, Sussurrou-lhe: — Aguia, j4 que vocé € uma dguia, abra suas asas ¢ voe! Mas quando a éguia viu ld embaixo as galinhas, ciscando 0 chio, O camponés sorriu e voltou 3 carga: ~ Eu Ihe havia dito, ela virou galinha! —Nio -respondeu firmemente o naturalista. Ela é éguia, possuird sempre um coracio de 4guia. Vamos experimentar ainda uma dltima vez. Amanha a farei voar. No dia seguinte, o naturalista eo camponés levantaram bem cedo. Pegaram a guia, Jevaram-na para fora da cidade, longe das casas dos homens, no alto de uma montanha. O sol nascente dourava 0s picos das montanhas. O naturalista erguew a 4guia para o alto e ordenow-lhe: ~ Aguia, j4 que vocé € uma Aguia, jf que vocé pertence ao céu € | M4o A terra, abra suas asas ¢ voe! A guia olhou a0 redor. Tremia como se experimentasse nova Vida, Mas nao voou. Entio o naturalista segurou-a firmemente, bem AL na direcio do Sol, para que seus olhos pudessem encher-se da claridade solar e da vastidio do horizonte. Nesse momento, ela abriu suas potentes asas, grasnou com o tfpico kan-kau das aguias e ergueu-se, soberana, sobre si mesma. 2 comegou a voar, a voar para o alto, a voar cada vez para mais alto, Voou... voou.... até confiundir-se com 0 azul do firmamento... E terminou conclamando: — Irmios e irmas, meus compatriotas! Nés fomos criados 4 imagem e semelhanga de Deus! Mas houve pessoas que nos fizeram pensar como galinhas. E muitos de nés ainda acham que somos efetivamente galinhas. Mas nés somos dguias. Por isso, companhei- ros € companheiras, abramos as asas ¢ voemos. Voemos como as Aguias. Jamais nos contentemos com os gros que nos jogarem aos pés para ciscar”. Antecipando uma reflexio que detalharemos ao longo do livro, 4 podemos dizer: todos nés temos, de um jeito ou de outro, uma dimensio-galinha e uma dimensio-aguia dentro de nds, A dimensio-galinha € 0 sistema social imperante, 0 nosso arranjo existencial, a nossa vida cotidiana, os habitos estabelecidos e o hori- zonte de nossas preocupacées. Sao também as limitagdes, os enqua- dramentos e formag6es hist6rico-sociais que, quando absolutizados, se transformam em impasses, em descaminhos, em falta de pespec- tiva e em desesperanca para as pessoas e para as coletividades. A dimensio-Aguia sio os sonhos, os projetos, os anelos, os ideais € as utopias que, mesmo frustrados, nunca morrem em nés porque sempre de novo ressuscitam. Eles representam a guia em nés, aguia que nos ergue continuamente para o alto, para descobrir novos caminhos e direcdes diferentes. Para recordar-nos 0 chamado do novo possivel. Aide quem deixa morrer a 4guia dentro de si ou permite que ela se transforme numa galinha! Ou indiferentemente aceita que uns 42 ucos Se organizem para reduzir todos a simples galinhas. Somos Fevis! Aguas feitas para as altura! (O momento atual significa a hora e a vez da 4guia. Nao pede uma reflexio especifica sobre a galinha, A dimensio-galinha é dominante fos tempos atuais. O que importa é resgatar a dimensio~éguia, rticulada com a dimensio-galinha, Esta opcio pela 4guia €a condi- Gao de nossa sobrevivencia ¢ de inauguracio promissora da nova ivilizacdo e do Terceiro Milenio. Ou entio seremos condenados a continuar galinhas ou dguias que foram domesticadas ¢ desnaturadas, para permanecer junto as galinhas. ~Jovens, mulheres, homens, trabalhadores, intelectuais, artistas, politicos, religiosos de todos os credos, nio vos resigneis & situagio de galinhas. Acordai a guia que esti dentro de vés! Ousai 0 v6o das alturas. Inventai caminhos novos. Tirai da pr6pria fonte, das virtua- lidades presentes em vés, do vosso imagindrio, dos vossos sonhos ¢ das vossas utopias mil raz6es para lutar, para viver e para criar. Olhai para a hist6ria do universo em continua génese, por isso em cosmo- génese, como ele trabalhou contra 0 caos € 0 dia-bélico e contra as grandes dizimac6es para transformar-se em cosmos ¢ em sitn-bélico € chegar até o presente. Olhai para dentro de vs mesmos. Descobri af dentro a presenca da 4guia ¢ o sim-bilico, vale dizer, as energias origindrias que gestaram a ordem do universo ¢ que vos gestam a cada momento. Dai poderé vir 0 novo horizonte que salva e liberta 0 futuro paraavidae paraa esperanga. Desentranhemos¢ alimentemos todos juntos, molecularmente, jé agora os valores da nova civilizagio © 0 sonho do Terceiro Milénio. Bibliografia para aprofiundamento Antunes, C., Uma aldeia em perigo. Os grandes problemas geogrficos do século XX. Petrépolis, Vozes, 1986. Arruda, M., Globalizagéo e sociedade civil. Repensando 0 cooperativismo no context da cidadania ativa. Rio de Janeiro, Publicagdes PACS, 1997. 