Viver-Yu Hua

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TCE USEC ORS ve Tee tT ete CSTE UC Sone ace Gaeta CTE SRS GuE Co ete Ean eer te ert DORR Tankian ee tc quando as tropas nacionalistas tratam de recuperar as CoC Con Some ae a ent ret pean ‘enredado numa enorme divida contraida em decorréncia de seu gosto pelo jogo ¢ pelas mulheres. Lancado subi USCS ee eon meen tegen eet Chae LU GRon ce tran eshte eer ‘comega a reconstruir a vida. © destino, porém, Ihe teser- Sonn eon eet em EOE Sn a CoCo en heme tee) fornece o pano de fundo para esta saga comovente, que ‘omega nos anos 1940 ¢ segue até os dias de hoje. Viver STR eRe Cae Rec ence rete PSC neem Ce ec one Rel Een Dea cen eee aC wil i i 3 5 is) a F = > i DA acc Ree ene Be Rees Viver Yu Hua Serena on oRen ena recente sla pelo inter orda China, Nu: Reon orc are ean ons Pee ee nee ess reise ea ec eon ecco Perare mea rene SNE Pen name nunca eee ce orc acdas decisivas da China contempo- ee ean Meee ane et ee Oe me een Ser oe ny ral Hien lo ee MEH ane Mit st eee ean Lear aki ehenicreacarritt Genero conineennen Bee ear oat CORE kata eet Gihater reo) YU HUA Viver Tradueao dochinés Marcia Schmaltz — ort ETRAS anise ee IDES os uv exsbaDE DE MACA ‘GRIVERSIFY OF MACAU LIBRARY Copyright ©1995 b-¥ “Titulo original we Capa May’ Okayama Imagem decapa Robert Capa © 2001 by Comell Capa Maginim Photos Faligaodetexio Helos Jahn Preparagao Clidia Cantarin Revisdo Ana Mari Barbosa ‘ete Sousa Stet Capa dint se Malcrgha & A ecg [s208) Todlosos diretos desta digo reservados Rua Bandeira Paulista 70232 tuyysro02 Sao Paulos Telefone (1) 3707-3500 Fa (0) 3707-3501 wons.companhiadasletrascom br VIVER Quando eu era dez unos mais mogo, consegui um trabalho facil. Tinha de ir ao interior recother miisicas foleléricas. No verdo daquele ano, ex era como um pardal sem rumo, vagando pelas lavouras repletas dle sole eigarras. Ku gostava do cha amargo dos camponeses. Sempre havia um balde daquele tipo de cha embaixo de uma drvore, préximo da lavoura. Sem ceriménia, eu enchia a minha tigela jé manchada de ché e depois meu cantil, e cava jogando converea fora com os homens que trabalhavam na terra, prolongando aqueles momentos de propésito, s6 por eausa das risadinhas que provocava nas mogas que me espreitavam. Uma vez ecnversei a tarde inteira com um velho que cultnava uma lavoura de melo. Naquele dia comi mais meldo do que emtoda «aminhavida. Quando me levantei paramedespedir, percebi queteria tanta dificuldade para dar um passo quanto uma mulher gravida Depois, sentei-me no umbral de uma porta ao lado de uma senhora que éera avé, Enquantoelatecia um parde sandéliasde palhas,can tava para mim “Dez mesesde gestagdo”. Oque eu mais gostava era de sentar na frente das casas dos camponeses ao entardecer e vé-los orrifar a dgua reeéin-tirada do pogo na terra drida para assentar a poeira ardente, Con um leque na mdo, eu provava seus legumes em conserva, que sempre tinham gostodesal. Olhava para asjovensecon- versava com os homens, ea luz do poente se refletia nas crvores. Na cabeca usava um chapéu de palha de aba larga. Nos pés, chinelos. No cinto, levava uma toalha pendurada, ¢ela batia nas minhas nédegas feito um rabo, Eu passava o dia inteiro bocejando, caminhando lentamente pelas trilhas estreitas que percorriam os campos. O plec-plec-plec de meus chinelos levantava poeira, como um earro que passasse. Eu vagava por toda parte. Jd nao tenho certeza de quais vila. rejos visite’ ede quais deixei de visitar. Quando ia me aproximando deum deles, feqiientemente escutava wina erianga gritando: —Aquele cara que vive bocejando esta de volta! Porisso, 08 moradores jd sabiam que o sujcito que contava his- trias picantes ecantava miisicas sensuais estava ali mais uma vez. Na verdade, eu aprendera com eles todas aquelas historias e muisi- cas. Eu sabia 0 que os interessava, e claro que eram exatamente as coisas que me interessavam. Houve uma ocasido em que encontrei um yelho chorando, com o nariz inchado ¢ o olho roxo, sentado beira da lavoura; 0 rancor fazia seu peito tremer tanto que chegava a dardé. Vendo queeu me aproximava, ele chorou ainda mais alto, entao perguntei quem o deixara daquele jeito, Seus dedos arranca vamerostasde lama da barra da calea. Irado, contou que tinha sido 6 ingrato do filho dele. Quando perguntei o motivo, ele nado conse gui responder com clareza. Logo deduzi que o velho se assanhara com a nora. Numa outra noite, eu estava viajando a pé com a lan- terna na mao. Quando passei pelas margens de um acude, ilumi« nei dois corpos nus, um porcima do outro. Eles ficaram imoveis, a nndo ser pela mao que acariciava suavemente uma coxa. Apaguei depressa a lanterna e me afastei. Num meio-dia da alta temporada da lida no campo, entrei numa casa que estava com a porta aberta, 8 para beber égua. Um homem de short, todo afogueado, barrow minha passagem. Ele me conduziu até o pogo e gentilmente igow um balde de dgua para mim, esgueirando-se depois como um rato para dentro do quarto. Essas situagdes eram quase tao comuns quanto as miisicas foleléricas que eu escutava. Quando olhava toda aquela terra verde que me rodeava, compreendia melhor por que ali a lavoura era tao farta. Naquele vero, quase me apaixonei. Encontrei uma campo- rnesa que era um colttio para os olhos. Seu rosto queimado pelo sol até hoje reluz diante de mim. Quando a vi, ela estava com a calea arregagada, sentada na relva, na beira do rio, Segurava uma vara de bambu e cuidava de um banda de patos gordos. Essa moga, de dezesseis ou dezessete anos, passou timida- snente comigo uma tarde abafada. Toda vex que abria um sorriso, la abaixava acabeca, envergonhada. Fu avi discretamente descer a bainha da calga e esconder os pés descalgos na relva. Naquela tarde, falei a toa que gostaria de levé-la para passear por outros lugares, Ela ficou surpresa eeliz. Meu dnimo estava exaltado, mas havia sinceridade nas minhas palavras. Estar junto dela me dei- xava feliz, mas eu nao fazia planos para o futuro, Depois, poréi, quando os trés irmaos dela, fortes como touros, se aproximaram, levei um susto. Conelui que devia fugir 0 quanto antes, sendo ndo ‘eria outra saida a ndo ser casar com a menina Quando encontrei um velho chamado Fugui, 0 verdo come- gara havia pouco. Naquele inicio de tarde, me instalei sob a copa enorme de uma érvore. O algoddo da lavoura jd havia sido colhido. Algumas mulheres com as cabegas cobertas com lengo arrancavam as soqueiras de algodao. Elas mexiam os quadris a todo momento, no esforgo para remover a terra grudada na raiz. Tirei o chapéu de patha, peguei a toalha e enxuguei o suordo rosto. O.agude, ao meu lado, refletia o britho amarelo do sol. Me sentei,recostando-me na drvore, na frente do acude, e senti que logo ia dormir. Deitei na relva, pus 0 chapéu sobre 0 rosto, fiz da bolsa um travesseiro ¢, pro- tegido pela sombra, fechei os olhos Essa pessoa, dez anos mais jovem do que sou hoje, deitada entre as folhas ¢ a relva, dormiu cerca de duos horas, Durante o sono, formigas subiram pela minha perma; enxotei-as, mesmo ador. mecido, Depois, tive a sensagao de que ali na margem um velho esteava uma vara de bambu e vociferava. Acordei do meu sono pro- fundo. Escutava claramente uma vor e, ao me levantar, vium velho ralhando com um bifalo que estava numa lavoura préxima, biifato de canga tinha um ar muito cansado. De cabega baixa, estava imével. Atrds dele, 0 velho de dorso nu segurava 0 arado e parecia descontente com a passividade do animal. Ouvi quando ele expos para o biifalo, em altos brados, sua filosofia. — Sendo biifulo, are 0 campo; senda cachorro,xele pela case sendo monge, pega esmolas; senda galo, anuncie oamanhecer;sendo ‘mulher, teca 0 pano. Qual o bifala que ndo ara campo? Hssa é a ordem natural das coisas, desde a Antiguidade. Ande biifalo, ande! O hiifalo, cansado dos gritos do velho, pareceu reconhecer seu erro. Levantou a cabeca e, puxando o arado, pé-se a andar para a frente. Percebi que o dorso de ambos era igualmente negro, dois cor pos no anoitecerda vida, revolvendo uquele pedege de terra antigo, como ondas que se levantam das dguas, Foi enido que ouvi a yo rouca do velho, comovente, entoando una antiga dperas; ele come. gou com longos ais, seguidos de duas frases: O imperador convidoume pata serseu geto, ocantinho € longo e distante: ew niio vou, Por causa da longa distancia, o homem no aceitava ser 0 gento do imperador. Tive vontade derirdovelho. O brifilocomegou andar mais devagar, entao o yelho novamente gritou com ele: lo —Ersi, Youging nao afrouxems Jiazhen ¢ Fengxia arem bem; Kugen, voeé também! Como um hiifalo podia ter tantos nomes? Eu, curioso, eaminhei aatéa beira da lavoura, me aproximei do homem e the perguntei: Quantos nomes tem esse biffalo? Ovelho escorouoarado bem reto sobre os