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José Régio OBRAS COMPLETAS CONFISSAO DUM HOMEM RELIGIOSO VOLUME PosTUMO. ja hen vas paginas fntimas BRASILIA EDITORA Nesta ditvida entre a Morte e 0 Amor, o Nada © Tudo, como na ambiguidade entre a significacéo de morie como fim sem sentido, «nadenada», ¢ a sua significacdo como radiosa abertura para o Tudo, © Amor, Deus, (0 que tornaria quase sinénimos os dois termos de Morte ¢ Amor) estd toda a suprema ambiguidade de Cantico Suspenso: esta, em suma, a grande suspensdo do Cantico. Suponho nao ser dift- cil ver como se torna coerente essa ambiguidade com as minhas intermiténcias entre a Fé ¢ a Des- crenca, ou a minha tentativa de conciliazao no crer -nao crendo. A VOCACAO MISTICA HEGOU 0 momento de perguntar: De todos esses ganhos e perdas — ganhos que nunca parecem seguros, perdas que porventura nunca 0 sao total- mente — que fica de positivo ¢ firme? Sou, ou nao, 9 homem religioso que ouso proclamar-me no pré- prio titulo deste livro? E qual a minha fé?— se alguma fé em mim resiste ao continuo vaivém de razes e contra-razoes, movimentos de adesio e fuga, crencas intervalares ¢ perplexidades e diividas, que tenho vindo seguindo nas paginas que ai deixo. Caber-me-4, em suma, o direito de me considerar um mistico, posto que muito imperfeito como tal? Creio que varios casos havera semelhantes ao meu, revista-se embora cada um de particularidades pré- prias. Igualmente creio, pois, que tais interrogacées © suas respostas podem interessar a varios seres humanos, além de assumir uma reflexio sobre elas um interesse de ordem geral. De um longo e obstinado exame introspectivo — longo porque seguido através dos anos desde que tive consciéncia de mim; obstinado porque sempre nele recaia no obstante os periodos de di-versio — 8 225 acteres_comprovativos isoante penso, de qual- conclui* do pelos seguintes ca ponsavel do mundo e da vida e até intervindo neles. 2 Essencialmente, um sentimento je Companhia nossa; e de Depen- ncia minha. Mais uma vez lembrarei que tudo quanto agora’ disse, ou ja disse, no é verdadeiro sendo admitidos os intervalos nulos ou negativos. Assim continuare® 2 vontade. Se definitivamente chamar Deus aquele Ser, direi que a minha crenca na existéncia de Deus—ou a minha esperanca na existéncia de Deus—se afirmava pelo sentimento profundo, persistente, simultaneamente claro ¢ obscuro, da sua Presenca no mundo e para Ié do mundo. Muito para Id, as vezes: tZo para I4 que essa Presenca se ampliava’ até se perder nos inimagind- veis espacos e tempos que ndo sao espaco nem tempo. Entao, se paradoxalmente continuava eu a sentir, a pressentir, (néio sei que verbo empregue) essa Presenca fugida ‘para a sua Incomunicabilidade (porque havia os tais intervalos em que a auséneia era minha) tao desolado, ansioso, desamparado, angustiado, me achava, ou podia achar-me, que me parecia impossivel suportar sequer mais uns minu- tos deste absurdo que entdo me estava sendo a vida. Todavia os suportava (e até facilmente!) esses minu- ¢ horas, e dias; ¢ até podia deslizar aos meus ias de distracedo, e sentir-me aliviado porque ali- java essa carga de obsessao de Deus. Outras vezes a Presenca divina era tao propria, tio familiar, que, por assim dizer, Deus era um companheiro que caminhava a meu lado e eu tratava tu ef, tu Id. Com Ele conversava ¢ discutia, espontaneamente o fazia comparticipante nos meus pequenos ou grandes 2 julgo poder coneluir ® podereh continuar gostos ¢ desgostos, para Ele apelava nas minhas aflicdes, perante Ele me envergonhava das minhas misérias e baixezas, ou me regozijava dos* meus instantes virtuosos. Que reftigio e descanso, ter assim um Amigo! um amigo exigente ¢ a0 mesmo tempo compreensivo, misericordioso, que sabia tudo quanto se passava dentro de mim’e por isso me perdoava; um omnipotente protector que eu até podia voltar contra os meus inimigos ou em favor dos que me eram caros; a quem podia recorrer até nas minhas dificuldades mais ridiculas, nas minhas preocupacdes mais mesquinhas; a quem, sem ousar sequer palavras mentais, pedia ajuda até para a satisfac dos meus vicios, sabendo que Ele conhecia a minha miséria e me ‘olerava téo monstruoso pedido... Nao devo insistir. Nos capitulos O