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MArcio GoLpMAN © 2006 Marcio Goldman. Produgao editorial Debora Fleck. Isadora Travassos Jorge Viveiros de Castro Marilia Garcia Valeska de Aguirre Copidesque Marcia Rinaldi de Mattos Maria Eduarda Costa Tratamento das fotos Simone Rodrigues Capa Claudia Lopes Mendes (sobre fotografia de IIhéus, em torno de 1930, fotografada do Alto da Conquista ~ autor ignorado) CIP-BRASIL. CATALOGAGAO-NA-FONTE, SINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, BJ. G572¢ Goldman, Marcio ‘Como funciona a democracia : uma teoria etnografica da politica / Marcio Goldman. - Rio de Janeiro : 7Letras, 2006 368p. : il. 5 Aptndices Inclui bibliografia ISBN 85-7577-318-6 1. Etnologia - IIhéus (BA). 2. Ilhéus (BA)- Politica ¢ governo. 3. Ihéus (BA)- Usos e costumes. 4. Negros - Ilhéus (BA). I. Titulo. 06-3451. CDD 306.098142 CDU 39(813.82) 2006 PROLOGO Os Tampores Dos Mortos £ OS TAMBORES DOS Vivos Sabado a noite, 31 de outubro de 1998, em Ihéus, sul da Bahia, cu acom- panhava um ensaio do Dilazenze, o bloco afto em que concentrara minha pesquisa sobre as relacdes entre o movimento negro local ea vida polftica na cidade. Dona Ilza Rodrigues, a mae-de-santo' do Ewd Tombency Neto, 0 ter- reiro de candomblé ligado ao bloco, chamou-me de lado ¢, explicando que tinha que realizar o despacho dos assentamentos de uma filha-de-santo que morrera recentemente enquanto ela estava em Sao Paulo, perguntou-me se eu poderia ajudar, transportando em meu carro os objetos rituais da falecida para serem jogados em um rio, ou seja, o despacho. Respondi que, evidente- mente, ajudaria, e ela acrescentou que era preciso resolver tudo rapidamente uma vez que Finados estava préximo e nao era conveniente que o ritual fosse realizado apés o dia dos mortos. Combinamos que, no momento adequado, ela mandaria me chamar, e lembramos, juntos, que em 1983, quando reali- zara uma pesquisa no terreiro, eu também ajudara a transportar um despa- cho. Marinho Rodrigues, um dos filhos carnais da mae-de-santo, og do ter- reiro,” um de meus grandes amigos e meu melhor informante em IIhéus, contou-me, entio, que a filha-de-santo recém-falecida era de Xangé e havia declarado explicitamente que, quando de sua morte, nao desejava que o ritu- al completo fosse realizado; ¢ era por isso, disse ele, que s6 haveria 0 despa- cho dos assentamentos. Ante minha surpresa, explicou-me que alguns fi¢is do candomblé fazem esse pedido, que tem que ser respeitado, uma vez que nao se deve invocar um espirito que nao o deseja ser. Conversdévamos ainda sobre os rituais funerdrios do candomblé quando, por volta das sete e meia, fui chamado para estacionar 0 carro diante do portéo do terreiro. Eu o fiz, abri o porta-malas do carro e, logo, Gilmar ¢ Ney (ogis, também filhos car- nais da mae-de-santo ¢ meus amigos) trouxeram uma grande ¢ pesada caixa que depositaram no compartimento. Entramos no carro com duas filhas-de- santo que no reconheci naquele momento. Partimos e os ogés informaram a direcéo a seguir; falamos pouco € as duas filhas-de-santo, nada. Chegamos ao local desejado, uma ponte em uma estrada meio abandonada no antigo caminho para Itabuna, Paramos, desce- mos, abrimos 0 porta-malas, os ogas pegaram a caixa e dirigiram-se, com as ap oueqen opuozey oursaur PIs gO0A,, :NOATISqO BUTT Sz[0Ig EIEE] Seay -9mnd stop & orpostda o roreyar wipqurer ‘ured eyUTU aq] * zIsaiwoje aadamee osst,, aonb opueruaosaise oun o ‘onbo1 o oprano 391 wpquie: urereytiesses JeurTs ovwenb Aon oruey, “pena o opezrpeor wrerAvy anb sogun snas wOd 2a -Isnput ‘seossad sestaatp too erToIsTY @ ereyUsUTOD OYUTTePY onb t1qoosop ‘02 -aa2 OF wees as anb seyp soN ‘sorusWIeIGopsep snes adai ‘odures ap ou ~Iopeo Nau ap oysen wm ap sazed & openpe ausureMasIy ‘orposida ossqy ‘opunur aisap urere ogu a1uauusajduns estano na anb sazoqures so anb ‘ogsua ‘iqaoreg ‘orunsse op Nopnu 9 o1PIUsWIOD UMNYUaU Zaj OBU af StuareIqop sanbeqeie evATANO WPq -urey na anb oyuuepy & assrp 2 ordoxze ano] umn TUDg “oof Wa EpuaZazo B NO ousydso 0 zed ura raqaoar oputisce o¥is9 sourour so anb voyrudis siod “eus wog uN 9 wWoze201 sanbeqrie so ap oy o anb pf ‘saquoios ormu weIeDTy anb ‘seyjaa sreur seossod semno ¥ 2 seur ens ¥ OprI100 © nosreu ‘os1I03 OF ¥][0A aq] ‘ou aonb ureJopuodse: sopoi enb ov “ey 10d g[quropuv> ap omer winSje eIAey as srewrap soe oZIUe opueIuNSied < wareigop sonbeqete so sano ¥, NoSautoo ‘assip ‘1uadar aq] TeIOA ap EAEqeoe Na apuo ap IeSny oursatt ov aquaurerexs oysedsap tm eeAg] 29 ‘(OMa121 Op Olues-op-sEUT EsoUNRY 2 eT -uv) 9Av Ens op 110 F SOATIETAI SoU [7 SO OFSEIIGO BU *}G66] We anb aut Nowod dF “p]qwopuro op soresauNy srenyiy soe soureusojer O80] jenb vu “OYUTIeIAL Wd vst2AUOD v JoUOII ‘operIO.UD a1UDWIOIUeIede OJUNSSy ‘JpAguIOIe Op IO1T -o1UI 08 ‘SEI[e Napuarsa as onb ‘ovSvoytnd ap penis oprdys umn vaed vaviedsa sou wangje ‘epexus ap or1od ou ‘epuo ostesie1 o eed sourerjo,, ‘opeSury ery oypedsap o anb ura o1uod oped souressed ogu ap wy v sourexprA apuo sod oyurures ojad seuroias opuena ‘soumed 2 oxo ou sourenug ‘aluey] -suas o8[e no oe oD0]q ap oresu und }e ‘s}odop ‘9[quiopues op sonbequie wares ‘orrowmd ‘auieurt soxssnoxod ap sormsumnsut sun8pe ap epneq ev 8 UO] OF “aINDsa OUAUOUT O1"XE assaN| ‘asURI. 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Sur- preso com minha amnésia, concordei plenamente com ela quando concluiu dizendo que tanto eu quanto as pessoas do terreiro escutéramos os tambores pelas mesmas raz6es (Lima 1998). Além disso, a tomada de consciéncia dessa estranha amnésia me obri- gou a reconsiderar algo que experimentara cerca de trés semanas antes dos tambores, ao reencontrar Dona Ilza apés mais de dois anos sem vé-la. Eu fora busc4-la na estagao rodovidria onde chegava de uma viagem a Sao Paulo; ao entrar de carro na rua em que se situam tanto 0 terreiro quanto sua residén- cia, senti vertigens que desapareceram assim que sai do local, apés deixd-la em casa. Retornei ao local mais duas vezes na mesma noite, e, a cada vez que entrava na rua, as vertigens voltavam; ao sait, desapareciam. E claro que ima- ginei causas misticas, mas ndo levei o episédio muito a sério. Peter Gow —a quem eu escrevera relatando a histéria e dizendo que ela me surpreendera principalmente porque eu jamais havia experimentado ne- nhuma inclinagdo m{stica — respondeu que nfo acreditava ser este 0 ponto pertinente, e relatou uma experiéncia semelhante que tivera no campo—entre os pito, da Amazénia peruana —, oferecendo ao mesmo tempo uma explica- cfo fenomenoldgica ¢ quase gestaltista para o que ocorrera conosco: “Qual é explicago? Por um lado, creio que Tania esteja certa. Isso é realmen- te fazer trabalho de campo: essas experiéncias emanam de outras pessoas. Mas hé mais. Acho que é significativo que tenha sido mtisica o que ouvimos nos dois casos. E possivel que, em estados de alta sensibilizacdo, padrdes comple- xos, mas regulares, de sons do mundo, como rios correndo ou uma noite tro- pical, possam evocar formas musicais que nao temos consciéncia de termos considerado esteticamente problematicas. Na medida em que estamos apren- dendo esses estilos musicais sem o saber, nés, sob determinadas circunstancias, 08 projetamos de volta no mundo. Assim, vocé ouviu tambores de candom- blé, ett, miisica de flauta. Penso que um processo semelhante ocorre com as pessoas que estudamos. Porque eles obviamente também ouvem essas coisas. Mas eles simplesmente aceicam que esse € um aspecto do mundo, e no se pre- ocupam com isso. Todavia, continua sendo impressionante e 0 mistério nao € resolvido por essa explicagio. O que imagino ¢ que devemos repensar radical- mente todo o problema da crenga, ou ao menos deixar de dizer preguigosa- ‘os beltranos: mente que‘os fulanos oréem que os mortos tocam tambores’ ou qu tam’: é verda- acteditam que os espititos do rio tocam flautas’. Eles nao ‘acredi de! um saber sobre o mundo” (Gow 1998). De toda forma, mais, ou menos, do que uma explicagao, fiquei imagi- ndo durante muito tempo o que fazer com essa histdria, como nao reduzi- uma dessas recorrentes anedotas acerca de experiéncias mfsticas vividas por antropélogos no campo, cujo caso paradigmatico, como se sabe, é0 de ans-Pritchard (1937: 34) vendo a bruxaria entre os Azande— 0 que, alias, filo o impediu de escrever que “bruxas, como os Azande as concebem, nao podem existir” (Evans-Pritchard 1937: 56). Este livro, alids, j4 se encontrava praticamente pronto quando Eduardo iros de Castro, a quem agradego, revelou-me a existéncia de uma coleta- nea dle textos a respeito desse tipo de experiéncia (Young Goulet 1994). Ainda que nao se trate aqui de entrar nas discussdes