caleanhares. Depois de me examinarde cima a baixo, perguntow —Vocé ¢ da cidade, nao & ~ Sim, sou — disse eu, balangando a eabega afirmativa mente. — Percebi logo que 0 vi—disse satisfeito. —Afinal, quantos nomes tem esse biflo? — tome a perguntr. — Onome desse buifalo é Fugui e ele sé tem um nome ~ res. pondew —Mas ha poueo vooeo chamou por vérios nomes—repliguei Oh! —O yetho riv alegrementee acenou para min comar de mistério. Quando me aproximei, ele percebeu que o biifalo estava erguendo a cabega, entao o repreendeu, bradando: — Nao fique escutando escondido! Abaixe a cabega! E.o biifalo realmente abaixou a cabega, Nesse momento, sus surrando,o velho, me disse — Receio que ele pereeba que esta arando a terra sozinho, Por isso, minto para cle, chamando poroutros nomes. Ele, aoouvir,acha quetem mais buifalos arando a terra. Fica feliz eara com maisanimo! O sorriso do rosto escuro do vetho sob a luz do sol era esplén. dido; as rugas dangavam alegresem sua face, entranhadas de terra, como a lavoura repleta de sendas, Depois, aquele velho ¢ ew nos sentamos enbaixo daquela mvore de copa suntuosa, naquela tarde rudiantede sol, paraque ele me contasse a historia de sua vida. Quarenta e poucos anos atrés, meu pai caminhava por estas terras, anclando de um lado para o outro, sempre com as maos para tris. Ele vestia uma ttinica de seda negra. Quando safa, dizia para minha mae: — Vou caminhar pelas minhas terras. Enquanto men paifaziaa revista da lavoura, todos oscampo- heses o cumprimentavam e 0 chamavam de “yelho amo” Meu pai caminhava até a cidade, onde as pessoas 0 tratavam de “senhor”. Era um homem de muito prestigio, mas, quando cagava, era como miserdvel. Odiava cagar no penico ao lado da cama, no quarto. Como um animal, gostava de ir para o meio do mato. Todos os dias, a0 anoitecer, ele arrotava, ¢ seus arrotos ecoavam mais ou menos como o coaxar das rls. Entio ele saia da casa e, devagarzinho, tomava o rumo da latsina no campo, Quando chegava a beira da latrina, inspecionava o interior da cuba ¢ reclamava da sujeira; a seguir, levantava a perna e se acocoravaem cima dela. Aidade de meu paijaeraavangada, esua merda envelhecia com ele, Cada vez mais dificil forgé-la para fora! Naquela época, todos ecoando pelos campos afora. n casa escutdvamos seus berros Por décadas, meu pai cagou desse jeilo. Aos sessenta e pou os anos, ainda agitentava ficar um bom tempo acocorado; suas ppernas eram fortes como as garras de um passaro, Meu paigostava de contemplar o céu e vé-lo escurecer lentamente sobre stas ter- ‘as. Quando minha filha Fengxia tinha trés ou quatzo anos, ela ia orrendo até os limites da fazenda para ver o av6 cagar. Meu pai, id idoso, agachado sobre a latrina, {remia um pouco. Vendo-o assim, Fengxia perguntava: — Vovd, por que vocé fica tremendo? —E. pai. Naquela época, nossa familia ainda nao tinha conhecido a or causa do vento que esté soprando—respondia meu rufna, A familia Xu tinha mais de cem mus” de terras, Daqui até fébrica, era tudo nossa propriedade, Eu e nhecidos pela nossa riqueza, O som de nossos a chaminé dag} meu pai éramos c sapatos lembrava o tilintar de moedas de cobre. Minha mulher, Jiazhen, era filha do dono do armazém de arroz da cidade. Ela asa também tinha nascido em bergo de ouro. Um homem rico com uma mulher rica justamente parasomarasfortunas. Bosom do tilintar do dinheito é muito agradavel. Esse som eu nao escuito faz quarenta anos. Sou o filho fracassado da familia Xu, Nas palavras de mew Pai, sou o filho desnaturado que ele teve. Por varios anos, $6 fre- qiientei aulas particulares. Meus momentos mais felizes eram quando o professor, com sua tinica comprida, mandava que eu lesse trechas de um livro. De pé, segurando a volume costurado do Manual de mil caracteres,”* eu dizia para o professor: — Preste atengdo que o papai aqui vai ler para vocé. de bastante idade. Meu professor particular era um home Ele dizia para o meu pai — Esse seu filho, quando erescer, vai ser a esedria da socie- dade Desde pequeno ndo havia remédio que me curasse. Palavras cle meu pai. Meu professor particular dizia que eu cra uma étvore torta ¢ que nao havia como me enditeitar. Pensando bem, eles estavam certos. No infeio, eu nfo aceitava. Eu pensava: tenho dinheiro, sou filho tinico,se eu bateras botas, lise vai a familia Xu. Nunea fui a pé para as aulas particulates. Um empregado sempre me levava nas costas. Quando acabava a aula, cle ja © Unidade chinesa de medida utilizada até hoje no pais. Um mu equivalea umn inmzeavos de hectare. (N.T) Qianziven: um dos cinco livros mais eruditosds China antiga, era utilizado como livradiditieo, (N.T:) estava ali, espeitosamente agachado a minha espera. Eu mon- tavanele, dava uns tapasna suanuca edizia: “Corra, Changgen Ele entio comegava a correr. Eu, em cima, parecia um pardal num galho, Eu ordenava; “Voe!", e Changgen saltitava, imitando 0 vG0 de um passaro. Quando fiquei mais velho, comecei a gostar de ir A cidade Normalmente levava de dez a quinze dias para voltar para casa. la de tiinica branca, com o cabelo penteado, untado, liso e bri- thante, Parado disnte do espelho, ao ver meus cabelos negros, Tisos, eu sabia que sinha jeito de rieaco. Eu gostava de me enfiar no bordel a noite inteita, de ouvir os risos vulgares daquelas coquetes e suas tagarelices estridentes, Era como se aqueles sons me fizessem cécegas. Homemfeito, depois que comecei a freqiientar o bordel, era inevitavel que também comecasse a jogar. Bordel e jogo estdo ligados como ombro¢ brago— sio insepardveis. Mas eu gostava ainda maisde iogar. O bordel era s6 para relaxar, como a 4gua que se bebe deimais ¢ tem de ser liberada, Falando as claras, é como dar uma mijada, Agora, joger € completamente diferente, Ora eu ficava Rervoso, ora ficava contente. E aqucla sensagiio de nervosismo é que me dava um prazer indescritivel. Antigamente, eu vivia sem me dar conta, como um monge com sua tarefa de tocar o sino. Acordava jé pensando no que ia fazer durante o dia para matar 0 tempo. Meu pai com freqiiéncia suspirava desesperangado, me tepreendendo: eu nao ia honrar osancestrais. Eu pensava com os meus botses que honrar os ancestrais ndo era tarefa exclusiva- mente minha e dizia para mim mesmo: por que largara boa vida © me cansars6 para honrar os ancestrais? Além do mais, meu pai, quando novo, era igualzinho a mim — os duzentos mus que ele herdou logo foram reduzidos a metade; restavam apenas cem mus. Eu disse a meu pai —Nio se preocupe. Meu filho vai honrar os ancestrais, 4 Afinal, € preciso deixar alguma coisa para a geragio seguinte fazer. Minha mie, ao escutar essas palavras, abafou o riso e me disse em particular que meu pai, quando jovem, respondera da mesma maneira para o pai dele. Pensei comigo: como 6 que ele © conseguiu fazer? quer me obrigar a fazer uma coisa que nem el Naguele tempo, meu filho Youging ainda nao tinha nascido, e minha filha Fengxia mal completara quatto anos, Jiazhen estava tum tanto deformada em razdo da gravidez de seis meses de You- ging; cla caminhava como se tivesse um mantou® no meio das Pernas, que a fazia andar que nem uma pata com as pernas aber- tas. Ena rejeitava e dizia para ela: a barriga aumenta a cada rajada de vento. — Veja s6, au Jiazken nunca me enfrentava; as palavras grosseiras que cu Ihe dizia, ela guardava no coragio, No maximo respondia: “Até parece que foi o vento que a encheu’” Depois que comecei a jogar, cheguei a acreditar que ia hon- rar 0s ancestrais, que iria conseguir os cem mus de terra de volta Naqueles dias, meu pai perguntou o que eu estava aprontando na cidade e respondi: — Nio estou aprontando nada, estou fazendo negécios. —Que tipo de negécios? — ele insist. Meu pai ficou enfarecido. Ele também respondera assim ara meu avd. Meu velho sabia que eu estava jogando; tirou 0 sapato e veio na minha diregdo para me bater. Eu me esquivava para e4 e para li, pensando em deixar ele me dar uns tapas ¢ encerrar oassunto, Mas meu pai, que geralmente s6 tinha forga para tossir, me batia e ficava cada vez mais furioso, Eu ndo era ‘mosca para ficar levando tapa. Num impulso, segurei o braco dele e disse | 30 chines eto a base de farina de trigo, fermentoe dgua eassado no vapor. WT) — Pai, v4 pros diabost Nao vamos falar mais disso, Vou levar em consideragao que vocé me botou no mundo e te dar uma chance de deixar isso pra li. Vé pros diabos! Segurei o braco direito dele, entio meu pai tirou o sapato lana tentativa de me bater. Segu- direito coma mao esquerda, ai i também seu brago esquerdo, ¢ por fim ele ficou imobilizado Ofegante de fiiria, cle finalmente bradou: “Desnaturado!”