1998-Padre Ibiapina Figura Matricial Do Catolicismo Sertanejo Do NE Seculo XIX

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Pe. Ibiapina: figura matricial do Catolicismo sertanejo no Nordeste do século XIX Epuarno Dratany B. pE Menezes “? Ernire esses padres do povo, vém os missiondrios errantes, dos quals Tbiapina, avultando por um tirocinio mais longo € por uma agdo mais pura, original e brilbante, é, sem divida, o maior do Nordeste. Antes dele ndo temos @ vista nenhum que se the pare- ¢4, Néo nos consia, depois, outro com ido ardente ¢ exclusivista wocagdo de apéstoio e educador.” Celso taaRiz (1942; VIED) +O Padre-Mestre caminbou pela alma dos homens... (...) Pa- dre-Mestve 60 sett grande e sonoro titulo ritual. A pé, a cavalo, carre- gado em rede quando aleijado, o Pregador das Missies, 0 Evan- gelizador do Sendo, semeou a palavra de Deus, erguendo capelas, cemitérios, Casas de Caridade, Recolbimentos, Atravessou as secas € as epidemias em plena coivara acesa, F, em quatro Provinctas, im- prime o vestigio do seu nome no coragdo de todas as lembrangas.. Luis da Camara CASCUDO (1940) “Sob certos aspectos genial, parece ter sido Ibiapina. Mas dos génios incompreendidos de que muito se fala e que na verdude exis tem, embora em mimero reduzido. Incompreendido tanto pelos bispos como pelos particulares ricas do seu tempo... ¢...) Sua concepgdo de familia - mesmo de familia espiritual - era a democratica, em que mulberes participassem da direcdo da casa e 0 trabaibo se fizesse sem auxilio de brago escravo. O que parece indicar que 0 grande missiondrio trouxe para o Catolictsmo brasileiro do seu tempo tanto sua experiéncia democrética de famt- lia numa provincia ja entdo quase livre da economia escravocrata e do patriarcade absolute como 0 Cearé - a provincia, por excelén- cia, do mutirdo - como as ligdes recebidas, no Curso Juridico de Olinda, de mestres impregnados de novas idéias..., “idéias do século XIX" que ele desejaria ver triunfantes sobre “antigos prefuizos que ndo podem casar com 0 nosso systema lberal” + Gilberto FREYRE (1951: 90-95) © Sécio Efetivo do Instituto do Ceara 73 Revista do Instituto de Ceard - 1998 +O maior milagre de Ibiapina foi o de conseguir uma relatt- va e passageira organizagao do povo nordestino atomizado e de- sarticulado pelo cataclismo do colonialismo. Este milagre foi apenas passageiro por falta de compreensao por parte do clero, que ndo entendeu a organicidade da aiuagéo de Ibiapina e se deixou seduzir por modelos pastorais impontados da Europa, sem prestar atengdo ao que era possival aqui, no Nordeste, concretamente. Eduardo HOORNAERT (1981: 11) O Percurso de Ibiapina Devo confessar desde logo que nao sou propriamente aquilo que se poderia chamar um especialista na vida ¢ na obra do Padre Mestre Ibiapina. Sequer me assiste alguma especial competéncia para falar com larga seguranca sobre o tema. Apenas, na. qualidade de observador interessado dos fatos ou ocorréncias do Pais ¢ de modo mais particular daqueles que se circunscrevem ao Nordeste ao Ceara, pretendo dizer algo aqui sobre o tema em foco, numa perspectiva que pode ser identificada com a de uma antropologia hist6rica, sem exclusividade de aproche. Alias, delimitar esses lu- gares sociais e epistémicos de onde costumo produzir a minha fala pode até parecer, no caso, descabido ou excessive diante do carater sumério que pretende ter este curto ensaio. Mas quem foi Ibiapina, essa matriz geradora de uma estirpe de conselheiros do povo (Anténio Vicente Mendes Maciel, Padre Cicero, Beato Lourenga, etc), instituindo nos sertées nordestinos da segunda metade do século XIX uma grande escuta dos anseios € afligées de larga massa de excluidos, e inaugurando uma forma de organizacio que a nossa civilizacao litoranea dominante teimara em nao aceitar e até em hostilizar ou destruir sistematicamente quase todas as suas