propostas pelos organizadores da coleanca, duas observagbes talvez sejam interessantes. Primeiro, € curioso que fodas as experiéncias descritas no livro sejam visuais ou oniricas, enquan- to a minha e a de Peter Gow tenham sido auditivas. Segundo, enquanto 0 vro se concentra em “transformagées” provocadas, sobretudo, nas crengas tpirituais dos etndgrafos pelas “experiéncias extraordindrias” por eles vividas campo, preferi acentuar os efeitos que um devir-nativo pode gerar nas petiéncias mais ordindrias do antropdlogo, como a politica, por exemplo. De toda forma, no meu caso, trataya-se de tentar conferir ao episddio tambores um grau de dignidade que o colocasse em relacdo com meu tra- 0, Ora, isso exigia, em primeiro lugar, afastar de antemao as duas expli- ices mais faceis, que, ambas realistasa seu modo, logo interromperiam qual- er trabalho de reflexao mais s¢rio: a mistica, que afirmaria que os tambores cram mesmo de mortos; ea materialista, que diria que, se escutei algo, foram tambores de vivos. Na verdade, saber se os tambores que ouvi eram tocados los mortos (ou por alguma banda afro, ogas de um terreiro, ou se eram ain- nefeito do vento ou outra coisa qualquer), ou mesmo o fato de acreditar ou ‘6 que o cram, nfo tem muita importancia. O que importa é que, queren- ‘unio, levei a hist6ria a sério e, bem mais do que isso, fui por ela afetado ‘no sentido que Jeanne Favret-Saada (1990: 7) confere 2 expressao. Nao im- ndo as razdes que me levaram a ouvir os tambores (talvez até mesmo gto das tradicionais histérias de experiéncias misticas de antropdlo- po), 0 fato é que o evento me atingiu em cheio, e se nado da mes- » atingi meus amigos, ao menos coma mesma intensicla- de. Ainda nos termos de Favret-Saada (idem: 9), a forca do acontecimento permitiu, sem dtivida, que se estabelecesse entre nds certa forma de comunica- Gao, nao-verbal, “involuntdria e nao intencional”, condigao, talvez, para que outros canais de comunicagao mais discursivos e conscientes também se abrissem. P Além disso, conferir dignidade & histéria dos tambores dos mortos sig- nificava também ser capaz de perceber sua relagao com aquilo que eu suj fe tamente estava fazendo em Ilhéus— uma pesquisa sobre politica —, 0 geal fante muito tempo nao fui capaz de fazer. O curioso é que essa percepgao sé veio & minha mente trés anos apés 0 episddio, e ainda assim sob a estranha forma de um sonho em que revivi muito realisticamente algo que efetivamente ‘iontecera comigo em IIhéus apenas trés dias antes dos tambores, em uma ite em tudo semelhante aquela em que transcorrera esse evento A confirmagaio de que o sonho reproduzia literalmente 0 que ocorrera IIhéus veio da leitura de meu: caderno de campo, A qual procedi assim que ordei, Mas esta me revelou também que, menos de um més antes do je do candomblé angola.* Ele explicara-me, entao, que, em parte, tratava- uma luta entre os vivos ¢ os espiritos dos mortos convidados pelo re- EP explicara, também, que nao deve haver manifestacio de tristeza, jpalmente sob forma de choro, pois isso seria muito perigoso. Todas essas ido isso, como observara Tania Stolze Lima, que cu havia simplesmente ido’. Marinho concluiu sua histéria, entio, dizendo que felizmente 08 mortos, mesmo no dia em que sua mae avisara que os espiritos 6 © avd maternos estavam presentes, acenando para ele, durante um izado hd tempos em outro terreiro. episddio fielmente revivido em meu sonho, cu conversava com 0 politico da sesso local do Partido dos Trabalhadores (PT) quando gum comentario sobre uma distante batucada que escutdvamos. O po- ‘respondeu algo como “eles esto fazendo batucada para nao fazer nada” ignificava, segundo uma velha formula que eu tio bem conhecia, ais ligadad falta de consciéneia politica e funcionaya como um. mn termos de concepgao de politica e de op¢Ses ideoldgicas quanto o poltti- petista sugerir que, em certo sentido, os tambores que ouviamos eram de apenas semivivos (j4 que alienados), estabeleceu inadvertidamente uma unte entre os tambores dos mortos e os tambores dos vivos, ponte que pas- ao ler uma primeira versio do relato des- iva justamente pela politica. Alids, jepisddio (Goldman 2001a), Peter Gow observou que eu era excessivamente ruel com o politico petista ¢ que isso provavelmente se devia ao fato de ele 1, para mim, uma espécie de “sombra” no sentido junguiano do termo, ou ja, manifestar com clareza uma série de atributos pessoais meus dos quais {1 no gostaria muito € que tentaria reprimir. Creio que Gow tem razao € cento que no quadro politico ilheense esse polftico ocupava, do meu to de vista, uma posi¢ao respeitavel. Na verdade, quando ouvi os tambores dos mortos, eu ja havia passado juase dois meses no campo, além de outros dois em 1996 ede trés no jé lon- tuo ano de 1983, quando pesquisava 0 candomblé — 0 que jé me havia sinado a admirar muito os tambores dos vivos. Pois as principais ativida- de um bloco afro sio evidentemente as musicais, ¢ a convivéncia quase diana com elas me fizera descobrir ¢ admirar a miisica afro-baiana. Nao a emusic, variacdo musicalmente empobrecida, politicamente esterilizada € cistencialmente sacrificada as exigéncias da midia,? mas aquela feita pelo Ilé 0, pelo Olodum, pelo Muzenza ¢ por outros blocos afro de Salvador, as- como pelo Dilazenze, pelo Miny Kongo, pelo Rastafiry ¢ pelos outros blocos de Ihéus. Essa convivéncia me ensinara também que fazer musica afto nfio era simplesmente uma forma de nao fazer nada; ao contrario, essa ath de é uma das dimensées essenciais dos processos de criagao de territérios sistenciais que permitem a pessoas discriminadas produzir sua prdpria dig- ade ¢ vontade de viver. Deve-se observar, igualmente, que o fato de a afecgao provocada pelos bores parecer ‘positiva’ (no sentido de que é sempre charmoso um antro- pologo capaz de experimentar coisas misticas) no significa, de forma algu- ‘na, uma identificagao gloriosa com os nativos, o que ia de encontro a toda sninha argumentagao. A reagao de meus amigos de Ihéus, vaiando e gritan- lo coisas extremamente desagradaveis para dois travestis que passavam na rua m que moram, néo teve nada de charmosa. Da mesma forma, minha reagao melo perante dois desconhecidos que, na verdade, eram conhecidos dos situagGes terem sido alyo nais tanto nos meus amigos — divididos entre a indignagao ea pilhéria contra O08 thavestis; entre o divertimento e o estranhamento para comigo — quanto em mim — totalmente imobilizado entre a indignagio ¢ os lagos de amizade que me unem a meus amigos, e entre o medo de ser assaltado e a vergonha de parecer preconceituoso — pode ter sido tao importante para o estabelecimen- to de uma comunicagao duradoura, profunda e involuntéria quanto a histé- ria dos tambores. Os tambores dos vivos e os tambores dos mortos fazem parte da mesma experiéncia global, e foi certamente o fato de eu ter sido aferado pelos pri- meiros que abriu a possibilidade de ouvir os segundos. Em outro sentido, con- tudo, foi talvez necessério ter escutado os tambores dos mortos para ae os dos vivos passassem a soar de outra forma, ja que, nesse momento, vivi uma Beperiencia que, sem ser necessariamente idéntica 4 de meus amigos em Ilhéus, tinha com ela ao menos um ponto de contato fundamental: o fato de ser foul e de nao separar os diferentes territérios existenciais que habitamos. Como ine escreveu Peter Gow, era mesmo a nocdo de crenga que deveria ser posta questo, na medida em que é uma das grandes responséveis pelas falsas Bes que buscam sepatat a ‘tealidade’ daquilo que em geral se denomi- imagindrio’ e que, na verdade, deveria simplesmente ser chamado de ‘real’, fia medida em que a realidade é sempre 0 efeito de um ato de criagdo. E nao eixa de ser curioso observar, de passagem, que Lévy-Bruhl, autor com quem ibalhei entre minha pesquisa sobre o candombleé e aquela acerca da polfti- ne um critico radical da nogao de crenga, propondo sua substituigao pelo meeito de experiéncia. Na verdade, é a prépria distingao que nao possui ince universal, uma vez, que depende de uma “definigio da experiéncia ‘oniteste entre nds apds um longo trabalho secular de critica que desquali- Wu © excluit da experiéncia vélida as experiéncias misticas” (Lévy-Bruhl 1049; 161-162). Além disso, se as principais atividades de um bloco afro ‘icais, isso nao significa, é claro, que sejam as unicas. Os blocos costu- se envolver com a politica, seja fazendo apresentagdes em campanhas pliticos, apoiando explicitamente algumas candidaturas ou recebendo bens jessas em toca de yotos e apoio eleitoral. E claro que, como adverte (2002; 108), nio se trata de imaginar que os blocos simplesmente