. Res- pondi: “VA pros diabos”, Empurrei-o, ¢ ele caiu sentado num canto da sala Fiz todas as libertinagens possiveis quando jovem: bebi, comi, trepei e joguei. O bordel que eu freqtientava se chamava Qinglou. Havia ali uma prostituta gordinha que me agradava, as suas duas grandes nédegas rebolavam como duas lantemas verme- Thas penduradas na frente de uma porta, balangando de um lado para outro, Seu vaivém na cama, comigo em cima, me faria imagi- nar que estava dormindo num barco, ao balango das ondas do rio. Freqientemente, eu passeava pelas ruas carcegado nas costas por cla, Montado nela,eu tinha a sensagao de estar sobre uma égua, Meu sogro Chen, proprictirio do armazém de artoz, usava uma tinica de seda preta eficava de pé, atrés do baled. Cada vez que passavamos diante do armazém,eu puxava o cabelo da prosti- ‘uta para trs, mandando-a parar; depois tava o chapéu, em sinal de deferéncia, e cumprimentava meu sogro com um “Como tem pasado?” Orosto de meu sogro ficava vern elho comoumpimentio. F me afastava rindo, Algum tempo depois, meu pai me conto que neu sogro estava doente de tio bravo comigo. Respond: Nao ique botandoaculpaem mim, no. Voce, que émeu pai, ndo fica doente... Ble fiequ doente sozinho, ¢ agora quer empurrara culpa pra cima de mim. Meu sogro tinha medo de mim, isso eu sabia. Quando eu frente de sua loja montado na prostituta, ele se escon- assava n 16 ee dia no interior do armazém, como um rato, Nao tinha comgem dle me enearar, mas eu, como gento, ao passa por li nd padia deixar de demonstrar um pouco de educagao, nao € Entio pedia a béngao dele em altos brads © auge disso tudo foi logo depois que o Japa se rendeu, quando as tropas nacionalistas se preparavam para entrar na cidade para recuperara terra perdida. Naquele dia a cidade estava em alvorogo, com os dois ados das ruas tomados de populares com bandeirinhas na mao, as ban- deiras com o sol branco sobre o céu ail penduradas nos mastros clas Iojas; meu sogro pendurow dois pésteres com a imagem de Jiang Jieshi,* grandes como uma porta, um de cada lado da entrada do armazém, Seus trésatendentes estavamn de pé, aolado do bolso esquerdo de Jiang Jieshi, Eu passara a noite inteira jogando no Oinglou, ¢ minha cabeca estava zonza como se estivesse com uum saco de atroz no lombo. Lembr ne de que fazia quinze dias que nfo voltava para zedo. Entlo, arranr quei a puta gorda de cima da cama e mandei que me earregasse atéminhacasa. Chamei um palanquim para nos seguir, para levé- casa, minha roupa jé estava com um cheito Ja devolta ao Qinglou depois de me deixar em casa A prostituta me carregou resmungando em ditegao ao portio dlacidude. ‘Nem osenhor dos raios relampeja em gente adormecidat a praguejava coisasdo tipo“O diabo que ocarreguel”, Pouco que consegui dornire ji fai acordada por ti. Xingavame de malvado, Enfiei uma moeda de prata entre os seios dela, ¢ assim consegui calarsua boca, Ao me aproximar do porto, vendo asduas caleadas cheias de gente, recuperei oinimo num instante. * Mais eonhecido no Ocidente como Chang Kai-chek, foi lider do Partido Nacional do Povo (c4b) ¢ um dos nomes mais importantes da Guerra Civil Chinesa (192849), (N.T} ” Meu sogro era o presidente da associagdo comercial da cidade; eu, de longe, avisie-o gritando no meio da rua: — Posicionemse! Fosicionem-se direito! A tropa naciona- lista esté pertoe, quando chegar, todo mundo deve bater palmas ce saudé-la — Esté af... —alguém me viu e falou alto, rindo. Meu sogro achou que a tropa nacionalista é que se aproxi- mava ese perfilou rapidamente. Aperteia prostituta com firmeza, com as duas pernas, come se ela fosse um cavalo, e bradei: —Corra, corral ‘As pessoas em pé nos dois lados da calgada comecarama rir, a prostituta, bufando, trotava comigo nas costas e xingava: —De noite se deita sobre mim e de dia me monta! Malvado, voce esté me mandando para a morte! Eu, com um sortiso arreganhado no rosto, acenava com a cabeca para 0 povo que ria, Assim que cheguei diante de meu sogro, puxei firme o cabelo da prostituta, ordenando: — Pare, pare A prostituta gritou um i” e parou. Falei em voz alta para meu sogro: — Senhor meu sogro, seu genro pede a sua bengio. Eu realmente havia passado dos limites — meu sogro foi totalmente humilhado pormim. Ele ficou ali, paralisado, com os labios trémmulos, murmurando alguma coisa ininteligivel. Um tempo depois, com a vor entorpecida e rouca, disse: — Crépula, vé andando. — Aquela voz nao parecia a dele. Claro que minha mulher Jiazhen sabia de tudo o que eu iazhen era uma boa mulher. Se nesta vida aprontava na cidade casei com uma mulher virtuosa como ela, é porque na outra encarnagao devo ter sido um cachorro que nao parava de latir. Jiazhen sempre foi passiva em relagfo.a mim; eu fazia festa na rua ¢ elas6 guardava mégoa nocoragio, nunca me dizia nada, como minha mae, 8 Exagerei na farra e obviamente Ji then ficou inquiete com isso. Um dia, quando voltei para casa, mal sentei ¢ cla, todasomi- 505, pds quatro travessas sobre a mesa ‘am seguida, derremou bebida em meu copo ¢ ficou sentada a meu lado, me servindo, ‘jeito todo sorridente me suxpreendeu —fiquei pensando que devia ter acontecido alguma coisa boa com ela, ou entao que era alguma data especial; entretanto, por mais que eu pensasse, nfo ‘conseguia atinar. Perguntei o que tinha acontecido, mas el: ndo respondeu, ficou s6 olhando para mim esortindo. Os quatro pratos eram compostos por vegetais diversos, cada corido de maneira diferente, eobrindo pedacos de carne de porco de tamanhos praticamente iguais, De inicio, no me dei conta do que ela pretendia; somente quando cheguei a0 tiltimo rato, ao pegir um pedago de came de poreo, € que percebi qu Jiazhen estava me mandando uma mensagem cifrada. Num estalo, comeceia rir. Entendiame sagem que ela insinuava:ape- sar de todas as mulheres terem a aparéncia diferente, por baixo sio todas iguais. Entao eu disse a ck — Entendi o que voce esta querendo dizer. Mesmno entendendo, o fato é que era inevitivel que minha sensacdo diante de mulheres diferentes manea fosse igual. Jiazhen era uma mulherassim: mesmodescontente comigo, nao deixava nada transparecer, mas fazia uso de atifieios para me advertir indiretamente. E; como eu era mais teimoso que una porta, nem a sova de meu pai nem os pratos de Jiazhen consee nhas pernas. Eu gostava de bater pemas. Gos tava le bater pemnas pela cidade eadorava me enfiarno prosttbullo, guiam segur: Minha mie, sim, essa me compreendia, Ela dizia para Jiazher “Todos os homens sao insaciiveis como hhorros A frase da minha mae livrou nao sé minha cara como tam- bema domeu velho. Meu pai,sentado em sua cadeira, riacom os olhos semicerrados. Ele, quando mogo, também no fora santo; 19 oavango da idade ea dificuldade de locomogao € que o deixaram bem-comportado. Eu frequentava 0 Qinglou, jogava majiong, baralhos dados. Toda vez que apostava, perdia; ¢, quanto mais perdia, mais tinha vontade de recuperar os cem mus que meu pai, porsua ve7, havia perdido. Logo que comecei a jogar, a cada aposta perdida, cu pagava no ato, em dinheiro, Quando fiquei sem dinheiro, pas- sei a roubar as j6ias de minha mie e de Jiazhen — nem mesmoa corrente de ouro de minha filha, Fengxia, escapou. Depois, comecei a anotar a divida num caderno. Os credores sabiam da minha situagdo financeira e me davam crédito. Desde entio, perdio controle das minhas dividas;os credores também nada me diziam, contabilizavam men prejuizo as escondidas, de olho nos ccem mus restantes de minha familia. S6 depois da Libertacdo é que tomei conhecimento de que os vencedores das apostas haviam trapaceado, de modo que sem- pre ganhavam ¢ eu sempre perdia. Eles cavaram uma cova para que eu me jogasse sozinho nela, Naquela época, havia um senhor de sobrenome Shen, com quase sessenta anos de idade: os ollios eram toastutos quanto os de um gato; ele vestia uma tinica azul, suas costas ficavam eretas, Normalmente ost. Shen permanecia sentado num canto do saldo, comosse estivesse cochilando. Espe- rava que a aposta ficasse alta; af dava uma tossidinha e se aproxi- mava devagar, como quem no quer nada. Escolhia um lugar estratégico para observaro jogo, esperando que alguém cedesse 0 lugar: “Senhor Shen, sente-se aqui”. O Shen levantava a tinica para poder s favor, prossigam”, ‘Nunca se viu o st. Shen perder uma aposta no Qinglou. As velas azuis de suas maossaltavam quando cle embaralhiava as ca acomodar e dizia aos outros trés jogadores: “Por tas. A Ginica coisa que se ouvia era o ruido das cartas. Meus olhos chegavam a arder. 