tabi rinto, Os graus de Deus, Os graus do Eu, falei ja com ‘algum desenvolvimento das minhas miiltiplas posicdes perante Deus. No ansioso desejo de esgotar © inesgotavel, ¢ dar expressio definitiva, cabal, a0 que porventura a no tem, poderia simplesmente repetir-me. O que mais importa aqui salientar aquele sentimento da Presenca dum Ser—do Ser —muito para 14 do mundo e simultaneamente afir- mando-se no mundo. De essa Presenca me vinham, os sentimentos de Companhia ¢ Dependéncia que eu experimentava perante Ela, E depois todos os sentimentos humanos — amor, gratidao, revolta, res- sentimento, ete. — de que jé falei e que possibilitava eterno, Pouco mais ou tenho usado os qualificativos intemporal, inespacial, universal. Implicaria tal pendor uma insensibilidade perante o passageiro, o circunstancial, 0 histérico? 1 pelos 27 Nao posso cré-lo. Muitas poesias fiz de inspiracao cireunstancial, sustentei polémicas por questées de momento, e © meu interesse pelos problemas de ordem social, econémica, politica, até sempre foi aumentando com os anos. Algumas das minhas com- posigdes esto datadas: marcadas pelo tempo quanto aos assuntos, simbolos e formas estilisticas. Através de uma vasta producio literaria, e num autor muito propenso a posicoes ¢ movimentos contraditérios, decerto ha sempre varios aspectos a considerar. Nao obstante, muito persistente se revela nessa minha «vasta producio literdria» a atraccdo pelo intempo- ral, o universal, 0 perdurdvel. Nem na minha moci- dade me seduziram por demais as modas, escolas, correntes,— tudo cujo interesse dura mais ou menos, mas sempre pouco. Cada vez mais vim res gindo contra elas. A minha prépria defesa juvenil do modernismo nao era sendo defesa dum indivi dualismo que 0 modernismo me parecia propiciar. Ora no individualismo da criacao artistica via eu assegurada a sua autenticidade, : de ordem histérica, filolégica, es- tilistica, socioldgica, etc. Mas aquele me parecia ¢ parece o fundamental. A uma espécie de inatacdvel objectividade visava eu préprio como artista, — objectividade que no meu sentir profundo se conci- liava perfeitamente com o inicial individualismo acima referido. Uma das posicdes contemporaneas a que mais profundamente me opunha, conquis- tando assim, muitas vezes, a antipatia dos meus contempordneos, era a valorizacao do actual. Nunca © actual pelo actual me seduziu (nem a novidade pela novidade), e nos «problemas do nosso tempo» que varios sectores pretendiam impor aos artistas via eu sobretudo os problemas de sempre do 228 eu o meu primetro Tivro de , este era alheio a certo gosto que a geracao da revista Orpheu impunha como mais moderno. Inactual durante a mais aguerrida época do neo-realismo, pois até a arte social que eu principiara a fazer pouco interes- sava aos neo-realistas. Inactual, depois, quando as pequenas correntes do concretismo, do formalismo, do experimentalismo, i t0 da juventude,_ DI séncia da obra de arte, como artista naturalmente me interessava pela expressiio. Como homem religioso, todavia, (poderei dizer como ho- mem integral?) sobretudo me interessava 0 que tinha @ dizer. Dos conflitos em mim travados entre © artista e mistico tratei num capitulo anterior. Agora me cumpre salientar que sendo a necessidade de dizer algo uma garantia da autenticidade da obra artistica —até, possivelmente, da qualidade da ex- pressio—o conflito ¢ o problema acima sugeridos me parecem solucionaveis. Bastante gongorizante ou barroca, &s veres, nos meus livros de versos, a minha linguagem foi evolu- cionando no sentido de uma depuracao, uma simpli- ficacio, uma economia ou ascese (arrisquemos 0 termo mistico) que a definiam como classica. Ora sempre 0 classicismo no seu melhor sentido me pareceu fixar-se em caracterfsticas tanto quanto pos- sivel inacessiveis & volubilidade dos tempos. 