isiew para fazer polftica, ou seja, para obter algumas vantagens Pimbora isso evidentemente ocorra, também ¢ verdadeiro que “es atividades musicais (e outras) dos blocos. Mais do que isso, entretanto, trata- se, acima de tudo, de evitar o que Paul Veyne (1996: 241) denunciou como © absurdo pressuposto do “monolitismo monoideista” dos homens, sua inveross(mil “monomania”:’ como se cada grupo social, ou cada época histé- ~ rica, pudesse se encontrar obcecado por uma questao ‘central’ — bruxaria, gado, vinganga, parentesco, relagées pessoais, honra, igualdade, dinheiro, religido, ou seja ld 0 que for. Porque, por um lado, como também escreveu Veyne (1995: 15), “o homem é um ser que tem a estranha capacidade de se apaixonar por €0! poldgica cuja descoberta ele atribui a Simmel, que a denominaria “relagio “objetal”). Por outro lado, porque “a religido, a politica ou a poesia podem bem tas coisas mais importantes deste mundo ou do outro sem que por isso deixem de ocupar, na pratica, um lugar estreito” (Veyne 1983: 97). Nao obstante, é evidente que existe uma articulac4o empirica entre tam- ores ¢ politicas sé que parece mais facil levar a sério discursos outros sobre a pido ou a musica do que sobre a politica, assim como parece mais facil ser ativista entre os Azande do que entre nés. Afinal, como observou Michael wzfeld (2001: 118), “evolutionist visions of politics die hard’, c, de fato, nao ade ser impressionante o poder de resisténcia do evolucionismo no cam- dla polftica — justamente onde o estudo etnografico das “intimidades da a cotidiana” parece mais se impor, j4 que os politicos “tém muito a escon- et” (idem: 125). Apresentemos, ent4o, a questao crucial: no mesmo sentido em que bus- umos levar a sério as musicas € religides que estudamos, seremos efetivamente s de levar a sério 0 que os membros dos blocos, terreiros ou outras for- de associagao tém a dizer sobre os politicos ¢ sobre a politica? Essa é, no s que nao dizem respeito em nada a seus interesses” (propriedade antro- tambores ¢, principalmente, utiliz-la na diregao do que poderia ser na abordagem yerdadeiramente antropolégica da polftica — tenha voltado ha mente em um sonho, quando este livro jé estava sendo concebido. por um lado, poderia servir para colocar em seu devido lugar a hipstese, 1 moda, de uma distancia quase infranquedvel entre a experiéncia do campo ca escrita etnogréfica, Essa hipstese, derivada de uma con= cep¢ao timida e positivista da escrita, oculta o que qualquer escritor sabe; 0 ato de escrever modifica aquele que escreve. Na antropologia, a leit hotas e dos cadernos de campo, a imersio no material coletado e, print mente, a prépria escrita etnogréfica revivem o trabalho de campo, fazem € que sejamos afetados de novo. Por outro lado, 0 efeito do sonho no meu trabalho revela também q ao ser revivida no momento da escrita etnogréfica, a desterritorializa frida no campo pode encontrar um novo solo onde se reterritorializar, solo é representado em primeiro lugar, claro, pela propria etnografia, 1m também pode fazer parte da vida do etnégrafo, pois se o fato de eu ter ov © mesmo nfo pode ser dito daquelas que me ligam a politica: por mil qite seja dificil admitir plenamente, estou certo de que, depois de Ilhé de-santo ou pai-de-santo so os termos mais utilizados, no Brasil, para designar a pi rlotisa ow sacerdote de um terreiro de candomblé, Trara-se de uma tradu (05 iorubé ialorixd e babalorix. No Tombency, Dona Iza é também chi ti dle Inkice ou Maméto Inkiceana, termos de origem aparentemente banto mio significado dos anteriores. Congruentemente, uma iniciada ou iniclado no ¢ e designar tanto o ocupante de algumas posigoes rituais masculinas (1 erificadorete,) como um titulo maisou menos honorifico concedido. lini 0 terreiro, F uma posigao masculina ¢ aquele que a ocupa nao pode ser p », A posigio ferminina aproximadamente equivalente é a de equede, quest ece ser utilizada como titulo honorifico, seandomblé no Brasil coscumam classifica os terrelros em trés gran ‘grinde numeros de nagées menores) oriundas, em tese, das fundidores, Assim, a nagio ketu seria origindria dos ioruba » Hos fon do Benin, ¢ a angola dos banto de Angola e do jie se classificarn em nagdes distintas (e i 5 Bm 1995, Marinho Rodrigues compés uma miisica chamada Mamie Africa. Parte da letra dizia: “Olha eu aqui aqui de novo reivindicando nossos direitos vai Dilazenze vai cu falei que vai, que vai vai Exzer protestos contra o apartheid Nelson Mandela negro irmio e nfio apartheid nao Nao apartheid nio i¢ mame Africa”, No final do ano, um cantor amigo ofereceu-se para ajudar a gravar a miisica em CD demo em um esttidio de Salvador, No momento da gravacdo, com 0 argumento de que 0 original "seria pouco comercial, ele mostrou uma nova versio, com outro titulo (Vai Dilazenze) e outra letra: “Olha cu aqui aqui de novo pra te abracar, te beijar te amar do meu gosto e vai Dilazenze vai eu falei que vai, que vai vai Fazer amor é bom mas nao 4 toa eu tivea sorte de poder te encontrar numa boa E nfo me deixe na mio coragio, coragao nfo se engana nao”. ©“Dizemos que eles ‘créem’ que o mundo mitico foi real, e que o ¢ sempre [...]. De fato, em todos os casos desse género, eles nao t@m consciéncia de ‘cre’, mas de sentir, de experimentar - tealidadedo objeto, nao menos do que quando se trata dos serese acontecimentos do mundo “que os rodeia” (Lévy-Bruhl 1938:127-128). Ou, como escreveu, em linguagem bem mais contemporanea, Paul Veyne (1983:103-104): “O que quer dizer imagindrio? O imaginario ¢ a realidade dos outros, da mesma forma que, conforme uma expresséo de Raymond Aron, as ideologias sio as idéias dos outros [...], um jul- gamento dogmitico sobre certas crengas de outrem”. Os homens nio sio monomaniacos, tém varios interesses, varias idéias ao mesmo tempo, “jyramente sio capturados por um Gnico grande sentimento; assim, a vida é muito cotidiana. ‘Os homens conciliam seus centros de interesse fazendo com que se sucedam uns aos outros” (Veyne 1976:96), INTRODUGAO i ANTROPOLOGIA DA POLfTICA E TEORIA ETNOGRAFICA DA DEMOCRACIA Este livro demorou demais para ser escrito e resulta de uma inves! (que, da mesma forma, talvez tenha durado mais tempo do que deveria. hizGes para esse atraso, ao menos em parte, estao relacionadas a caracteristl s compartilhadas com muitas pesquisas antropolégicas desenvolvid as Ti Hiasil: ritmo descontinuo do trabalho de campo e visitas relativamente Cur distribuidas ao longo de um amplo perfodo de tempo. Estive em Ilhétt 1a primeira vez, em 1982; retornei, por tés meses, no verao de 1983, qui sei a pesquisa de campo no terreito Ewd Tombency Neto, que for ute do material usado em minha dissertagao de Mestrado sobrea pi cindomblé (Goldman 1984). Nunca perdi 0 contato com as pessoas ito ou com a cidade, mas foi apenas em 1996 que voltei ao campo pi mente dito, passando quase dois meses em Ilhéus por ocasiado das el municipais daquele ano. Depois disso, estive lé cerca de cinco meses ent }e 1999, antes e depois das eleigdes nacionais; trés meses, entre sel edezembro de 2000, por ocasiao de novas eleices municipais; um Mi mbro de 2001; um més, entre fevereiro e margo de 2002; duas sen im 2003; ¢ duas semanas em 2004. Se soméssemos tudo, mesmo ab perfodo mais antigo de 1983, obterfamos praticamente um ang 1 de campo — dividido, porém, em nada menos que cinco perf unido a essa intermiténcia, um pequeno acidente sofitd ono cat ro de 2000 — que me deixou quase imobilizado por cere m que eu propusesse a Marinho Rodrigues tornarse meu atoll juilsas, oferta que ele accitou com alegria ¢ desempe téneia, Por diversas razbes, essa situagio perdura a o quase ininterruptamente informagoes d r mis ou, principalmente, de longas gravagée tas que, dadas as adminiveis habilidades eal a eee dtd ulin qualidad ainda que para alguns perfodos essas informag6es sejam relativamente super- ficiais. Nesse sentido, trata-se mesmo, de uma “et ografia em movimento”, ¢ de um “envolvimento cumulativo e de longo prazo” com o grupo estudado, no sentido que Ramos (1990: 459) confere a essas expresses,’ Mas € claro, também, que concordo plenamente com Eduardo Viveiros de Castro (1999: 183-186) quando afirma que esse estilo de trabalho de campo nao se opée ao “tipo tradicional de etnografia 4 Malinowski” nem o dispensa, e que a idéia do campo prolongado nao tem nada de mistica ou de meramente ideal. Em um registro menos académico, sempre imaginei que as técnicas de trabalho de campo que, sem muito ou mesmo nenhum planejamento, aca- bei por utilizar em Ilhéus assemelhavam-se muito ao que se denomina, no candomblé, ‘catar folha’: alguém que deseja aprender os