2 Uma vez or. Shen se embriagou e me disse: — Um bom jogador depende apenas de um bom par de olhos e de maos. reciso treinar os olhos para que fiquem ripi- dos como garras, e as maos, escoregadias como enguias. No ano em que 0 Japao se rendeu, apareceu Long Er, cujo sotaque ora tendia para o de uum sulista, ora para ode um nortista S6seu modo de falar ja era suficiente parasabermos que se tratava de um sujeito que tinha hist6ria, que com certeza se aventurara por diversos lugares, um homem do mundo. Long Er nao vestia 'inica: trajava camisa e calga de seda branca. Com ele vieram dois assistentes, que carregavam duas grandes malas de vime. Naquele ano, as partidas de cartas entre ost. Shen e Long Er foram realmente sensacior ais, Asala de jogos do Oinglou fieava abarrotada de gente que queria assistira disputa do st. Shen com Long Ere seus dois assistentes. Atrés de Long Er, um gargom segurava uma bandeja com toalhas secas, e a todo momento Long Er pegava uma toalha ¢ secava as mios. Estranhavamos que ele nao usasse a toalha timida, e sim a seca. Ele secava as mos como quem acabara de comer, No inicio, Long Ers6 per- dia, mas dava ares de quem nao estava nem af; seus dois assisten- tes, porém, no se continham, um xingava e 0 outro suspirava. O st. Shen ganhava todas, mas em seu rosto nao se via ar de vil6ria, Ele franzia o cenho, comose tivesse perdido, mantinha a cabeca ereta e fitava as maos de Long Er, como se seus olhos estivessem pregados nelas O sr. Shen jé era uma pessoa de idade. Apés uma noite de jogatina, ele ficou ofegante, seu rosto transpirava. Ost. Shen disse: — Uma tiltima partida para definira vitdria ou a derrota. Long Er retirou da bandeja a tiltima toalha, esfregando as mios. “Vamos la”, disse. Os homens amontoaram todo o dinheiro ao redor do centro da mesa, ocupando quase toda a drea, Foram distribuidas cinco cartas a cada um e, quando a quarta carta foi dada, os dois parcei- rosde Long Er desistiram, Elesjogaramas cartas que possuifam no centro da mesa e disseram: —Acabou, perdemos 0 jogo. — Nao perderam, nao, Vocés ganharam! — Long Er se apressou em dizer. Nesse anesmo instante, cle revelou sua tiltima carta, um és de espadas. Seus parceiros sorriram ao vé-la, Na verdade, a tiltima carta do st. Shen também era um 4s de espada. Ele tinha na mao trés ases e dois ris; um dos parceiros de Long Er tinha trés damas dois valetes. Long Ersaiu na frente e mostrou o és de espadas. O st. Shen ficou estarrecido, mas na seqiiéncia fechou as cartas que segurava e disse: —Perdi ‘Tanto 0 4s de espadas de Long Er como o do st. St tirados de suas mangas, j4 que num jogo de baralho nao pode haver dois ases de espadas, mas Long Ex foi mais esperto ¢ 0 sr n foram Shen nao teve outra sada sendo reconhecer a derrota. Foi a pri- meira vez que o vimos perder um jogo. Ele empurroua mesa ese levantou; com as maos, fez uma reverénciaa Long Ere caminhou em diregdo a porta. Na saida, virou-se e disse sorrindo: — Estou velho, Ni gada ele subiu num palanquim e foi-se embora. Comapartidadosr. Shen, Long Erse tomou.o mestre da joga- tina. Long Er era diferente dost, Shen. Estesé ganhava, nunca per- maisse viuosr. Shen. Ouvi dizer que naquelamadru- dia, a0 passo que aquele perdia em apostas pequenas, mas nunca nas grandes. Eu apostava seguidamente com Long Ere seus assis tentes. As vezes ganhava, as vezes perdia, por isso sempre achava que meu prejuizo nao era grande coisa, s6 que na realidade ga- nhara apenas nas peque apostas e perdera nas grandes, Estava ego, ainda achando que conseguiria honraros ancestras. a A diltima vez que joguei, Jiazhen apareceu. Jé estava quase escurecendo, mas isso Jiazhen me contou depois; naquele momento, eu nao fazia a minima idéia de se era dia ou noite. Jiazhen chegou ao Qinglou com sua grande barriga de sete ou cito meses, com meu filho Youging, Ao me encontrar, ajoelhou- se aos meus pés sem dizer nada. A principio nao percebi asua pre- sena, pois naquele dia estava com sorte: a cada dez arremessos de dados, entre vito e nove eram ntimeros de que cu precisava. Long Er, sentadoa minha frente, dava uma risadinha e dizia — Perdi de novo, irmao. Depois que Long Er ganhou do st. Shen nas cartas, nin- guém mais teve coragem de jogar baralho com ele no Qinglou, nem eu. Eu sempre apostava com ele nos dados, e mesmo nos dados Long Er jogava bem; geralmente ganhava mais do que perdia. Naquele dia, porém, ele caiu nas minhas mos, e come- ou a perder uma aposta atrds da outra, Toda vez. que perdia, fi fa com 0 cigarro dependurado no canto da boca, de olhos rrados, como se nada estivesse acontecendo, com um sorrisinho nos labios; mas foi com imenso softimento que ele empurrou o dinheiro para meu lado. E eu pensava com meus botdes: Long Err, vocé também tem de sofrer uma vez. Na vida todas as pessoas so iguais; quando o braco se espicha para pegar odinheiro do bolso alhcio, tudo é alegrias s6 que, quando chega sua vez de pagar, parece que esté participando de um enterto. Euestava me divertindo, quando alguém puxou a minha roupa; foi af que abaixei a cabega ¢ vi minha propria mulher. Ao ver as. Jiazhen ajoelhada, me enfureci, pensando: meu filho nei ceue jdesté ajoelhado, issoé de mau agouro, Entio eu disse para Jiazhen: — Levante, levante! Levante e que o diabo te carregue! Jiazhen foi obediente e se levanton na hora. Eu disse: —0q c voce veio fazer aqui? Vi para casa, vil 3 Falei endo me importei mais com ela, Long Ex sacudia os da- dos entre as duas maos fechadas, como se reverenciasse ao Buda; Jangou os dados e ficou com um semblante horrivel. Entao disse: — Depois de tocar em bunda de mulher sé se tem azar. Eu, vendo que havia ganhado novamente, comentei —Long Er, va lavar as maos. Long Er deu uma risadinha e respondew: —Limpe sua boca antes de falar Jiazhen puxou minha roupa de novo; olhei, e ld estava ela, ajoelhada. Jiazhen falou delicadamente: —Volte comigo para casa. Ela queria que eu saisse dali com uma mulher? Jiazhen nao estaria me humilhando propositalmente? Num instante a ira me subiu a cabe¢a; vi que Long Ex e os outros estavamn rindo de mim, entio berrei para Jiazhen: —Saia daqui —Volte comigo—Jiazhen repetiu, insistente. Dei dois tapas na cara dela, e sua cabega balangou como um tambor. Mesto assim, Jiazhen permaneceuali, ajoelhada, e nao desistiu: — Enquanto vocé nao for para casa comigo, nia me levanto Recordando-meagora, comome déiocoracdo: quandoeu era novo, era um tremendo de um cafajeste, Tinha uma mulher tio boa c retributa com tapas e pontapés. Por mais que eu batesse nela, Jiazhen nao se levantava, Bati tanto que até perdi o interesse; 0 cabelo de Jiazhen, todo desgrenhado, encobria seu tosto banhado em Lagrimas. Peguei um punhado de dinheiro do monte que havia ganhado ¢ entreguei a dois homens que estavam parados ali a0 lado; pedi que arrastassem Jiazhen para fora e ainda recomendei: —Arrastem essa mulher daqui. Quanto mais longe, melhor! Quando a arrastaram para fora, suas miios seguravam firme a barriga saliente. Ali estava meu filho! Jiachen nao disse um ai 4 quando foi enxotada para a rua; depois dea terem latgado na cal~ ¢ada, ela levantou apoiando-se na parede. Naquele momento, a escuridao jé era completa, e ela, lentamente, voltou sozinha para casa. Mais tarde perguntei a Jiazhen se, naquela hora, ela ndo havia setindo muito édio de mim, Ela balangou a cabega e res- pondeu: “Nao”, Minha mulher, enxugandoasligrimas, caminhou atéa porta do armazém de arroz de seu pai eal ficou por um longo tempo. A sombra da cabeca cele se projetava na parede coma luz da lampa- rina de querosene; cla sabia que ele estava fechando o livro-caixa. Jiahzen ficou ali parada, solugando um pouco, depois partiu. Naquela noite, iazhen percorreu mais de dez lis® de estrada scura até minha casa. Ela, uma mulher sozinha eainda porcima gravida de maisde sete mesesde Youging, enfrentou oslatidos dos cles, a estrada enlameada e cheia de pocas, depois da chuvarada Alguns anos antes, Jiazhen era apenas uma estudante. Naquele tempo ex:stia uma escola noturna na cidade. Jiazhen, vestindo um gipao branco e segurando uma pequena lamparina a querosene, ia & escola acompanhada de algumas amigas. Vi-a ‘numa esquina: seus passos eram cadeniciados, seu salto alto batia naa laje e tilintava como se estivesse chovendo. Meus olhos fica- ram vidrados. A Jiezhen daqueles tempos era muito bonita: 0 cabelo penteado rente atrds da orelha, com as pregas do gipao dangando na cintvra enquanto ela caminhava. Naquele mo- mento, pensei: quero que ela seja minha mulher. Quando Jiazhen passou por mim com as colegas,falando e indo, perguntei a um sapateiro que estava sentado no chao: — Aquela moga é filha de qual familia? — Ela € a j6iado senhor Chen, do armazém de arroz —o sapateito respondeu. * Unidade chinesa de distancia equivalentea meio quilémetro, (N."T.) 25 Assim que cheguei em casa, disse a minha mie: —Vé procurar uma casamenteira, pois quero me casar com afilha dosenhor Chen, dono do armazém de attoz, ‘Meu azar comecou logo depois de Jiazhen ter sido arrastada para longe: perdi virias partidas seguidas. Diante de meus olhos,a pilha de dinheiro que eu acumulara desaparceia como agua de lavar os pés. Long Er era todo sorrisos, Daquela vez, apostei até 0 amanhecer, jogue até ficar