0 gosto pelo soneto e o epigrama comprovava este gosto pela depuracio ¢ a concentracio. Eo também escrever em prosa ainda me facultava o exercicio ¢ a satisfa- do mesmo gosto, pois o meu estilo de prosador naturalmente se inclinava para ele. A essa progres- siva depuractio da linguagem, que em parte apro- ximo de uma gravidade religiosa, foi a tendéncia 229 gongorizante que mais resistiu. E até o meu sétimo livro de versos—Céntico Suspenso—é talvez 0 mais gongorizante de todos. Porqué? Talvez (¢ aqui aponta um outro aspecto da questo) porque o gon- gorismo ¢ uma espécie de corrupcao do classicismo, Decerto aparece em varios escritores classicizantes. Talvez, ainda, porque essas formas herméticas, com- plicadas, insdlitas, em que o classicismo se degrada, podem, nalguns casos, sugerir melhor que quaisquer outras certas intimidades ou excentricidades da vida mentando. No fenomeno P sempre tenho sido fiel desde que nele me ensaici com A Chaga do Lado, se comprovam duas observa- Ges ja feitas: Uma é que também as coisas tempo- rais me nao deixavam continuamente insenstvel, pois até alguns criticos ou leitores minimizaram esses poemas por «circtnstanciaiss, Outra é que até nesses poemas temporais ou circunstanciais continuava a afirmarse a minha seducdo pelos valores absolutos —o que explica, talvez, a escassa simpatia que Thes dispensaram os 'idedlogos da arte social. Pretende- riam, estes, que a arte social dos poetas se exercesse na adesio ‘As suas ideologias. Mas que pode fazer um poeta mais ou menos mi sonhado e sempre irrealizav > Deus. Sim, em nome da Justica, da Verdade, da Caridade, da Fraternidade, do Bem, compunha eu cs meus poe- mas sociais: as minhas sdtiras. Como. artista, em nome da Beleza e da Forca interior. Ao poema Havia na Cidade que inicia 0 Cantico Suspenso, chamara eu inicialmente A Cidade sem Deus. J4 numa poesia menor de A Chaga do Lado 0 esbocara. Nao era uma pequena posicéo moralizante que o inspirara—os 230 Ieitores do Fado o deveriam ter compreendido, sen- do todo 0 Fado inspirado por uma caridade simul- taneamente humana e religiosa—mas o desgosto profundo da auséncia de Espirito na vida moderna. Afinal, da auséncia de Deus. Sabendo, embora, que 08 idedlogos materialistas (ou até certos no mate- rialistas) me nao poderiam receber nos seus grémios como um dos seus, —sonhara eu que ao menos me pudessem aceitar como colaborador em certas em- presas porventura comuns entre 0 poeta religioso ¢ cles. Mas 0 fanatismo das ideologias ¢ opressivo ¢ obsessivo nos tempos de hoje: Chega a tornar estd- pidos, ou, 0 que nfio é menos grave, propositada- mente! incompreensivos, homens talver. inteligentes fa e qualificavel como expressao artis- portanto deformadora? Sim, decerto. Como quer que seja, expressiva de realidades psiquicas, até psico-fisioldgicas, verdadeiramente minhas. Por isso néo posso deixar de reconhecer a sua originali dade, mesmo quando repitam ou retomem posi¢ées e formas alheias. Falando nio jé da minha arte mas da minha vida, chegaria a dizer’ 0 mesmo. Também na minha vida se verificam as contradicées que apontei na minha lite- ratura, Também, como homem, sou muitas vezes atraido para o convivio humano, para o movimento, para as diversées e as mudancas. Mas desde menino que tenho o gosto da vida monastica e muitas vezes me refugio na solidio. Viagens, ndo consigo fazé-las sendo em pequena area: Agarro-me & casa, A rua, & terra em que vivo; ¢ mudar exige-me um’doloroso esforcol Alids as diversdes, as distracedes, os praze- res me néio duram sendo urn momento, (as veves bem intenso!) deixando-me um gosto amargo se Thes nao 231 posso dar continuidade; isto é: certa forma de pere- nidade. Os prazeres das viagens so naturalmente efémeros: tanto mais melancélicos se me tornariam quanto mais os sentisse eu como prazeres— nao podendo, porém, torné-los continuos e permanentes. Pela profunda intuicao de que s6 na repeticao e con- tinuidade (sem estereotipacdo ou rotina) se penetra a intimidade das coisas como dos seres—e de essa penetracio se extrai o que de menos ilusério pode- mos possuir— muito insatisfeito me deixavam sem- pre 0s contactos fugidios. Poderia multiplicar_os exemplos e as observacées, mas estd dito o essencial, —A nogao de valores absolutos. Com a necessi- dade e 0 gosto do perene se relaciona intimamente a nocao de valores absolutos (ou do absoluto dos valo- res), se & que essencialmente néo sio a mesma coisa. ‘Aligs tive de falar em valores absoluttos no pardgrafo anterior. Decerto sempre soube que entre valores relativos nos movemos nesta vida e neste mundo. E como «bicho da terra», poderia acaso ser-lhes indi- ferente? Apaixonadamente