meandros do culto deve logo perder as esperangas de receber ensinamentos prontos e acabados de algum mestre; ao contrario, deve ir reunindo (‘catando’) pacientemente, ao longo dos anos, os detalhes que recolhe aqui ali (as folhas) com a espe- ranga de que, em algum momento, um esbogo plausivel de sintese serd pro- duzido. Assim, foi apenas em 2000 que realizei minha primeira entrevista gravada, 4 qual no se seguiram muitas outras. Da mesma forma, jamais to- mei notas na frente dos meus ‘informantes’. Por um lado, porque ninguém era apenas informante, termo infame que a antropologia compartilha com a policia: tratava-se, muitas vezes, de amigos (com os quais eu ndo me sentia & vontade de agit como ‘pesquisador) e, sempre, de interlocutores, no sentid mais abrangente, ou seja, pessoas com as quais cu dialogava, concordava € discordava, expunha e escutava pontos de vista. Por outro lado, creio que o trabalho de campo antropolégico nao tem mesmo muita relagdo com as en- trevistas, ainda que estas possam servir como complemento das informagées obtidas por outras vias — mas sempre no final da pesquisa, quando o etnégrafo j4 possui um certo controle sobre os dados eas relacdes com os informantes.? Essas outras vias sempre foram uma convivencia intensa e quase cotidiana com membros do movimento negro de Ihéus. Entretanto, dado o carter segmen- tar deste movimento, foi preciso e inevitdvel que essa convivéncia fosse dife- renciada, Adianto desde logo, pois, que os pontos de vista sobre politica que este livro tenta recuperat, ¢ com os quais pretende dialogar, nao dizem res- peito a nenhum nativo genérico, nem negro, nem de classe popular, nem ilhcense, nem baiano, nem brasileiro, nem uma mistura de tudo isso. Trata~ se de pessoas muito concretas, cada uma dotada de suas particularidades e, sobretudo, agéncia e criatividade.? Advirto, igualmente, que isso nao tem nada a ver com nenhum tipo d teyelagao pés-moderna: como lembrou ha tempos José Guilherme Magnan (1986; 129-130), desde 1916, Malinowski nao apenas ctiticava o insustenti ‘vel pressuposto de existéncia de uma “opiniao nativa”,* como revelava que | ‘justamente a diversidade de opinides que permite ao etndgrafo reconstituit 0 {ue denominaya “fatos invisfveis” (Malinowski 1935, vol. 1: 317). A nogio le representacao € de fato problematica (Magnani 1986: 127-128) eo tho de campo ¢ sobretudo uma atividade construtiva tiva, pois tthogréficos “nao existem” e é preciso um “método paraa descobe iivisiveis por meio da inferéncia construtiva” (Malinowski 1935, vol. lease sentido, se a histéria se escreve, como quer Paul Veyne (1978: cap. ir “retrodic¢ao” —ou seja, por meio do preenchimento a posteriori das lael is de informaco possibilitado por novas descobertas e por comparagio grafia malinowskiana seria, antes, da ordem de uma espécie de ‘enth 0; o etndégrafo deve articular os diferentes discursos e préticas parciill duplo sentido da palavra, parcelares ¢ interessadas) que observa, sem Jil iis atingir nenhum tipo de totalizacio ou ‘Tudo se pa A pouco como na histéria relatada em alguma parte por Malinowski, I! sbriand, diferentes férmulas magicas familiares trobriandesas sdo proprit le de distintas familias, ¢ cada uma possui um numero limitado desta nuilas. Acontece que, por dever do oficio, o antropélogo deve coletat 1 Hiimero possivel destas, o que, nesse ca fez d lalinowski o malt prietirio individual de formulas mégicas das ilhas. Isso nao signifi file coisa, claro, uma vez que o importante é ter uma formula que outt nham, 0 que, evidentemente, nao podia acontecer com o antropali De toda forma, é sempre assim que as coisas se dio no campo: no daquele dos nativos, nao por ser mais objetivo, totalizantet ‘mas simpl te porque decidimos a priori conferir a toda escutamos om dr iP entredicgio’, contudo, nao significa que, no campo, possan 19 que devamos tentar, estabelecer o mesmo tipo de telagito cor difery 6 yeremos, 0 movimento negro de Ihéus ¢ mateado pe la ladle, © mesmo parece ocorrer com as relagbes que ful eapay de construl us militantes, No efrculo mais restrito estariam Marinhi untana.’ Ein seguida, distribuides por efreulos da Conquista; militantes negros do movimento afto-cultural; militantes ne- gros da faccao “politica” ¢ alguns politicos profissionais, negros ou nfo; ou- tros politicos ¢ habitantes de Ihéus. Com algumas dessas pessoas, minhas relagées foram — algumas ainda sao — muito intensas; com outras, menos; e, em alguns casos, reduziram-se a pouquissimos encontros, alguns superficiais. De toda forma, o estatuto a que a pesquisa que deu origem a este livro sempre aspirou foi o de uma investigagao a7 i i © que significa, creio, que sua pretensao principal é de fato a busca de ‘ponto de vista nativo’. Esta questo, como se sabe, vem sendo, nos tiltimos anos, objeto de uma controvérsia tao grande que exige que nela nos detenha- mos um pouco. E provavel que tenha sido Clifford Geertz o principal res- ponsdvel por essa controvérsia, assim como pela idéia, muito difundida hoje, de que existiria uma espécie de mainstream antropolégico em torno do tra- balho de campo e da etnografia. Mainstream que sustentaria, muito resumi- damente, que o trabalho de campo dependeria de uma identificagao do an- tropdlogo com seus nativos, o que permitiria, por um lado, captar 0 ponto de vista desses iltimos e, por outro — como viriam a acrescentar alguns dos alunos de Geertz —, representat com “autoridade etnografica” a sociedade estudada. Contra essa idéia de que a etnografia seria condicionada por uma espé- cie de sensibilidade especial que permitiria ao etndégrafo pensar, sentir e per- ceber como os nativos, Geertz escreveu, em 1974, seu famoso ensaio sobre “o ponto de vista do nativo”. Af, como se sabe, sustenta que a etnografia de- penderia mais da capacidade de se situar a uma distancia média entre concei- tos muito concretos, “préximos da experiéncia” cultural, e conceitos abstra- tos, “distantes da experiéncia”, do que de uma habilidade de identificagao qualquer: “uma interpretacao antropoldgica da bruxaria no deve ser escrita fem por um bruxo, nem por um geémetra” (Geertz 1983: 57). Nesse senti- do, 60 fato inelutdvel de que 0 etnégrafo é um observador estrangeiro, capaz de apreender, como objetos, realidades para as quais os nativos sao relativa- iiente, mas nao necessariamente, cegos, que garantiria a possibilidade da etnografia. Esta deveria consistis, pois, na investigagao das mediagdes que se ifiterp6em entre os nativos ¢ sua experiéncia social, possibilitando assim a udlise das diferentes formas simbédlicas pelas quais os nativos se expressam,” __Gonfesso que esas concepeses sobre trabalho de campo ea etnografa ecem ser mais o produto de sua critica do que uma realidade previae ado de coisas como o rela nente ¢ iviainy litte ou a autor dlide do antropélogo sobre o grupo que estuda, a idéia de uma identificagil otal do etnégrafo com seus nativos parece ser uma dessas figuras mi ocadas ¢ jamais vistas na histéria da disciplina. E se o tema é de fato fin jlientemente mencionado — seja para assinalar um risco mortal para uma lisciplina com pretensées cientificas, seja para celebrar os méritos de um ipreendimento humanista —, cle nunca ¢ acompanhado por exemplos con os, Nao obstante, o problema central aqui nfo é tanto que Virar natiy i: imposstvel ou ridiculo, mas que, em todo caso, é uma idéia fitil e plena iniitilidade. reflexdes de Geertz, como também se sabe, dirigem-se a Malinowski “observacao participante”. Penso, contudo, que seria preciso reconhi [lle essa nogao nao é assim téo clara quanto costuma parecer. A célebr iluigio” aos Argonautas, de fato, sugere ao etndgrafo que, de vez em Ib, «leixe de lado méquina fotografia, I4pis e caderno, e participe | nte do que esta acontecendo (Malinowski 1922; 31). E dificil, entn jereditar que Malinowski estivesse dizendo apenas que a obsetvaghl® ipante consistiria em “tomar parte nos jogos dos nativos” ou dangar com ontrario, ao converter a antiga “antropologia de varanda” (Stockiny }) em trabalho de campo efetivo, Malinowski parece ter operado fi logia um movimento em tudo semelhante ao de Freud na psiquil lugar de incerrogar histéricas ou nativos, deixé-los falar A vontade, A lo participante significa, Portanto, muito mais a possibilidad de ¢ improvavel meta E como este tiltimo, em geral, ¢ ao contrério da histérica, nll hem mé levado ao gabinete do antropdlogo, o trabalho de campo (01 a hecessidade. vivel, também, que as paginas de Coral gardens and their» vski cliscute “o método do trabalho de campo € os fatos i edi economia nativos” (Malinowski 1935, vol. 1; 317-340) e1 vonfissées