zonzo; minha boca exalava um cheiro podre que vinha direto do estomago. Na tiltima rodada, apostei todas as minhas fichas; cuspi nas mos para lavé-las, pensando que o triunfo estava nessa jogada derradeira. Quando estava prestes a langar os dados, Long Er esticou os bracos, impedindo-me, e disse: —Evpere Long Kr fez um sinal para o gargom e falou: — Taga uma toalha quente para o jovem senhor Xu. Naquele momento, todos os olhieitos jd tinham ido dormir. Restavamapenas alguns jogadores eos dois assstentes de Long Er. S6 mais tarde eu soube que o garcom havia sido comprado por Long Er. Quando ele me passoua toalha quente, Long Er, aprovei- tando queeu enxugava o rosto trocou os dados as escondidas, Nao percebi nada; limpet o rosto,joguei a toalha na bandeja, peguei os dados,sacudi trés vezes e joguei — nada mal, 0s pontos eram altos. Quando chegow a vez de Long Er, ele fechou os dados na palma da mao, virou-a, deu uma batida no dorso e berrou: “Sete!” Aqueles dados tinham sido vazados e preenchidos com mer- ctirio, Com a batida de Long Er, o meretirio sedimentou-se no fundo ¢, ao serem jogados, os dados rolaram algumas vezes na mesa e pararam somando ose. Vi que realmente os dados somavam sete; meu eérebro zzuniu, pois daquela vez perdera feio. Entio pensei: podia deixar a divida anotada — dias de mais sorte viriam —; relaxei, levantei- mee dissea Long Ex: 6 — Deixe af anotado. Long Er fez um sinal com a mao para que eu sentasse e me comunicou: —Nio podemos deixar mais nada seu anotado. Voc® jd per= deu todos os cem mus de sua familia; se deixar anotado, o que pos- sui para nos dar de garantia? — Nav pode ser, no pode ser... — interrompi abrupta- mente o bocejo pela metade. Long Erc os outros dois eredores trouxeram o livro de contas, © comegaram a somar minhas dividas uma a uma diante de mim. Eu acompanhava a contabilidade com atengio, quando Long, Er dew uma batidinha na minha nuca e disse: —Esté conferindo tudo direitinho, jovem senhor? Essasassi- naturas sio todas suas Nessa ocasido fiquei sabendo que meio ano antes eu jd devia a eles, Nos iltimos seis meses torrara toda a heranga deixada por ‘meusantepassados. Quandoacontaainda estava pela metade, eu disse a Long Er: —Nao precisa mais somar. Levantei todo em frangalhos e saf do Qinglou; o dia jé ama- nhecera completamente. Fiquei parado na calgada, sem saber para que lado ir. Um conhecido meu, que transportava doufu® ‘num cesto, exclamou as minhas costas: — Bom dia, senhor Xu! Seu grito me assustou, fiquei estarrecido olhando para le. Sorrindo, ele me diss — Olhe s6 para o senhor! O senhor esta derrubado, hein! Ele achava que eu estava daquele jeito por causa da farra comas mulheres; mal sabia que cu estava arruinado, que me tor- nara tdo pobre quanto um empregado. Sorri amargamente ao vé- *Também conhecido como "tofu", quetjo de soja. (N.) 7 lose afastar. Pensei que 0 melhor era nao ficar maisali parado; s me arrastando. Quando me aproximei do armazém de meu sogro, seus dois empregados estavamn abrindo a loja, Ao me ver, comecarama tir, idachando que mais uma vez en iria pedira ele abénc3oemaltas vozes. De onde eu tiraria coragem para isso? Encolhi os ombros € passei pela frente da loja apressado, rentea parede. Ouvia tosse do velho sogro vindo la de dentro, seguida do barulho do catarro cuspido no chao. Com a mente desnorteada, caminhei para fora da cidade; por alguns momentos cheguei a esquecer que levara a familia rafna, com a mente mais vazia do que uma colmeia de marim- bondo depois da enchente. Quando saf da cidade e via estrada gue conduzia a minha aldeia, fiquei de novo com medo ¢ come- cei a matutar sobre o que fazer. Dei alguns passos e nao consegui ais avangar; vendo que nao tinha ninguém ao redor, pensei em tirar o cinto das calgas ¢ acabar com tudo aquilo, enforcando-me. Retomei a caminhada, passei por um olmo, mal o espreitei e nao tive vontade de tirar 0 cinto, Na verdade, nao queria morrer; somente estava procurando uma maneira de me ferir. Pensei que 'o poderia eniforcar aquela divida junto comigo, entio disse a im mesmo: deixa pra Id, no vou morrer. Essa divida haveria dle ser paga pelo meu pai. F foi s6 pensar hisso para que meu coragdo disparasse. Dessa vez, ele ia acabar sinha raga, Enguanto alternativas t coma minhava, matutava que a viniea cria mesmoa morte, portantoomelhoreravoltarpara casa. Ser sovado atéa morte por meu pai seria mais digno do que morrer enforcado feito um cachorro vira-lata Eu ainda ndo percebera, mas, naquele curto espago de tempo, emagreci e as olheiras ficaram mais profindas. Quando heguei em casa, minha mae, ao me ver, dew um grito de susto: — Voce é 0 Fugui, nao? — perguntou. 8 Piguet olhando para o rosto dela ¢ retribuf com um sorriso amargo ¢ um aceno de cabega; minha mac ficou tagarelando sei laoqué. Nao olhei mais para cla, empurrei a porta de meu quarto entrei,fiazhen estava se penteando e, a0 me ver, também levou uum susto, Ficou boquiaberta. Ao me lembrar de que, na noite anterior, quando ela me chamara de volta para casa, eu, em vez de segui-la, batera nela, num impulso me aioelheie disse: —Jiazhen, €o meu fim! Acabei de pronunciar essas palavras ¢ caf em prantos. zhen atrapalhadamente tentou me ajudar ¢ levantar, mas como, grivida de Youging, teria forgas para tanto? Ento, ela chamou minha mae. As duas mulheres juntas me ajudaram a deitar na Deitei e comecei a vomitar espuma, como se estivesse para morrer —quase matei as duas de susto. Uma me fazia massagem nas costas, a outta sacudia minha cabega, Aiastei-as ¢ contei: —Perdi tudo no jogo. Minha mae primeiro ficou estarrecida, depois disse: —O que voce falou? — Perdi toda a propriedade da far Pelo estado em que eu estava, cla aereditou em mim. Em la, caiu de bunda no chao ¢, secandoas lagrimas, falou: —Coluna torta, vigatorta Até naquele momento minha mie continuava me prote- gendo: no culpava a mim, masao meu pai Jiazhen também comegou a chorar, ela massageava minhas costas dizia —Desde que voce nao jogue mais, tude havera de melhorar. Eu perdera tudo; mesmo que quisesse jogar, nfo havia mais dinheiro. Ouvia meu pai me xingando sem parar; ele ainda nao sabia que jé era um pé-rapado, Estava reclamando do barulho do choro das duas mulheres. Ao ouvira vor de meu pai, minha mae , seguida por Jiazhen. Eusabia parou de chorar, levantouse esi 29 que elas tinham ido a0 quarto dele; alguns instantes depois, ouvi meu pai praguejar: — Desgragado! Nesse momento, Fengxia, minha filha, entrou no quarto rapidamente fechou a portaatrés de si, Ela sussurrou pata mim: — Papai, se esconda répido, 0 vov6 est vindo bater em voce de novo Figuei parado, olhando para ela; Fengxia entdo comecou a ‘me puixar pela mao, Como niZo consegu 1a daquele jeito, parecia que estavam cortando meu coragao, , caittno choro, Ao ve Fengxia era Ho pequena e ja sabia proteger o pai —s6 por causa disso cu merecia arderno fogo do inferno. Ouvi meu pai se aproximar bufando, Berrava: — Seu desnaturado, vou te escalpelar, vou te castrar, vou te cortar em mil pedagos, seu filho-da-mai Pensci: entra, pai, vern me cortar em mil pedagos. Porém, quando ele chegou na porta, seu corpo girou e caiu desmaiado de taivaaochao. Minha mae e Jiazhen depressa olevantarameocon- uzitam até sua cama. Logo depois, ouvi seu choro repleto de dor. Meu pai ficou de cama por tts dias seguidos. No primeiro deles, chorava dolorosamente; depois parou, limitava-se a dar suspitos prolongados, e cada um deles chegava até mim: —Ah, maldigao, isso é mal No terceiro dia, meu pai recebeu visita em seu quarto, Tos- sia estrondasamente, mas, ao falar, sua voz era sussurtante, mal dava para escutar, Quando a noite chegou, minha mie veio me dizer que ele estava me chamando. Levantei-me da camae pen- sei: desta ver estou liquidado, meu pai descansou tés das, agora terd foreas para acabar comigo; no minimo, vai me espancar até 1 ficar mais mort do que vivo, Entao en disse para mim mes- ‘mo: por mais que o pai me bata, no vou revidar. Caminhei em diregao ao quarto dele, totalmente sem forcas, com o corpo mole 30 Minhas pernas pareciam falsas. Ao entrar, fiquei atrds de minha mae, espreitando o jeito dele. Meu pai me encarava com os olhos arregalados, e até sua barbicha parecia tremer. Ele disse a minha mae —Vocé pode sir. Minha mae saiu, passando a meu lado. Senti um vazio no ccoracao, pois pressentia que a qualquer momento ele ia se levan- tarda cama para darinicioa batalha de morte. Ele continuou dei- tado sem se mexer; 0 lengol etn cima do peito dele escorregara para chiio, —Ah, Fugu Meu pai me chamou e bateu de leve na beirada da carna: —Senta aqui. Meu coragao disparou num tum-tum-tum, Sentei ao lado dele, meu pai pés a mao sobre a minha; a dele estava fria como gelo—congelou até meu coragao. Meu paifalou candidamente: —Ah, Fugui, divida de