4B Assmann, H., Metdforas novas para reencantar a educagdo. Editora UNIMER Piracicaba, 1996. Barrére, M., Terra, patriménio comum. 8. Paulo, Nobel, 1995, Benjamin, C., Didlogo sobre ecologia, ciéncia e politica. Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1993. Bloom, H., O cénone ocidental. Editora Objetiva, Rio de Janciro, 1995 Boff, L., Ecologia, mundializacao, espiritualidade, 8. Paulo, Atica 1996. Boff, L., Nova era: a civilizagao planetéria. S. Paulo, Atica, 1995. Boff, L., Ecologia: grito da Terra, grito dos pobres. S. Paulo, Atica, 1995, Boff, L., Betto, Frei, Mista e Espiritualidade. Rio de Janeiro, Rocco, 1995. Boff, L., Hathaway, M., O Tio da libertagdo. Para uma ecologia de transformacéo, a sair pela Vozes de Petrépolis. Capra, F, A teia da vida. Editora Cultrix, $. Paulo, 1997 Crema, R., Introdugéo 4 visdo holistica. 8, Paulo, Summus, 1988. Featherstone, M., Cultura Global. Petropolis, Vozes, 1994. Ferguson, M., A conspiragdo aquariana. Record, Rio de Janciro, 1995. Ferry, L., A nova ordem ecolégica. A Arvore, 0 Animal, 0 Homem. S. Paulo, Editora Ensaio, 1994 Freire-Maya, N., A ciéncia por dentro. Petropolis, Vozes, 1991. Guitton, J., Deus ea ciéncia. Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1992 Heisenberg, W,, A parte ¢ 0 todo. Rio de Janeiro, Contraponto, 1996. Tanni, O., A era do globalismo. Rio de Janeiro, Civilizagao Brasileira, 1996. Johnson, G., Fogo na mente. Ciéncia, Fé ea busca da Ordem. Rio de Janeiro, Campus, 1997. Ladriére, J., Os desafios da racionalidade. Petrdpolis, Vozes, 1990. Latouche, S.,.A ocidentalizagéo do mundo. Ensaio sobre a significagao, o akance e as limites da uniformizagao planetéria. PetrSpolis, Vozes, 1994. Lemkow, AF, O principio de Totalidade. A dindmica da unidade na religio, ciéncia e sociedade, 8, Paulo, Aquariana, 1992. 4 welock, J.,As eras de Gaia, A biografia da nossa Terra viva. S. Paulo, Campus, 1991 May BH/Motta, RS. da, Viloranda a natureza. Andlise econémica para 0 desenvolvimento sustentivel. S. Paulo, Campus, 1994, Matellart, A., Comunicagao-mundo. Petropolis, Vozes, 1994 McKibben, B., O finn da natureza, Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1990. Meslin, M., A experiéneia humana do divino, Petropolis, Vozes, 1992. Milller, R., O nascimento de uma civilizagao global. S. Paulo, Aquariana, 1993, Sagan, C., © mundo assombrado pelos deménios. A ciéncia vista como uma vela ‘no escuro. S. Paulo, Companhia das Letras, 1997, Schwarz, W. e D., Ecologia: alternativa de futuro. S. Paulo, Paz ¢ Terra, 1990. Serres, M., O contrato natural. Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1991. Unger, N.M., Fundamentos filos6ficos do pensamento ecolégico. 8. Paulo, Loyola 1993. * Vieira, L., Cidadania e globalizagio. Rio de Janeiro, Record, 1997. Sklair, L., Sociologia do sistema global. Petrépolis, Vozes, 1995. Vos, H/Vervier, J., Utopia crista e légica econémica. Petr6polis, Vozes, 1997. 45 0 ‘A aguia ea galinha, o sim-bélico ¢ 0 dia-bélico na constituigio do universo O capitulo anterior nos deixou uma poderosa convocagio no sentido de avivarmos a guia que esté em nés, a despeito da impor- tincia da galinha; do sim-bélico, apesar de todo o peso do dia-bélico. fa urgéncia de nosso tempo, precondicao de nossa sobrevivéncia como espécie e como planeta. Antes de colhermos todas as lig6es da 4guia/galinha, do sim-b6- lico/dia-bélico para a historia e para a vida humana, queremos con- siderar alguns desdobramentos no entorno maior que € 0 cosmos. Nele identificamos o funcionamento da estructura galinha/fguia, do dia-b6lico/sim-bélico. Pelo fato de estar em primeiramente nele € que estas estruturas podem emergir também em nés ¢ na histéria, 1. As vdrias imagens do universo Aimagem que a astronomia