de ignorancia e fracasso” (#dem, vol. 1; 452-482) juelas us em que clabora sua “teoria etnogréfica da lingua; i) “teoria etnografica da palavra magica” (¢dem, vol, 2) 211) mal ieee para uma justa compreensio da “mdgiea dl que aquelas, pe mais conhecidas ou pelo éem Coral gan imeira Vista muito estranha, de“ norfa isslin ‘nos bem mal a la “Latrodu vonautas, Po Uma teoria etnogréfica, de seu ponto de vista, nao se confundiria nem com uma teoria nativa (sempre cheia de vida, mas por demais presa as vicis- situdes cotidianas, as necessidades de justificar e racionalizar o mundo tal qual ele parece ser, sempre dificil de transplantar para outro contexto), nem com 0 que Malinowski viria a denominar mais tarde “uma teoria cientifica da cultura” (cuja imponéncia e alcance sé encontram paralelo em seu cardter anémico e, em geral, pouco informativo). Evitando os riscos do subjetivismo e da parcialidade, por um lado, e do objetivismo e da arrogincia, por outro, Malinowski parece ter descoberto “o soberbo ponto mediano, o centro. Nao © centro, ponto pusilanime que detesta os extremos, mas o centro sdlido que sustenta os dois extremos num notavel equilibrio” (Kundera 1991: 78). E importante nao se equivocar aqui. A diferenga entre teorias nativas, etnogrdficas e cientfficas néo repousa sobre uma reparticao judiciosa de erros everdades nem sobre uma suposta maior abrangéncia das tltimas, mas sobre diferengas de recortes e escalas, de programas de verdade, como diria Paul Veyne — que diz também que tudo se resume a uma escolha entre “explicar muito, porém mal, ou explicar pouca coisa, porém muito bem” (Veyne 1978: 118), ou seja, entre a explicagao histérica ou humana (“sublunar”, nas pala- vras de Veyne), que é na verdade uma explicitagao, e a cientifica ou praxio- légica.’ Uma teoria fica, conseqiientemente, pretende explicar ( (no sentido de explicitar) muita coisa, e 0 maximo a que se pode aspirar é que ‘sso seja feito razoavelmente bem. Uma teoria etnografica tem, | portanto, como objetivo central elaborar_ delo de compreensao de um objeto social qualquer (linguagem, ma ma- gia, politica etc.) i Jar, possa funcionar como matriz de inteligibilidade em e para outros contex- tos. Nesse sentido, permite superar os conhecidos paradoxos do particular e ‘do geral, assim como, talyez, os das prdticas contra as normas ou das realida- des em oposicio aos ideais. Isso porque se trata sempre de evitar as quest6es abstratas a respeito de estruturas, fungdes ou mesmo processos, € diri para os funcionamentos ¢ as pr Assim, se 0 objetivo ultimo deste livro é esbogar uma teoria etnogrdfica da politica ou da democracia, nao é porque se limita a uma cidade em patti- cular, stias eleigdes e seus movimentos negros, deixando de lado os niveis mais gerais ou abstratos, Uma teoria etnogréfica procede um pouco 4 moda do pensamento selvagem: emprega os elementos muito concretos coletados no ho de campo = ¢ por outros meios — a fim de articulé-! Jos em propos m3 fos muito concretos, mas também a teorias nativas muito perspica tilagdes mais abstratas quando estas se mostram titeis. _ Se Malinowski foi capaz de pér em destaque as dimensées pragmiti eM um contexto em que séo muito menos marcados os. deologias que permitem suportar, obscurecer ou neutralizara tradigdes e disfungdes de nosso sistema polftico, tem a virtud Jar com mais clareza os efetivos modos de funcionamento d julgamentos de valor, quase inevitaveis quando um tema tao « as vidas é submetido & andlise. » dessas posturas malinowskianas sempre estiveram presen\ ¥ antropoldgicas relativas ao lugar da pesquisa de campo sua pratica. Contudo, ¢ curiosamente, tais ecos foram ma ivo é uma exigéncia da antropologia, e mesmo sem q) ta dlemais, creio ser preciso admicir que este possui dif dria da disciplina. Podemos imagi nuindo sua poténcia (&: 310-311). E nesse sentido que existe uma “tealida- de do devir-animal, sem que, na realidade, nos tornemos animal” (idem: 335). Mas é€ preciso compreender, também, 0 estatuto das duas condigées, aquela da qual se sai e aquela por meio da qual se sai. Sé ¢ posstvel sair, ou fugir, de uma maioria; esse termo nao designa, contudo, “uma quantidade relativa maior”, mas “um estado ou um padrao em relagao ao qual tanto as quantidades maiores quanto as menores serao ditas minoritdrias” (idem: 356). Em outros termos, Deleuze e Guattari buscam distinguir a nogéo meramen- te quantitativa de maioria daquela, normativa e valorativa, do “maior” ou “ma- joritdrio”.!3 De forma correlata, a minoria nao se confunde com 0 minoritario, €, enquanto a primeira é apenas uma quantidade menor, o segundo é aquilo que escapa, que foge do padrao, que devém: “€ preciso nao confundir ‘mino- ritério’ enquanto devir ou processo, ¢ ‘minoria’ como conjunto ou estado” (bidem). E. nesse sentido que devir-nativo, por exemplo, nao significa tor- nar-se nativo, o que, se fosse possfvel,!4 redundaria simplesmente em sair de um estado (de maioria) para cair em outro (de minoria). Mas ¢ também nes- se sentido que percebemos que sé se escapa dos estados maiores por meio das minorias, uma vez que, por desviar do maior, toda minoria comporta um devir-minoritério, ainda que as minorias propriamente ditas sejam, princi palmente, apenas “germes, cristais de devir, que sé valem enqu: dores de movimentos incontroldveis ¢ de desterritorializagées da média ou ‘da maioria’ ” (idem: 134). Um devir-nativo, portanto, implica um duplo movimento: uma linha de fuga em relagao a um estado-padrao (maioria) por meio de um estado nao- padro (minoria), sem que isso signifique “reterritorializar-se sobre uma mi- noria como estado” (idem: 357), mas, bem ao contrdrio, ser capaz de « cons- truir novos territdrios existenciai serritorializar,”* O devir, assim, © que nos arrai io apenas de nds mesmos, mas de toda identidade subs- tancial possfvel. E é por isso que Deleuze e Guattari (idem: 317) insistem no fato de que o devir também afeta o meio: aquilo que se devém — ou, para ser mais preciso, aquilo por meio de que um devir se constitui—devém também outra coisa, que significa que o devir-nativo esté relacionado a um devir- outro do nativo.'¢ No campo, tudo se passa como na intensa experiéncia de campo vivida por Jeanne Fayret-Saada (1977') ao estudar a feiticaria no Rocage francés. Niio se trata simplesmente, como observou a autora, de apelar par a obser. pre adoca i ‘oldgic nalista da participacdo (como identificagao ou compreensao, termos dik iplicam distancia e separagao), a antropologia teria sido conduzida a rete fas a observacgao, gerando assim uma “desqualificacao da palavra indf ima “promogio da do etnégrafo”. Ao contrério, participar — prossegul 1 Saada — significa a necessidade de o etndgrafo aceitar ser afetado pel ncia indigena, o que “nao implica que cle se identifique c ind{gena, nem que aproveite a experiéncia de campo para excitar sel 10” (Favret-Saada 1990: 7). Significa, sobretudo, deixar-se afetat p nas forgas que afetam o nativo, nao se colocar em seu lugar ou dese! (clagio a ele algum tipo de empatia. Nao se trata, portanto, da apr imocional ou cognitiva dos afetos dos outros, mas de ser afeta afeta e assim poder estabelecer com eles uma certa modalidac ‘oncedendo “um estatuto epistemoldgico a essas situa de com in oluntéria nao intencional” wal” (idem: 9). E é justamente por ni nM atuito epistemoldgico” a essas situagdes que a “obseryacdo path mais um obstdculo que uma solugio.'