me prendi muitas vezes a eles, Apaixonada e agitadamente... mas efemera- mente. Sempre, a essa apaixonada agitacio, sucedia 0 desgosto € 0 cansaco. Ora este mesmo prdprio sen- timento da relatividade dos nossos valores — senti- mento que estou afirmando e consciencializando — de que deriva senao do sentimento profundo, que mais ou menos pode ser intelectualizado em nocao, dum absoluto do Valor ou dos valores?Mais ama ver me encontrava eu aqui em desacordo com uma tendéncia viva do meu tempo, e s6 de acordo com 08 individuos da minha familia de quaisquer tempos. Decerto € muito viva no nosso tempo a valorizacéo de posicdes, sentidos ou significacdes relativos a esse mesmo tempo. Se em quaisquer épocas & viva essa tendéncia, por certo inclusa na prépria natureza humana, porventura é mais viva—e até imperativa e normativa —na nossa. Por ela era eu mesmo arras- tado como «bicho da terra», quando ilusoriamente vivia como perenes interesses e valores de circuns- 232 tancia e momento; (de momento, mesino quando esse momento fosse a vida inteira). O sentimento de outro Valor ou outros valores subsistia profundo em mim, — s6 obscuro ou como esquecido enquanto na voltava a sua Luz a ofuscar todas as pequeninas luzes momentaneamente queridas. Ousarei dizer (atreverme-ci_a expressar-me nesta linguagem) que esse outro Valor supremo, concentracao e origem de todos os valores, s6 pode ser Deus? E aqui rebentava uma nova fonte de conflitos com a maioria dos meus contemporaneos, pois claro esté que nem nos meus juizos de ordem estética—nem na minha critica literaria — podia ou queria eu fugir & minha posicao fundamental. Quando um livro alcancava grande ‘bom éxito piiblico, ou era vivamente reclamado por certos sectores; quando uma obra do pasado vinha a tona da publicidade e da celebridade ruidosa; quando um artista ou um pensador eram quase subi- tamente aclamacos—a minha posi¢ao perante eles principiava quase sempre por ser de desconfianca on até mal disfarcada hostilidade. As vezes me recu- sava a conhecé-los, 0 que evidentemente é condené- vel do ponto de vista critico. Sabia, ou julgava saber, que a sua aparatosa popularidade nao era devida sendo a valores que mesmo interessantes (interessan- tes mesmo para mim proprio em dados momentos ou circunstancias) nao passavam de secundarios; de fundamentalmente passageiros. E se artista ou 0 pensador me parecia explorarem tal situacio, como Frequentemente sucede hoje e é provavel haja suce- dido em todos os tempos, bem dificil me seria con- ceder-Ihes qualquer estima. Quando, conhecendo-os, melhor, viesse a aderir-lhes,—s6'podia ser por outras razes;, isto &: razdes’ diversas das que os faziam conquistar o entusiasmo das massas, dos, partidos, das maiorias sugestionaveis, das minorias todavia detentoras do pod —0 cardcter fundamental da minha filosofia. Porque tenho de me atrever a falar na «minha filo- sofia», consciente embora do que me falta para po- 233 der considerar-me filésofo. Aqui chamo filosofia a uma certa visio, dotmundoyda vida, do hemeny-—e chamo «visio» a uma intuigéo examinada pela men- te. Quais os dados ou elementos fundamentais dessa ‘visto? Talver res, que sera os seguintes, dos quais derivarao varios caracteres: Primeito— nada podemos saber, se nenhum conhecimento nos no. ver de fora. Segundo— todos os nossos saberes assentam sobre crencas: a crenca ¢ 0 fundamento de toda a nossa sabedoria. Terceiro— toda a nossa sa- bedoria nos pode servir para a* vida terrena (para 0 reulo em que irremediavelmente nos movemos) porém a néo ultrapassa. O Mistério ou a Revelacao —eis a nossa tinica alternativa para la desta nossa zona. Mais uma vez repito que, de certo ponto de vista, nenhuma pretensao tenho @ originalidade (ou novi- dade) nesta minha posicao. Nao curo agora de saber se outros disseram, ou nfo, isto mesmo ou coisas semelhantes por certo muitissimo melhor, exprimit dose aforisticamente ou elaborando sistemas, arqui- tecturas intelectuais, doutrinas coerentes, a que, pre- cisamente, se chamou filosofias. Coerentemente des curo agora de averiguar se estas ou ideias semelhan- tes foram, ou, nao, inteligentemente discutidas ou rebatidas. Dizendo.

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