jogo é uma divida como qualquer outra; por isso, desde a Antiguidade, nao hé razdo para nfo quiti- ta, Penhorei nossos mais de cem mus de terras e esta casa. Ama nha, info trazer as moedas de cobre. Estou velho, ndo consigo ‘mais carregar tanto peso. Entdo, vi voeé mesino, leve o dinheiro e pague a divida. ‘Um longo suspiro se seguiu a fala. Ao escuté-lo, meus olhos comegaram aarder. Eu sabia que ele nao ira mais brigar comigo, ‘mas suas palavras pareciam uma faca atravessando minha gar. ganta;a cabega nao se desgrudava do corpo, masdofa comose eu fosse morrer. Meu pai tocou novamente minha mao e disse: —Vé dormir, v Na manha seguinte, mal acordei ¢ jé vi quatro homens entrando no patio de minha casa: 0 que estava na frente era um homem rico: vestia um traje de seda e era seguido por trés carre- gadores. Fez um sinal coma mio e falou: 3 —Podem largar. Os trés carregadores puseram as cestas no chao e limparam © suor com a barra da camisa. O homem rico olhava para mim, ‘mas gritava para meu pai — Senhor Xn, sna encomenda chegou. ‘Meu pai se aproximou tossindo, trazendo nas mos as eseri- turas da casa e das terras. Ele entregou aquele homem, fazendo reveréncias: —Dei-he trabalho. ‘O homem apontou para as trés cestas cheias de moedas de cobre e disse ao meu pai — Estio todas aqui, pode contar. —Nio precisa, nzo precisa, imagina; vamos sentar lf dentro ¢ tomar um cha — disse meu pai sem a menor atitude de gente rica, jf subalterno, como uma pessoa pobre. —Nio é necessério — o homem respondeu. Ele se voltou para mim e perguntou a meu pai: — Esse rapaz 6 0 seu filho? Meu pai acenou afirmativamente com a cabeca, rindo, ¢ 0 hhomem disse para mim: —Quando for entregara mercadoria, cubra-a com folhas de abébora para evitar que o assaltem. A partir daquele dia, passei a carregar as cestas com as moe- dasde cobte, Caminhava mais de dez lis atéa cidade para pagara divida, carregando as ceslas com as moedas de cobre. As folhas de abébora que cobriam as moedas haviam sido colhidas por minha mice Jiazhen, e também por Fengxia, que, ao ver a mae e 4 av6 colhendl as folhas, foi spanhé-las também: escolheu duasfolhas enormes e cobriu a cesta. Eu me preparava para sair, ¢ Fengxia ignorava que eu ia até acidade para pagar a divida. Empinandoo rosto, perguntou: —Papai, vocé vai ficar quantos dias fora de casa? 32 Aoescuté-la, meu nariz ardeu,as ligrimas quase escorreram. Apressei-me em carregarascestase fui em diregio acidade. Assim que cheguei, Long Er, quando me viu, falou calorosamente: —Chegou o jovem senhor Xu! Pusa cesta na ficnte dele. Long Er levantou as folhas de abo- bora, franziu o cenho e disse, afetuoso: —Praque tanto trabalho? Pagar em prataé muito mais prético! Assim que entreguei o tiltimo carregamento de cestas com as moedas de cobre, ele deixou de me chamar de jovem senhor. Comum gesto, disse: —Ponha aqui, Fugui, Outro credor, mais afetuoso, deu uns tapinhas nos meus ombros e fez um convite: —Venha, Fugui, vamos tomar um cha. Long Er, ouvindo o convite, apressou-se em dizer: —ss0, isso, vamos tomar um cha. £ por minha conta. Recusci com a cabega e pensei comigo mesmo que era melhorvoltar para casa, Bastou um dia para minha camisa de seda rasgar, e meus ombros ficarem esfolados até sangrar. Fui andando sozinho para casa, caminhando ¢ chorando, chorando e cami- nhando. Pensei: bastou um dia carregando as cestas para ficar assim cansadoe esgotado. Eu também me questionava:a custa de quantos homens exauridos teria sido construida a fortuna de meus antepassados? Nesse momento € que percebi por que meu pai insistira em me mandar carregar moedas de cobre em vez de pepitas de prata. Ele queria que eu entendesse a moral da hist6- ria, queria que eu compreendesse como é dificil ganhar dinheiro. Quando cheguei a essa conclusto, ndo consegui mais caminhar, me agachei na beira da estrada e chorei até ter espasmos. Foi quando surgiu o velho empregado de nossa familia, Changgen, aquele que me carregava nas costas paraa escola. He vinha cami- nhando na minha dirego, carregando uma trouxa toda esfarta- 33 pada. Changgen trabalhara em minha casa por dezenas de anos, agora também teria de partir. Ele perdera os pais ainda muito pequeno; fora meu avd quem o trouxera para nossa casa. Nunea se casou. Fle, como eu, estava imundado em ligrimas. Changgen caminhava em minha dirego com os pés desealeos e rachados. ‘Ao me ver acocorado na be ra da estrada, gritou: —Jovem senhor! —Nio me chame maisde jovem senhor, chame-me de ani- mal — gritei para ele Ele balangou a cabega recusando: — Imperador mendigo nao deixa de ser imperador; mesmo no tendo mais dinheiro, vocé continua sendo meu jovem senhor, Ao escutar Changgen, as kigrimas qe haviam secado pouco antes, voltaram a escorrer. Ele também se agachou a meu lado e se pdsachorar, Choramos untos porum instante, depoiseu disse: — Jaesté quase escurecendo, Changgen, volte para casa Changgen se levantou e se afastou de mim lentamente; ainda o ouvi resmungar: — Para que eu vou voltar? ‘Também fiz mal a Changgen, Vendo-o resmungare afastar-se sozinho, senti uma dor no co:agao. $6 me levantei dali quando ele jf ia bem longe ¢ ew nao conseguia mais enxergé-lo. Cheguei em casa depois de escurecer. ‘Todos os empregados da casa tinham ido embora, Minha mae e Jiazhen estavam perto do fogio, urna cui dando do fogo ea outra cozinhando. Meu pai continuava deitado hha cama, S6 Fengxia estava a egre e feliz como sempre; ainda nao sabia que daquele momento em diante ira softer Elase aproximou demim correndo e pulando, subiu na minha pera e perguntou: — Por que as pessoas estio dizendo que nao sou mais uma senhorita? Acariciei o rostinho dela sem conseguir dizer nenhuma palavra. Ainda bem que Fengxia no me perguntou mais nada; 4 raspando com as unhas o barro grudado nas minhas ealgas, disse alegremente: — Estou lavando as calgas para voce. Na hora do jantar, minha mae foi até a porta do quarto e per- guntou ameu pais Quer que eu traga a janta? — Vou me levantar para comer — respondeu ele. Meu pai sai do quarto segurando a lamparina a querosene ‘com trés dedos. O reflexo da luz iluminava metade de seu rosto; comas costas arqueadas, ele tossia sem parar. Depois de se sentar, me perguntou: —Liquidou a divida? Eu, de cabeca baixa, respond —Liguidei —Otimo, timo. Ao ver meus ombros, disse: —Até seus ombros ficaram arranhados. Nada comentei. Olhei furtivamente para minha mie e Jia- zhen, que, com os olhos banhados em kigrimas, olhavam para meus ombros. Meu pai comezou a comer lentamente; pouco tempo depois colocou os palitinhos na mesa, empurrou a tigela para o lado e parou. Passados alguns minutos, ele disse: —Antigamente, 0s Xu sé tinham um frango ele cresceue se tornow um ganso; o ganso cresceu e se transformou numa cabra; eles cuidaram da cabra, ¢elase lomou um biifalo, Foi dessa forma ‘que a nossa familia prosperou voz de meu pai era apenas um sussurro, Depois de uma pausa, ele continuow: —Quando chegaram as minhas maos, os bifalos da famflia Xu se transformaram em cabras e as cabras, em gansos, Na sua gerago, os gansos se transformaram em galinhas, ¢ agora nem aquele frango temos mais! 35 ‘Quando terminou sua historia, meu pai comegoua rirasgar- galhadas, esua risada se transformou em choro, Ele apontou dois dedos na minka direcao: —Da familia Xu safram dois perdulérios! Menosde dois dias maistarde, Long Erapareceu. Estava bem diferente: dois dentes de ouro reluziam em seu sortiso aberto, Ele ‘comprara as propriedades penhoradas ¢ vinha conhecé-las. Long Er chutou 4s vigas, colou a orelha na parede e deu umas batidi- nhas com opunho, elogiando: — Muto resistente, muito resistente. Visitou toda a propriedade; depois cumprimentou meu pai comentou: — Olhando esses campos verdes, sinto-me em paz. A chegada de Long Er significava que terfamos de nos mudardaquela casa, onde afamiliaXu vivera por varias geragoes; nosso destino era um casebre. No dia da mudanga, meu pai, com as dias maos as costas, percorreu os comédos da casa e disse por fim a minha mae —Euachava que ia morrer nesta casa. Emseguida, bateua pocirada tunica deseda, espichou opes- ogo e saiu pela porta. Meu pai, como sempre, com as mios 2s cosas, sedir'gia lentamente a latrina da entrada do vilarejo.O dia ja estava escurecendo e ainda havia alguns artendatétios traba- Thando na lavoura; todos sabiam que meu pai nao era mais 0 senhor daquelas terras, mas mesmo assim, segurando 0 cabo da enxada, cumprimentaram-no: —Velhoamo. Meu pai sorriu suavemente e, acenando para eles, disse: —Naome chamem mais assim. Meu pai jd ndo caminhava sobre sua propriedade. As pernas ‘se arrastaram até a entrada da aldeia; parou em frente & latrina, ‘olhou ao redor, dlesamarrou o cinto ese agachou. 