e a astrofisica nos transmitem acerca do cosmos difere profundamente daquilo que comumente nossos antepassados nos ensinaram. Eles trabalharam a base de grandes simbolos e belas mitos. Sta ciéncia empirica, porém, era extrema- mente rudimentar. Nem por isso deixaram de suscitar em nés encantamento, sentido de veneragio e de propésito face A majestade do universo, Para os gregos, o universo era um cosmos. Quer dizer, um sistema bem ordenado e auto-sustentado. Ele se encontra em permanente luta contra o caos. 41 Para os medievais, 0 universo € criagéo boa de Deus. Ele estg sempre sob a Providéncia divina que ordena tudo para 0 seu fin bem-aventurado. A figura que representa esta concepcio antiga ¢ medieval é q pirdmide. Todos os seres sio como que uma escada que termina dentro) de Deus. Uma imensa pirimide em cuja ponta brilha o Ser supremo ou o Deus criador. Para os modernos, o universo € fundamentalmente natureza, a mecinica celeste c terrestre em perfeito funcionamento, pois obede- ce a um designio tracado pelo Criador. As leis naturais, segundo essa concepgio, sio imutaveis e perenes. A metéfora que ilustra esta cosmologia é a do religio. Ele tem um mecanismo imperturbavel ¢ exatissimo. Para nés contemporaneos, da era cientifico-técnica, 0 universo é evolugdo. Ele constitui uma realidade aberta, sob 0 processo cosmo- génico. Quer dizer, o processo nfo esta ainda pronto, mas em fase de génese e de expansao. Nada estd determinado mecanicamente. As leis possuem um carter probabilistico e aproximativo. Tado esta sob © regime de indeterminacio ¢ de probabilidade. As relagdes vio constituindo determinagées concretas. Em razio disso falamos de histéria. Nao somente os humanos tém hist6ria, mas todos, tam- bém os demais seres, pois todos estio dentro do processo evolu- tivo que vem da mais alta ancestralidade. Todos estamos enredados num jogo de inter-retro-relacionamentos, em cadeia, pelo qual vamos construindo, com o desenrolar do tempo, nosso ser. Neste jogo tudo tem a ver com tudo, em todos os pontos, em todos os tempos e em todas as circunstincias. Existir e viver ¢ inter-existir e con-viver. Numa palavra, € relacionar-se. Relacio- nar-se € poder criar lacos e adaptar-se. Fora desta légica ninguém sobrevive. Nem o topquark mais originario. A figura que representa esta cosmovisio € a arena ou 0 jogo. Na arena todos os presentes sao incluidos e feitos participantes. No jogo 48 Ios estio envolvidos, os que jogam ¢ os que assistem, torcendo ra os respectivos lados. “Fodas as imagens do universo — pirdmide, rel6gio ¢ jogo ~ preocu- avam-see ainda se preocupam com a pergunta fundamental: de onde im, para onde vai e que sentido possui o universo? Qual € o lugar do humano nesta imensidade césmica? Para que estamos neste pequeno Planeta Terra? Qual a nossa missio especialmente nesta quadra histica da consciéncia planetiria e da planetizacio, sob 0 io da autodestruicio/corresponsabilidade? fm que estamos, principi = ‘Todas estas questdes so profundamente existenciais ¢ emocio- sais por mais que se embasem em dados cientificos acerca da natu- reza das energias ¢ da matéria que compdem todos os seres. Elas nos fenvolvem totalmente. Somos parte deste incomensurdvel proceso que se desdobra sobre nossas cabecas e por todos os lados Pertence & imagem do universo fornecer-nos ma resposta que atenda 4 nossa busca de um sentido clarificador, globalizante afetivo. A essa imagem costumamos chamar de cosmologia*. Defini- mos por cosmologia a representa¢io do mundo que nos formamos apartir de uma infinidade de dados, muitos experimental-cientificos, outros culturais, outros mitol6gicos, outros simbélicos, outros est ticos e afetivos, outros mistico-religiosos. Esse conjunto articulado de saberes ¢ visdes nos subministra a cartografia dos caminhos do " niverso, o mapa do nosso planeta Terra, da humanidade e de nossa aventura pessoal. A cosmologia nos propicia 0 sentido de orientacio, indispensavel 4 vida. 2. Como é a cosmologia contempordnea Qual é a nossa cosmologia hoje? Queremos dar um breve cons- Pecto de sua versio atual, com tudo aquilo de hipotético, de conje- tural e de cientifico que cla comporta. Como veremos, ela combina 20s e cosmos, dia-blico e sim-bélico, dimensao-dguia e dimensao- Salina, como forcas estruturantes de sua constituicao. 