* livro segue as contingéncias e as escolhas intelectuais e existenciil ium a pesquisa de que ¢ fruto. Mas segue também aquelas (explicl do capftulo) que marcaram a trajetéria intelectual de seu all amo a histéria politica brasileira recente, em relago & qual ext reu de forma estranhamente paralela, Em um encontro acad| ido no in{cio da pesquisa, sustentei, algo pretensiosamente, qi estudo antropolégico sobre politica deveria consistir, em til fia, na claborago de uma perspectiva sobre nosso préprio sisi iecjuivalente Aquela claborada, por exemplo, pork ans-Pritchiat ql 1, a democracia como pat “Western Po Aintirameme, imediatamente, se essa posigiio nfo seria Ha Vez que parecia supor ou pregar algum tipo de relati vi i quia aegnclo minha interlocutora, representaria um norni politico 1 reconhegamos de infcio, parece inteir: sbeasileito, Al recente do pats il lute | décadas, em uma ditadura militar, da qual sé saiu, lenta e gradualmente, com aabertura politica empreendida pelo prdprio regime militar, que culminou coma eleigéo, ainda indireta, de um presidente civil, e, em 1989, com a pri- meira eleigao direta apés quase trinta anos. Quis o destino que o presidente assim eleito sofresse um processo de impedimento legal, o que, na pratica, fez com que as eleigGes de 1994, com a escolha de um intelectual de tendén- cias social-democratas ¢ antigo opositor ao regime militar, viessem a ser en- caradas como o verdadeiro marco da instaurago plena da democracia. © problema, como se sabe, é que Fernando Henrique Cardoso nao ape- nas se aliou justamente a algumas das forgas que haviam apoiado o regime militar, como manobrou para conseguir uma emenda constitucional que per- mitiu sua reeleigo em 1998, Desse modo, argumentam alguns, a verdadeira redemocratizagao aconteceria apenas em 2002, com a elei¢do de Luiz Indcio Lula da Silva — sindicalista, I'der de um partido inequivocamente de esquer- da, sempre na oposigao. No entanto, assim como seu antecessor, para se ele- get, ¢ ptincipalmente para governar, o Partido dos Trabalhadores acabou se aliando com partidos e politicos dos quais sempre tinha buscado se diferen- ciar e, mais do que isso, implementou politicas e empregou métodos que apenas a inacreditdvel retérica dos politicos profissionais é capaz de conciliar com as posigdes histéricas do partido. Compreende-se, assim, perfeitamente que, sobre o fundo de uma nar- rativa tecida em torno da ‘redemocratizagdo’, mesmo aqueles que acreditam que o Brasil zinda no vive em um segime democratico perfeito desconfiem com forca de qualquer tentativa, real ou suposta, de ‘relativizar’ a democra- cia. Por outro lado, é claro que, a esse tipo de narrativa, opdem-se outras, que insistem na postura antidemocrdtica assumida pelas elites e pela midia, nas imperfeicdes de um sistema eleitoral ultrapassado, na inconstincia dos parti- dos politicos e na falta de educagdo politica de um povo pobre. De uma forma ou de outra, a questo é que todas essas narrativas tem em comum 0 fato de serem negativas, no sentido de que as raz6es dos proble- mas detectados sao sempre remetidas a falta de algum elemento tido como essencial: “racionalidade, informagio, tradigéo ¢ organizagio partidérias, efi- ciéncia governamental, etc.” (cf. Goldman e Sant’Anna 1995: 22), Assim, parece ter sido necessdrio que um membro de seu grupo chegasse ao poder para que os intelectuais comegassem a perceber que podiam comportar-se 19) racionalizando a posteriori profundas mudangas de posicionamentos fri 1p, simplesmente, a busca do melhor meio para fazé-lo, pois é andlise antropolégica da democracia pode ser efetuada de diferen iF para perceber que havia algo a mais em jogo e que uma pesq| miropoldgica sobre polftica desenvolvida junto ao moviment na cidade, nem mesmo no estudo das relagdes entre ise dla politica oficial na cidade orientada pela Mento negro tem a seu respeito, O que pode pan verdade, uma questito fundamental, uma ver Poiateerataiiecepol bata sd Uesentvalve aster dovescudawountas cBciedat des de um ponto de vista a elas imanente, uma das dificuldades da disciplina, quando se volta para o estudo da sociedade do observador, parece ser sua in- capacidade de manter simultaneamente o descentramento de perspectiva que sempre a caractetizou e a capacidade de dar conta das varidveis sociais efetiva- mente estruturantes. Assim, para ser fiel ao primeiro imperativo, busca-se, por vezes, na sociedade do analista, fendmenos que apresentem alguma dis- tancia ou alteridade em face das forgas dominantes. Ou, ao contrdrio, ten- tando obedecer ao segundo princfpio, concentra-se a investigagao nos cen- tros de poder e esforca-se por reconduzir os fatos estudados a formas que a antropologia tradicionalmente privilegiou. No primeiro caso, 0 risco sempre a espreita € o de conferir privilégio quase exclusivo a fenémenos ou dimen- s6es ‘marginais’, ou seja, incapazes de tornar inteligiveis processos de estru- turago mais amplos. No segundo, pode-se acabar adotando uma perspecti- va por demais afinada com as dominantes (provocando a perda da originali- dade da abordagem antropolégica) ou passar a tratar como exético ou inessen- cial aquilo que é estruturante. No caso dos estudos sobre politica, os riscos envolvidos sao 0 privilégio de detalhes pitorescos, mas secundarios, do envol- vimento politico dos grupos estudados; a mimese da ciéncia politica ou mes- mo do ponto de vista dos polfticos; ¢ a redugio do complexo jogo polftico a tituais, cosmologias ou formas de reciprocidade — termos que, por mais que os antropélogos se esforcem por negar, tendem sempre a enfraquecer a centralidade e a eficdcia di s quando estudados entre nds. Foi, provavelmente, {Bruno Latour\quem, mais recentemente, colocou 0 dedo nessa ferida da chamada antropologia das sociedades complexas. Ao sugerir que os antropélogos so “audaciosos com relacao aos outros e timidos quanto a si mesmos” (Latour 1994: 100), Latour denuncia o erro da antro- pologia de nossa sociedade em imaginar s6 poder estudar ‘o primitivo em nds”: 0 “grande repatriamento”, diz, ele, “ndo pode parar ai” ¢ seria preciso passar a estudar as dimens6es centrais de nossa sociedade (idem: 99). O pro- blema é que, em face dessa constatacio, um antropélogo tende inevitayel- mente a levantar a questao que Latour no levanta: dimensées centrais para quem?” Pois os militantes negros de Ilhéus podem perfeitamente reconhe- cer a importancia da politica no sentido em que ela afeta suas vidas, mas ja- mais concordariam em considers ta ‘central’: a mila areligifio ou o trabax bilidade mais global? Ou, para atingir uma tal inteligibilidade, serd nece flo tratar a perspectiva nativa como simples parte do objeto e explica-la.a putt! hosso ponto de vista tido como superior? Observemos, também, que esse dilema aparentemente insoltivel ap grau, como crentes, ha situagées (€ 0 caso da politica ¢ aqui exemp tudo parece ocorrer de forma bem diferente. Quais seriam. niio ¢ dificil de imaginar, a opinido da maior parte d afro-cultural de Ihéus em relagio aos politicos ¢ | Mas aquilo que confundia ou mesmo indignava no | ) as afirmativas sempre repetidas de que todos ‘sito iguais; a certeza de que nenhum x 2 como yerdadeiras teorias politicas produzidas por observadores suficientemen- te deslocados em relagao ao objeto para produzir visGes realmente alternati-_ yas, ¢ usar essas praticas e teorias como guias para a andlise antropolégica.. Como sugeriram Barreira e Palmeira (1998: 8), a proliferagao de teorias que encontramos no dominio dos estudos eleitorais se dé, em geral, com o sacrificio das representagées nativas. Mais do que isso, entretanto, talvez seja necessdtio expandir 0 movimento tedrico que, jé hé alguns anos, vem mos- trando a necessidade de tratar nossas teorias como representa¢Ges sociais, acrescentando a ele um outro movimento, capaz de reconhecer a dimensao reflexiva e — por que nao? — tedrica das préprias representacbes sociais. No ‘século XIX, 0 fato de esas teorias nativas no apresentarem, em geral, o card- ter de sistemas fechados ¢ coerentes talvez pudesse ser utilizado para negar sua natureza verdadeiramente teérica. Hoje, contudo — depois de até mesmo as ciéncias exatas ¢ naturais terem abandonado essa nogio de teoria, substitu- indo-a pela de sistemas abertos ¢ flexiveis —, a objegio perdeu sua forga e sé poderia set mantida como preconceito injustificével.” Além disso, no caso especifico da politica, uma razio suplementar po- deria ser invocada a favor da valorizagao das teorias nativas. Como observou Michel Foucault, uma das grandes novidades que apareceram a partir da dé- cada de 1960 foi o que ele denominou “insurreigao dos saberes dominados” (Foucault 1976a: 163), seja no sentido da memaéria de certas modalidades de resistencia que as formalizages tedricas tendem a mascarar em beneficio do que consideram as tinicas hutas verdadeiras (em geral aquelas travadas nos grandes cendrios de disputa eleitoral ou, no méximo, no movimento operd- rio), seja naquele da existéncia de saberes locais que tendem a ser desacredita- dos pelo saber oficial. O “acoplamento entre o saber sem vida da erudicao e o saber desqualificado pela hicrarquia dos conhecimentos e das ciéncias” per- mitiria, assim, a “reativacio dos saberes locais — menores, diria talvez Deleuze ~contra a hierarquizagio cientifica do conhecimento e seus efeitos intrinse- cos de poder” (idem: 164-165). Em lugar de abordar a politica cm si mesma e por si mesma, trata-se, pois, nos aaa de Foucault (1980: 101-102), de tentar decodificé-a por s oriundos de outros campos sociais, De certs for ball d ik pega paces so ol finiy tempo coisas bem diferentes. A prépria incorporagao da politica como obj poder sempre esteve no centro da antropologia, desde a prdpria constit da disciplina. E isso nao apenas porque foram, em parte, questdes de ord