36 Naquele entardecer, meu pai nflo urrous ele fitava, com os olhos semicerrados, o horizonte ao longe. A estrada que ligava nossa aldeia a cidade sumia diante de seus olhos. Nas proximida- des, um arredantétio colhia verduras abaixado; quando ele se Jevantou, meu pai deixara de vera estrada. Ele cafra da latrina; ao escutar o barulho, 0 arrendatério virou-se rapidamente e viu meu pai estirado no chao, com a cabega encostada na beira da latrina, sem se mexer. O homem, carregando a foice, correu até meu pai e perguntou: —Velho amo, 0 senhor esta bem? As palpebras de meu pai se mexeram e, olhando para 0 arrendatério, ele perguntou com voz rouca: —Quem é vocé? —Eu sou Wang Xi, velho amo. Meu pai pensou alguns instantes e disse: —Oh, Wang Xi, Wang Xi, tem uma pedra embaixo de mim {que est me machueando, Wang Xi virou o corpode meu pai ede debaixo dele retirou ‘uma pedra do tamanho de um punho, Ele a jogou para o lado. O corpo pesado ¢ estirado de meu pai continuava ali cafdo. Ele murmurou: —Agora esta melhor. —Quer que eu levante o senhor? — Wang Xi perguntou. ‘Meu pai fez que ndo com a cabega ¢, recuperando 0 folego, disse: —Nio precisa. — Emseguida, perguntou: — Vocé ja tinha me visto caido no chao? — Nunca, senhor — respondeu Wang Xi balangando a cabega. Meu pai pareceu ter ficado contente com a resposta ¢ fez outra pergunta: — Esa foi a primeira vez que eu cal? 7 — Sim, velho amo — Wang Xi respondeu Meu pai deu uma risadinha e cerrou os olhos, Seu pescogo pendeu para o lado e a cabeca escorregou da latrina para o chi. Naquele dia, havfamos acabado de nos mudar para o case- bre. Eu e minha mae estavamos dentro de casa arrumando as coisas; Fengxia nos seguia alegre, ajudando a arrumar tudo — mal sabia cla que, dali em diante, iria comer 0 po que o diabo amassou. Jiazhen carregava uma grande bacia com as roupas lavadas no acude. No meio do caminho, ela encontrou Wang Xi, que lhe disse: — Senhora, parece que 0 senhor se foi. De dentro da casa ouvimos 0s gritos de Jiazhen: —Mie, Fugui, mae. Ouvindo os gritos de Jiazhen, que chorava, pensei que alguma coisa havia acontecido com meu pai. Corti para fora ¢ vi Jiazhen parada alia bacia cafda e com as roupas espalhadas pelo chao, Jiazhen, a0 ver-me, gritou: —Frugui, seu pai Minha cabeca comegou a zunir e saf em disparada na dire- ‘ao da entrada da aldeia, Quando cheguei 3 latrina, meu pai jd parara de respirar, eu o chamava e sacudia, mas ele nfo tinha rea- ‘cdo. Eu nio sabia 0 que fazer; entio me levantei e olhei ao redor: minha mae chorava c tentava correr, cambaleante, com seus pezinhos enfaixados; e Jiazhen vinha atrés, com Fengxia no colo. Depois da morte de meu pai, parecia que eu havia contraido ‘uma peste: nao tinha mais forgas, passava os dias inteiros sentado no chao em frente ao casebre, uma hora encharcado em légrimas, outra suspirando sem parar. Fengxia se sentava a meu lado, Brin- cando com as minhas maos, ela perguntou —Ovov6 cain? Vendo que eu confirmava com a cabega, ela continuou: —Foi o vento que derrubou cle? 8 Minha mae e Jiazhen nao tinham coragem de chorar em voz alta; temiam que eu nao conseguisse superar a tragédia eacabasse do mesmo jeito que meu velho. As vezes, eu esbarrava sern querer cem alguma coisa e clas se assustavam. Ao ver que cu nao havia caido no chao como meu pai, ficavam aliviadas e diziam: —Tado bem? Naqueles dias, minha mie costumava me dizer: —0 importante, mesmo sendo pobre, éser feliz Elatentava me confortar, pois achava que eu estava incomo- dado com nossa pobreza, mas na verdade cu niio conseguia parar de pensar em meu falecdo pai. Ele havia morrido pelas minhas 10s. Minha mae, iazhen e Fengxia, a0 contrario, viveriam para softer comigo. Dez dias depois da morte de meu pai, meu sogro apareceu; entrou em nossa aldeia caminhando, erguendo a barra da longa ttinica com a mao diteita, o rosto impassivel. Atrés dele havia um palanquim vermelho todo enfeitado com flores e mais de dez jovens enfileirados que tocavam tantis e tambores. Todas as pes- soas da aldeia safram de casa para ver em qual familia se realizaria uum casamento, enquanto comentavam que nunca haviam visto nada assim tio pomposo. Um camponés perguntou a meu sogro: —Quem é que vai se casar? —Alguémdaminha familia —respondeu ele rispidamente. Eu estava diante do ttimulo de meu pai. Quando ouvi o res- soar dos instrumentos, levantei-me para olhar e vi meu sogro caminhando com passos decididos para a porta da frente de meu casebre. Ele fez sinal para os homens que carregavam o palan- quim, ¢ estes pousaram o vefculo no chao. A misica cessou. Naquele momento, percebi que ele viera buscar Jiazhen, Meu coragao disparou, eu ndo sabia o que fazer. Minha mic e Jiazhen, ouvindo o barulho da rua, safram do casebre. Jiazhen exclamou: 39 —Pai! Meu sogro olhou paraa filha e disse para minha 1 E aquele animal? Minha mae, com um sorriso amarelo no rosto, retorquiu: —Vocé quer dizer Fugui? — E quem haveria de ser? — Quando virou 0 rosto, meu sogro deu de cara comigo. Ele deu doispassos na minha diregdioe gritou: — Venha cé, seu animal. Fiquei parado. Como € que teria coragem de me mexer? Meu sogro me chamou com um geste e tomou a gritar: — Venha cf, seu imal. Nao vai pedir minha béngao? Escute aqui, seu animal, estou levandoJiazhen embora da mesma forma como voes foi buscé-la. Olhe, olhe: aqui esté o palanquim ali, 0s msicos. Tado exatamente como no dia em que voce se casou com Jiazhen. Voltando-se para Jiazhen, ele disse: — Va arrumar suas coisas. — Pai! —Jiazhen ficou parada Meu sogro bateu o pé no chao: —Vi, depressal Jiazhen ficou me olhando; eu estava de pé, afastado. Ela se virou ¢entrounno casebre. Minha mie, ié em légrimas, implorou —Pense bem, deixe Jiazhen ficar. Meu sogro fez um sinal com a mao e, virando-se para mim, gritou: — Seu animal, a partir de hoje Jiazhen esté de relagdes cor- tadas com voc®. As relagdes entre a familia Chen e a familia Xu terminam aquil Minha mie se curvou, implorande: — Em consideracio ao pai de Fugui, por favor, deixe Jia- then ficar, 4 ae —Ele matou o pai de desgosto! — vociferou meu sogro para minha mie. Depois de gritar daquele jeito, ele se deu conta de que tinha cexagerado e amenizou o tom: — Nao me acuse de ser cruel; é por causa do comporta- mento desse animal que estamos passando por tudo isso hoje. Meu sogro se vitou novamente para mim e berrou: —Fengxia ficard com os Xu, masa crianga na barriga de Jia- zhen é dos Chen! Minha mae, chorando e secando as lagrimas, disse: — Como € que vou explicar isso para os ancestrais da fami lia Xu? Jiazhen saiu do casebre carregando uma trouxa, Em seguida, meu sogro ordenou: — Suba no palanquim! Jiazhen voltou o olhar para mim e caminhou até ¢ ps quim, Voltou-se ¢ olhou mais uma vez para mim e para minha mac eentrou, Naquele momento, Fengxia saiu correndo, sabe-se 4 de onde, e, vendo a mae subir no palanquim, quis também subir, mas apenas meio corpo entrou; as mios de Jiazhen a empurraram para fora, Meu sogro fez um sinal para os carregadores ¢ o palanquim foi levantado. Jiazhen estava em prantes. — Que os tambores soem com toda a forga! — berrou mew. sogro Mais de dez.jovens comegaram a bater 0s tantis¢ os tambo- res ruidosamente, sobrepondo-se ao choro de Jiahzen. O palan- quim seguiu estrada afora, com meu sogro levantando a barra de sua longa tinica, caminhando répido ao lado. Minha mie, coi- tada, com seus pezinhos enfaixados, tentou seguitlos ¢ acompa- nhou o cortejo até a saida da aldeia, Fengxia se aproximou de mim, abriu bem os olhos e disse: # —Papai, mamae entrou no palanquim, Ojeito alegre de Wengxia me fazia mal. Eu disse-a ela — Fengxia, venha ca A menina se aproximou de mim, Acariciei sew rosto disse — Fengxia, nunca se esquega de que eu sou seu pai. ® vocé também nao se esqueca de que eu sou Fengyia— ela respondeu, rindo, Aochegaraeste pontoda historia, Fuguiolhou paramimedeu uma risadinha, Bsse vadio de quarenta anos atrésestava agora sen- {ado na relva com o peito nu; os raios de sol que penetravam pelas folhasdas érvoresiluminavara seus olhos semicertados. Suas pemas estavam repletasde lama, esparsosfios rancossatam de sua cabega Taspada, do seu peito enrugado lavado em suor. Naquele momento, © velho buifalo estava agachado dentro do agude, e 56 se viam sua cabega e sua longa espinha negra, que recebia os golpes das ondas do agude como se fosse um ancoradouro Aquele velho foi a primeira pessoa com quem topei no inteio da minha vida de andaritho:eu era novo, sem nenhuma preocupa $0, ¢ficava feliz cada novo rosto que encontrava. Qualquernovi dade me atrata profundamente. E num momento assim, eis que Fugui surge na minka frente. Nunca mais ninguém se abriu comigo como ele, com seu relato multicolorido e vivido, Tudo o que eu queria saber, ele me contava sei constrangimento, E esse encontro com Fugui fez com que eu me sentisse mais cheio de experancae de alegria naqueles dias, em