49 Estimamos ser a maior descoberta de todos os tempos a identifi. cagio da data de nascimento de nosso universo. A descoberta dg berco do universo s6 foi possfvel a partir do momento em que s¢ constatow inequivocamente que cleestéem movimento de expansio, Coube ao astrénomo norte-americano Edwin Powel Hubble (1889. 1953) o mérito desta comprovagio. Em 1924 demonstrou que a nossa galaxia — a Via-lactea — no é a Gnica existente. Hé pelo menos 100) milhdes de outras. Analisando a radiacgio das galéxias mais distantes, Hubble obser vou um claro deslocamento do espectro da luz para o vermelho. Isso constitui para qualquer astr6nomo um sinal inequivoco de que estas galixias estio se afastando de nés. A relagio entre a freqiiéncia das ondas de luz e a velocidade das estrelas (0 efeito Doppler*) nos diz se uma estrela se afasta ou se aproxima de nés. Se a luz no espectro tende para o azul, aproxima-se de nés. Se tende para o vermelho afasta-se de nds, Em 1929 Hubble publicou 0 resultado de suas minuciosas obser~ vagdes: as galéxias todas estio se afastando de nds. Quanto mais distantes elas se encontram, maior é sua velocidade de fuga. Mais ainda, independentemente da localizacao do observador, todos os corpos celestes estio se afastando uns dos outros; quanto maior for a distincia, maior é sua velocidade. Isto significa que cada ponto no universo é 0 centro do cosmos. O universo est4, portanto, se expandindo em todas as diregSes. Ele nao € estacionario como os antigos e mesmo Albert Einstein (1879-1955), no infcio, imaginavam. Ele dinimico. Seu estado natural é a evolugio € nao a estabilidade, a transformagio e a adapta bilidade, e nfo a imutabilidade e a permanéncia. O fato da expansio sugere que ela tenha comegado a partir de um ponto extremamente denso de matéria e de energia. George Lemai- tre, astrénomo belga (1894-1966), para explicar a expansio, prop6s a teoria do big-bang, da grande explosio primordial. Ela foi vulgari- depois pelo astrénomo russo, naturalizado norte-americano, orge Gamow (1904-1968). Outros preferem terminologias que jpso evoquer 0 imaginério masculino, marcado pelo uso do poder ¢ da violencia, como a metéfora do big bang, a grande explosio inicial Mas que sejam mais suaves ¢ elegantes como 0 ovo césmico origi- Ipfrio, ou o miicleo superabundante ou o desabrochar primordial. Nés utilizaremos indiferentemente as varias metéforas. Criou-se entio a seguinte imagem cosmolégica: no tempo zero javia um pequenissimo niicleo, trilhées e trilhdes de vezes menor gue a cabeca de um alfinete. Chamemo-lo femnininamente de ovo césmico. © calor extremo com que vinha dotado significa uma densificacio de energia e de matéria inimagindvel. Nao havia espago nem tempo, nem a diferenciagio das energias primordiais: a gravita- ional, a cletromagnética, a forca nuclear fraca e forte. Nem eram discernfveis as partfculas elementares, ancestrais daquelas que hoje constittiem 0s tijolinhos bésicos da’composigio de todos os seres (os seis tipos de quarks, os prétons, os néutrons, os elétrons, os fétons, 0s neutrinos e outras 100 espécies de subparticulas). Tudo formava um caldo primordial, onde tudo se encontrava densissimamente condensado. Pura fantasia? Nem tanto. Hoje em dia sio possiveis simulagdes que se aproximam das condicées iniciais do universo. A partir de 1970 grandes accleradores de particulas conseguiram simular tais condigées de calor, anteriores 20 rompimento primordial do ovo Césmico. Notaveis cientistas como Steven Weinberg (confira seu livro Os trés primeiros minutos) ¢ Stephen Hawking (em sua famosa obra Uma breve histéria do tempo) com sofisticadissimos célculos ma- tematicos tentaram descrever o que teria ocorrido nas primeirfssimas fracdes de segundos apés a explosio. Primeiramente, supde-se, houve uma inflagio do mitcleo basico (veja-se 0 livro de Alan H. Guth, O universo inflaciondrio, 1997). O Pequenfssimo ponto inicial se inflacionou ao tamanho de um étomo. Foi crescendo até atingir as dimensdes de uma maca. Em seguida

You might also like