ciedades desprovidas de Estado, sentiram-se ainda obri lima instituigéo — as linhagens ~ que desempenharia as fun jie, em outras sociedades, seriam preenchidas pelo apare Hy Chem mais ficil denunciar os “filésofos polfiies o que efetivamente | dina mo Petads o A critica a esse modelo sistémico e ainda macroscépico nao tardou mui- to ¢, jf na segunda metade da década de 1950, seu anuincio podia ser ouvido: de Max Gluckman aos processualistas, pasando por Leach e por parte da an- tropologia marxista, a idéia da politica como area especifica das relacdes so- ciais é substitufda pelo princ{pio formalista (no sentido que o termo possui na antropologia econémica) de que a politica é um aspecto de qualquer rela- Ao social. Essa critica, sem duivida, possibilitou novas abordagens da poli- tica, efetuadas de um ponto de vista antropoldgico ¢ sem o pressuposto de que existiria algum tipo de particularidade na politica pensada como subsis- tema social especifico. Por outro lado, 0 cardter em geral microscépico dessa concepgio de po- der nao deixou de produzir estranhos efeitos, Em primeiro lugar, um certo tisco de, ao ser aplicada sobre qualquer relagao social, perder de vista 0 card- ter estruturante da polftica. Ou, a fim de evitar essa armadilha, um afasta- mento da perspectiva antropolégica ea busca de refiigio nos modelos macroscé- picos da sociologia e da ciéncia politica — de quem a antropologia seria assim uma espécie de auxiliar menor. Mais sério do que isso, entretanto, sao os riscos gerados pelo carter po- tencialmente tentacular de uma concep¢ao formalista de polftica: como ob- servou Georges Balandier (1969: 25-26), ela tende quase que inevitavelmen- te a se tornar‘maximalista”\o que significa confundir o politico e 0 social (ou seja, tudo o que os seres humanos fazem). O efeito dessa confusao € pa- radoxal: enquanto as concepgées substantivistas da politica sempre buscaram relacionar 0 que concebiam como um dominio da sociedade com suas outras dimensées (economia, parentesco, religiao etc.), o formalismo politico tem a md tendéncia de reduzir todas essas dimensées as relagbes de poder e, desse_ modo, a nao investigar a experiéncia total da qual a polftica € apenas um pecto. Sob o argumento de “des-substancializar’ a politica, assistimos assim, hd algumas décadas, a uma reificacdo sem par do politico.” Devemos observar, igualmente, que os estudos sobre fendmenos politi- cos tém ocupado uma posicao central no desenvolvimento da antropologia nos tiltimos anos. No caso da antropologia feita no Brasil, esses estudos apre- sentaram notdveis avangos, especialmente no campo que convencionamos denominar, a partir de meados da década de 1990,‘anttopologia da / politica’. O termo, cunhado por Moacir Palmeira,” visava precisamente evitar conce- ber a politica i rocesso especificos, defin{yeis objetivamente. de fora Tiarava-se, ao contrario, de i ar fendmenos relacionados dquilo i — : quie, ‘do ponto de vista nativo’, é considerado como politica. Nesse sentid: ‘ate livro é certamente tributario desse desenvolvimento, ¢ eu apenas act ‘ntaria algumas observagoes. Niio podemos esquecer, inicialmente, que abordar a politica a partir’ uito de vista natiyo’ nao significa ficar aprisionado nas elaboracées lo ius produzir teorias etnogrdéficas que possuam, ao menos, trés objetivos, imeito é livrar-se das questées extrinsecas colocadas seja por reformada dais, Seja por revoluciondrios ou cientistas politicos —j4 que se L nhece by Jago de interdependéncia que parece existir entre a ciéncia politica » sistema politico, em especial a democracia representativa, com 5 ¢ votagdes. Como a economia, a ciéncia politica nunca conse ‘Iver o dilema de ser um conhecimento tedrico ¢ critico ou uma sim| ita de intervengdo e engenharia social. Além disso, ‘do ponto dé } aquilo que pode ser definido como politica est4 sempre em tel, tante das experiéncias vividas pelos agentes, o que evita a tent ializacfo ¢ literalizagio do politico, Finalmente, pode tar evitar o uso normativo ou impositivo de categorias, projet eontextos estudados quest6es que nao sao a eles pertinentes, | 11 ¢ dé traducio})nao de imposigao, e isso, paradoxalmente, con juando pesquisamos na lingua que falamos e na sociedade ¢ Politica, por exemplo, parece ser, simultaneamente, um ‘objet egoria nativa’) € um“conceito’. Na verdade, nao se trata, a0 1 {o puro, de nenhuma das duas coisas, mis de um dispositivo | tite recortas, articular e refletir, de maneiras diferente idas. Nossa tarefa consiste, assim, nao apenas ent Henite as conceptualizagdes nativas, mas em apreendé-lay en Hifexto em que aparecem e segundo as modalid re utllizacio, levando 0 esforgo de restituigiio day dimen i tiltimas consegiién eo lo ugar uma antropologia da politica deve ey efetuadas em termos negatives — aque incias, Ideologias e manipulag6es, Muitas vezes 7 algo, ¢ nos suspreendemos porqi ithada com ox agentes, ft salidade tidai cone dagen modelos de Hegel: criticas tedricas ou ideoldgicas contra o estado empfrico das coisas, ou contra supostos preconceitos ¢ esteredtipos, ndéo podem levar ao abandono do real. Como observou Chatelet (1975: 33-34), ao enfatizar 0 cardter etnografico de O capital, a tinica solugao para aqueles que nao acredi- tam que “a histéria pod ter razao” €a observacao direta das atividades ‘concretas dos seres humanos ea claboragao de etnografias. Trata-se, em suma, ‘de reencontrar a dimensio (micro)socioldgica da politica ¢ a dimensao (micro)politica da sociologia, escapando tanto de uma ciéncia politica que dé as costas para as relagGes sociais concretas, quanto de uma sociologia que evita encarar de frente as relagdes de poder.* Finalmente, uma verdadeira antropologia da polftica recusa, como vi- mos, a falsa distingao entre 0 central ¢ o periférico. Para isso, submete esa. dicotomia & perspectiva nativa, procedendo por meio da ampliagao do cam- po de anidlise e fazendo af entrar o que normalmente se exclui da politica: o faccionalismos, as segmentaridades, as redes sociais, certamente; mas também o parentesco, a religido, a arte, a ctnicidade etc. Nao para desvendar supostas relagdes entre subsistemas relativamente auténomos; tampouco para revelar que atrds de tudo isso estariam ocultas relagdes de poder que ao mesmo tem- po motivariam os seres humanos ¢ seriam a explicagao de tudo o que eles fazem. A tarefa é mais modesta: evitar, como adverte José Carlos Rodrigues (199. 52, grifo do autor), que “as teorias sobre o poder se transformem em teorias de poder”; elaborar teorias etnograficas capazes de devolver a politica & quotidianidade, “essa espécie de tédio universal existente em toda cultura” (Veyne 1996: 248-250); reinseri-la na vida e evitar cuidadosamente as sobreinterpretag6es ¢ literalizacbes que, em tiltima instancia, sao as armas dos- poderes constituidos; finalmente, ao menos tentar vislumbrar aquilo que, por yezes de modo silencioso, escapa sempre a essa mesma quotidianidade.” 4 O plano de composigio deste livro reflete as contingéncias ¢ as escolhas, tedricas ow nao, acima evocadas. Procurei evitar uma ordem cronolégicalineat,_ tratando de ‘montar’ o texto, no sentido cinematogréfico do termo. Esse pro- cedimento conduziu & adogao de diferentes estilos de apresentagao, depen- dendo dos materiais empregados em cada capitulo, ¢ produziu um pouco de redundancia em algumas informag6es apresentadas em diferentes capftulos, Assim, 0 primeiro capitulo situa-se em 2002 (ano de eleig6es nacionais, lem~ bremos), no que deveria ter sido o final da pesquisa, e esboga, a partir da no- meagiio de Marinho Rodrigues para administrador do Memorial da Cultura Negra de Ihéus, uma espécie dd fenomenologia Yas relagdes entre o moyie tmento negro eo poder ptiblico municipal. Para isso, utiliza basicamente even” tos piblicos — que, em geral, celebram bem-sucedidos processos de captura pondo em contato 0 movimento negro com a politica, bem como, e print pulmente, os discursos e comentdtios que povoam tais eventos. Em um movimento de flash-back, o segundo capitulo recua até 1996, quando a pesquisa da qual este livro se origina teve inicio. Partindo do papel elatiyamente importante que a prépria pesquisa desempenhou nas relagées ie, naquele ano, o movimento negro manteve com 0 processo eleitoral, esse iptulo — empregando, sobretudo, material oriundo de reunides ¢ encon meio ptiblicos, meio privados ~ explora as articulacées ¢ manobras qitt 8, cu com a primeira.” O recuo cronolégico prossegue no capitulo seguinte: baseado em icie de trabalho de campo realizado, por assim dizer, a posteriori, bus paradigmatico dos{processos onstituem uma espécie de fio condutor