minha tarefa de recolher cantigas.Passei a acreditar que aquela tera fertlestaya repletade gente como ele. Nos dias posteriores, realmente encontrei »érios ancidos como Fugui, que também vestiam calgas com o fun- dilho catdo quase até os joelhos. As rugas de seus rostos estavam heias de barro ¢ de sole, quando sorriam, mostravam bocas ban a guelas, com apenas alguns dentes. Freqiientemente, ldgrimas tur- vas escorriam porsuas faces, ndo porque estivessem tristes, pois cho- ravam de felicidade ou até mesmo nos momentos de absoluta sere- nidade. Entdo, erguiam os dedos, tao dsperos quanto o chido, eas secavam, como se espanassem a palha de seus corpo. Contudo, nunca mais encontrei uma pessoa tao inesquectvel quanto Fugui, tao consciente de sua propria experiéncia a pontode fazer um relato brithante como o que ele me fazia. Fugui era da- quele tipo de gente que consegueenxergar aaparéncia que tiveraem outros tempos; ele podia ver seu jeito de caminhar quando jovem e percebia, inclusive, 0 quanto tinha envelhecido. Ei muito diftcil encontrar um yelho desses nas aldeias; em geral, a meméria deles 6 prejudicada pelas dificuldades da vida. E por isso que, ao conside- rar 0s fatos do passado, limitavam-se a sorrirconstrangidos, dando respostas evasivas, Faltava-Dhes paixdo pelo que tinham vivido: falavam de suas recordagdes como se fossem as de outras pessoas, como se fossem um boato ouvido na rua. Lembravamn-se de uns pou. cos acontecimentos ¢ ndo eram capazes de expressar 0 que pensa: vam com mais do que uma ou duas palavras. Nesses momentos, eu ‘ouvia os mais novos zombarem deles: —Toda uma vida passada em vao. Fugui era totalmente diferente: gostava de recordar o passado, de contarsuas historias, como se a cada episédio revivesse sua vida Seu relato me prendia como as garras de um passarinho que se segura no galho de uma drvore. Depois da pattida de Jiazhen, minha mae muitas vezes ficava sentada num canto, secando as légrimas as escondidas. Eu bem que queria encontrar algumas palavras pata conforté-la, mas vendo-a daquele jeito nao conseguia dizer nada. Ela ainda ten- tava me consolar: B — Jiazhen € sua mulher e de mais ninguém, Ninguém poderd tomé-la de voce. Escutando suas palavras, sé me restava suspirar, O que eu po- deria dizer? Uma familia inteirase esfacelara tal como um vaso, em mil pedacos. Quando a noite chegava, eu ficava deitado na cama sem conseguir dormir, um momento odliando este, outro odiando aquele, porém, no final, quem eu mais odiava era eu mesmo. Co- mo eu pensava demais. noite, curante o dia minha cabega dofa e eu estava sempre desanimado. Ainda bem que eu tinha Fengxia: em geral era ela que me puxava pela mao pata depois perguntar: — Papai, uma mesa tem quatro pés, Se voce cortar um, ainda sobram quantos pés? Eundosabia de onde Fengxia haviattradoaquilo, Quandores- pondi que sobravam trés pés, ela soriu de orelha a orelha e disse: — Errou! Ainda sobram cinco pés. Queria rir das brincadeiras de minha filha, mas ndo conse- guia. Eu pensava que antes havia quatro pessoas na casa; com partida de Jiazhen, era como se tivessem cortado um pé da mesa; além do mais, Jiazhen ainda tinha um bebé na barriga. Falei para Fengxia — Espere sua mae voltar, que af vai ter cinco pés Depois que tudo 0 que havia de valor no casebre tinha sido vendido, minha mae comecoua levar Fengxia pela mio para colher vegetais selvagens. Minha mie, com seus pezinhos enfai- xados, carregando a cesta, ndlo aeompanhava os passos de minha filha. Seus cabelos j estavam tolalmente brancos, e, apesar disso, ela ainda tinha de fazer um trabalho fisico que nunca havia feito. ‘Vendo-a sair com Fengxia pela mao, um passo depois do outro, fazendo todo aquele esforgo, quase cheguei as lagrimas. Eu sabia que jamais voltaria a levar aquela vidinha do pas- sado, eu sabia que tinha de sustentar minha mac ¢ Fengxia. Con- versei com minha mae sobre tomar um empréstimo de algum 4 parente da cidade e abrir um armazém. Ao escutar minha idéia, cla nao disse nada. Nao queria sair daqui. Toda pessoa de idade é assim, no gosta de sair de seu Iuger, Eu disse para minha mae: — Agoraa casa ea terra pertencem a Long Er. Ter uma casa nova aqui ou em outro lugar qualquer € a mesma coisa. Ela ficou em siléncio por um longo tempo antes de dizer: —O tiimulo de seu pai ainda esté aqui Essa tinica frase de minha mie acabou com a minha cora- gem de propor alguma idéia nova, Penseie repensei c decid pro- curar Long Ex, Long Er se tomara o proprieiério das terras daquele lugar: trajava roupas de seda, segurava com a mao dircita o bule de cha ¢ ficava caminhando pelas lavoures, muito senhor de si. O largo sortiso que se estampava em seus labios revelava dois grandes dentes de ouro. As vezes, quando ele xingava um arrendatério ‘mais agressivo, também falava com a boca entreaberta, Primeiro achei que ele estava sendo simpatico comas pessoas, mas por fim. percebi que s6 queria mostrar seus dentes de ouro. Quando me encontrava, Long Er costumava ser bastante educado, Sorridente, convidava — Fugui, venha tomar um chi em minha casa. Até entdo euevitara ira casade Long Erdemedodequemeu coragdo se abatesse, pois, quando nasci, meus pés haviam tocado ‘ochao daquela casa e agora ela pertencia a Long Er. Dé para ima- ginar a sensago que eu tive ao pisar ai Nayerdade, quando uma pessoa chega ao pontoa que minha vida chegou, j4 ndo se preocupa muito com essas coisas. Cabe bem aqui aquele velho ditado: quanto mais pobre, menor a ambigio. No dia que fui procurar Long Er, ele estava sentado na ccadeira de brago de meu pai, com aspernas stiradas na banqueta, uma mao segurando o bule de chie a outra, um leque. Quando me viu, Long Ersorriu com a boca bem aberta‘e disse: 6 —Oh, 0 Fugui. Pegue um bancoe sentese. Ele estava recostado e nem se mexeur; eu também nio espe- rava que ele servisse um ché para mim. Depois que me sentei, Long Er disse: — Fugui, vocé veio me pedir dinheiro emprestado, nao? io fiz.que sim nem que nao. Ele continuou: —Moralmente, eu deveria fazer um empréstimo a voce, ‘Como diz. um provérbio, “devemos salvar as pessoas de suas difi- culdades imediatas, em lugar de tiré-las da pobreza”. Do mesmo modo, eu s6 posso salvar vocé de suas necessidades imediatas, no da pobreza, Concorde’ com a cabega e disse: — Eu gostaria de arrendar do senhor alguns mus de terra, —Vocé quer arrendar quantos mus? — perguntou Long Er sorrindo, —Cinco— respond —Cinco mus? Long Er levantow as sobrancelhas e continuou: —Vocé tem satide para lavrar tanta terra ? —Se eu me dedicar, vou conseguir Ele pensou um poucoe respondeu: —Como somos velhos conhecidos, vou artendar para voce cinco mus de boa terra, Realmente Long Er prezava a amizade: ele me arrendou mesmo cinco mus de terra boa e fetil. Quase morti de exaustao, cuidando sozinho de cinco mus de terra, Eu nunca tinha traba- Ihado na lavoura ¢ aprendi imitando os outros — dé para imagi- nar como eu era. Enquanto houvesse luz, eu lidava na terra, € quando anoitecia, se houvesse Iuar, eu continuava trabalhando. plantio tem de acompanhar a estagiio; se vocé perde o tempo certo da semeadura, perde o trabalho da estagdo inteira. Se isso acontecesse, além denao conseguir mantera familia, eu ndiocon- 46 seguiria pagar Long Ex. Como dizo provérbio: passatos lentos pre- cisam comegar a voar antes dos outros; eu, como paissaro inexpe- riente, teria de voar ainda mais tempo. Minha mae ficava com pena de mim e ia para a lavoura me ajudar. Ela ja estava com muita idade e seus pés a atrapalhavam: quando curvava 0 corpo, no conseguia mais se erguer, entio era ‘comum que caisse de bunda na lavoura. Eu disse a ela: —Mae, volte para casa, — Oservigo vai mais répido a quatro mos — ela respondia, fazendo que nao coma cabega. Eu disse: — Caso a senhora se canse e caia doente, af no teremos nem duas maos, porque precisarei cuidar da senhora. Ao ouvir isso, minha mae ia se sentar na maracha, junto a Fengxia, que todos os dias me acompanhava e se acomodava ali. Ela colhia muitasflores, que punha ao redordaspernas,e ficava me perguntando o nome de cada uma. Como eu nao sabia, dizia acla: —Pergunteasua avs, Minha mie, sentada na maracha, gritava ao me ver com a cenxada em punho: —Cuidado para nao cortar o pé! Quando eu usava a foice, ela se preocupava ainda mais e diziaa todo momento: — Frugui, nao v4 cortar a mao. Minha mie ficava ali por perto chamando minha atengao, Era muito servigo, eu tinha de ser répido e por isso me cortava, Se via meus pés ou minhas maos sangrando, minha mae se desespe- ‘ava e corria com dificuldade na minha diregao, Ela apanhava um punhado de lodo, que colocava em cima da ferida e comegava a ‘me repreender — comegava e nao parava mais. Eu nem conse- guia retrucar, porque ela cafa em prantos. "7

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