deste livro. O material utilizs ipitulo, conseqiientemente, provém dealguma documentagio ¢ ienite, da memédria dos agentes — tanto aquela despertada por inter ditetas, quanto, em especial, aquela acionada no cotidia s que Marinho Rodrigues, um dos agentes mais ativos no processo de partici- pacao do movimento negro na campanha eleitoral, atuasse também como pes- quisador de campo. O material empregado nesse capftulo provém, em sua maior parte, do excelente trabalho realizado pot Marino. mento negro coma ee Dessa feita, contudo, a aera cont ‘na preparagio, realizacao e resultados do carnaval de 1999 — que, do ponto de vista dos militantes negros, marcou um momento fundamental na reto- mada das atividades dos blocos e grupos negros de IIhéus. O material empre~ gado nesse capitulo provém, quase que exclusivamente, do intenso trabalho de campo que realizei, principalmente junto ao Dilazenze, entre setembro de 1998 e margo de 1999 (0 que inclui, portanto, as eleigées nacionais de 1998). Ele revela, de forma muito nftida, como-os_processos de captura se tornam imanentes as atividades de resisténcia, ou seja, aquelas para as s quais: as pessoas direcionam suas energias ¢ desejos. Osexto e tiltimo capitulo (uma conclusio esté fora de questo), por sua vez, cobre os anos de 2003 e 2004 (este, em parte, a priori), tomando a pos- sfvel candidatura de Marinho Rodrigues a vereador como né central da tra- ma descrita e analisada. Tendo passado muito pouco tempo em IIhéus ao longo desse perfodo, a etnografia aqui empregada foi, quase toda, realizada ‘a dis- tancia’, mais uma vez por Marinho Rodrigues, consistindo basicamente nas fitas gravadas que me enviava ¢ em longos tclefonemas durante os quais cu conversaya com ele ¢ com outras pessoas em Ihéus. Finalmente, uma sétie de oito apéndices visa facilitar um pouco a leitu- tado livro. O primeiro, uma espécie de glossdtio de nomes prdprios, preten- de evitar que o leitor se perca em uma narrativa povoada de nomes de pessoas, lugares e instituicées. O segundo reproduz uma “entrevista” que enviei por escrito, em meados de agosto de 2000, ao Jornal da Cidadania, da ONG Jnstituto Brasileiro de Andlises Sociais e Econémicas (IBASE), que me havia encaminhado algumas quest6es relativas 4 “participagao politica dos jovens”. Tisse apéndice explicita assim, em parte, algumas de minhas posigées politi- ~ cis que talvez nao tenham ficado claras ao longo do livro propriamente dito. © Apéndice III apresenta as cinco colunas escritas por Marinho Rodrigues para o Didrio de Hhéus, entre outubro e novembro de 2003. O Apéndice 1V a ase genealogia da famflia Rodrigues, rada por seus ) quinto icamente, a estri qual ay (ura ‘segmentar’ dos blocos afro de Ilhéus. O sexto tenta fazer o mesmo com as cleigdes no municipio entre 1976 e 2004. Os Apéndices VII e VIIL, por fim, — apresentam, respectivamente, alguns mapas ¢ fotografias que talvez ajudem na yisualizagao de algumas das pessoas e lugares que aparecem na narrativa. O leitor observard, também, que as datas que balizam os capitulos sio anos eleitorais, ou anos de “politica”, como se diz em Ilhéus e em tantas par tes. Como lembra Michael Herzfeld (1985: 94, 1992a: 99), a politica, e _geral, eas eleigées locais, em particular, oferecem uma arena privilegiada para st observagao € andlise das interacées sociais, uma vez que, nelas, as ages, es- olhas e negociacGes sao efetuadas de acordo com padrées ¢ valores que, muito | claramente, so sempre ‘de alguém’ e ‘para alguém’. Esses momentos, desse modo, nao apenas constituem oc: i Jimensdes da politica e da vida social em geral, como abrem iltiplas poss! ilidades narrativas, que podem destacar as causas € conseqiiéncias das elel bes propriamente ditas; a expresso das opini6es, interesses ¢ valores de in- lividuos e grupos; os dados oriundos da observagio direta; ¢, principalmen’ a operagio dos mecanismos de poder em funcionamento. Vérias dessas ossibilidades serao aqui exploradas. Mas o leitor deverd, igualmente, levar i conta as conhecidas, ainda que relativas, diferengas entre cleiges munh ipuis, estaduais e nacionais. Pois é sem dtivida verdadeiro que, ao menos iunicipios do porte de Ilhéus, as primeiras parecem possuir um poder de hobilizagao superior, dada a proximidade ¢ o assédio por parte de candida- © cabos eleitorais, o maior destaque concedido as liderancas locais, a ext ficia de posicionamentos claros da parte dos eleitores,-o fato-de inicio bem antes das campanhas propriamente ditas, ede produzitem srdenamentos sociais por meio de aliangas e de op. a in os diferentes territérios existenciais dos grupos locais, Tudo isso nfio deve esquecer, é claro, que as eleicdes estaduais e mesmo as nacionais esto mpre estreitamente entrelagadas com as municipais, seja porque os polft! locais funcionam como cabos eleitorais de outros polfticos, seja po: im essas eleig6es para aymentar seu poder no plano municipal ou pata suas bases, seja porque um polftico de projegio estadual ou nacior sempre a possuir um enraizamento municipal, _ a liltima observagio antes de concluir este prologo jt hepa demas ape paca souls por exemplo, Goldman e Silva 1998; 29), r rdadeiros di geral nelidas ipelic mo ol un/a| # rista anénimo/a da Revista de Antropologia — a quem agradeco imensamen- te — “o emprego mecanico de nomes ficticios” raramente serve de fato “para preservar a identidade das pessoas citadas”, servindo antes, parece-me, para a proteco do antropdlogo. Assim, em sua dissertagao de Mestrado, por mim orientada, Ana Cléudia Cruz da Silva modificou todos os nomes dos perso- nagens de sua etnografia— “como é de praxe e, principalmente, em funcao de uma ética da etnografia que exige o anonimato dos informantes” (Silva 1998: 15)! No pélo oposto, mas também em IIhéus, Miguel Vale de Almeida (1999: 132, nota 3) adverte que utiliza nomes verdadeiros: “o trabalho de campo foi conduzido sem ‘agendas escondidas’, sobre assuntos puiblicos ¢ tendo os meus interlocutores sido informados da fiatureza do meu trabalho”, Nao creio, contudo, que nenhuma das duas ‘solugées’ seja realmente satisfat6ria. No primeiro caso, os personagens da narrativa de Silva nao ape- nas ficaram algo decepcionados com a auséncia de seus nomes no “livro”, como, em poucos minutos de leitura, identificaram todos os envolvidos. No segundo ~ e ainda que o autor acrescente que a opgao pelos nomes verdadei- ros “comporta riscos, uma vez que as fronteiras entre 0 privado e 0 publico no so consensuais” € que, “por esta razo censurei algumas afirmagées pas- stveis de ferir suscetibilidades” (ibidem) —, é-se vitima de alguma confusao. Isso porque, por um lado, é verdade que, além de nao preservar necessaria- mente qualquer anonimato, o procedimento dos nomes falsos, no limite, _ ameaga eliminar qualquer contribuicdo etnogrdfica de um texto.» No caso deste livro, por exemplo, 0 terreiro eo bloco que servem de palco para parte da narrativa desapareceriam enquanto tal, os politicos teriam outros nomes, a propria cidade de Ilhéus nao deveria existir (por que nao também a Bahia ou o Brasil?), ¢ assim por diante. Isso acabaria por acarretar a perda absoluta_ do contexto da anilise, introduzindo um tificialismo que comprometeria no apenas a leitura, mas qualquer trabalho posterior a ser realizado nesse mesmo contexto. Por outro lado, é também verdadeiro que, em certas ocasides € para al- guns informantes, o anonimato deva ser mantido — ainda que, por vezes, eles préprios exijam, clara ou discretamente, que seus nomes sejam menciona- dos. Nao cteio que haja uma solugéo tinica para o problema, mas qualquer opgao repousa, certamente, sobre compromissos éticos que 0 antropdlogo deve assumir e respeitar, respondendo por sua violacao, seja perante seus informan- tes, seja perante seus colegas, e também dividindo parcialme nte a responsi bilidade com seus leitores, Nao creio, po Se un as “fronteiras entre o privado e o publico”, tampouco que se trate de jocensura. A questo verdadeiramente central foi levada ao limite na ria atual de exigir o “consentimento informado” dos nativos. Importadi léncias biolégicas (nas quais possivelmente tenha um sentido e mesmi valor), essa exigéncia pressupoe alguns pontos que s6 podem deixar jpdlogo no minimo cético: que, no momento mesmo da investigagao, sador de scus compromissos éticos (j4 que, no limite, qualquer col dita uma vez de posse de um consentimento assinado). “4 assim, ea Q Simninar ou disfargar ¢ lag ft utilizado provém também dessa Rei inevitdvel qi an longo do tempo, ); 458-459) que sublinhou o cartier em geral descantinna e Tealizadis Ines ano

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