manifestagdes? Dou abaixo um esbo¢o de res- posta, recompondo a largos tragos a sua trajetéria. Filho de Francisco Miguel Pereira e Teresa Maria de Jesus, nasceu José Ant6nio Pereira Ibiapina a 5 de agosto de 1806, em Sao Pedro de Ibiapina, regiao de Sobral, no norte da Provincia do Ceara, © morreu em sua residéncia ao lado da Casa de Caridade de Santa 74 Pe, Ibiapina: figura matricial do Catoticismo sertanejo no Nordeste do século XIX Fé, na Paraiba, a 19 de fevereiro de 1883. O «biapina» foi uma homenagem do pai ao vilarejo que 0 acolheu nos primeiros anos de seu casamento, por isso decidiu apor o nome do local ao patronimico dos filhos. Ibiapina € 0 terceiro filho do casal e © primeiro a portar esse sobrenome Vive parte de sua infancia na cidade do [c6, para onde mi- graram os pais, j4 que o chefe da familia fora nomeado tabeliao, ai permanecendo até 1819, quando foi removido para o Crato, af residindo até 1823. Em 1820, Sbiapina foi para Jardim, cidade da regiao, onde freqiienta a aula de latim do mestre Joaquim Teoténio Sobreira de Melo. Em 1823, acompanha os pais que se mudam pata Fortaleza. E é mandado logo em seguida para Olinda, desti- nado ao seminario e ao sacerdécio. Ibiapina, porém, constrangido pelo idedrio racionalista e revoluciondrio do Seminario de Olinda, retira-se dai e vai viver no Convento da Madre de Deus, dos padres oratorianos, no Recife. O pai de Ibiapina, que fora contrario & revolu¢do de 1817 € até concorreu para o contragolpe de Pereira Filgueiras, abraca agora ardorosamente a revolugio de 1824 (Confederagao do Equador), adotando por nacionalismo o apelido de “Ibiapina” que dera ac filho. Derrotada a revolta, é preso, condenado e fuzilado, em 1825, junto com o Padre Mororé. Era Presidente da Provincia, entio, Pedro José da Costa Barros que foi duro com os insurgentes. © irm4o mais velho de Ibiapina, Raymundo Alexandre, que também participara, teve degredo perpétuo no presidio de Fernando de Noronha, onde morte tragicamente. Tbiapina deixa o convento e retorna ao Cear para cuidar dos irmAos menores, pois por esse tempo a mae ja havia morrido de um parto prematuro. Martiniano de Alencar, revohucionério de 1817, que 0 pai de Ibiapina combatera, veio em ajuda de sua familia. Com © auxilio recebido, retorna algum tempo depois ao Recife com os irmaos, voltando a estudar no Seminario de Olinda, enquanto isso reside no mosteiro de Sao Bento. Instalado o Curso Juridico em 1828, nele se matricula José Anténio Pereira Tbiapina e 0 conclui com a primeira turma de ba- charéis de Olinda em Ciéncias Sociais e Juridicas, em 1832. No ano seguinte, por decreto da Regéncia, de 1° de fevereiro de 1833, foi 75 Revista do Instindo do Ceard - 1998 nomeado lente substituto, presta juramento a 27 de marco € passa a ensinar Direito Natural no curso, que ainda era instalado no con- vento beneditino fiquei. Na vida académica, ele fora colega de Eusébio de Queiroz, Nunes Machado e Figueira de Melo (cearense) e foram seus alunos, entre outros, Zacarias de Goes ¢ Joao Felicio Vanderley (depois Barao de Cotegipe). Em pleno exercicio do ma- gistério, recebe a noticia de que fora eleito Deputado Geral pelo Cear4, tendo sido o candidato mais votado, para a legislatura de 1834-1837. Era 0 tempo do governo de Feijé, na Regéncia, quando os liberais moderados, 2 que era filiado na provincia, dominavam com 07 de Abril. Ainda no final deste ano, por Carta Imperial de 13 de dezembro, fora nomeado Juiz de Direito da recém-criada comarca de Campo Maior (Quixeramobim) da provincia do Ceara Contudo, tendo prosseguido o seu ensino até o final do ano letivo quando entéo pede demissao, no que foi atendido pelo De- creto da Regéncia de 20 de dezembro de 1833, outro golpe veio atingir a vida de Ibiapina: regressando & sua Provincia com o intento de casar-se com sua noijva Carolina Clarence de Alencar, filha de ‘Tristéo Gongalves de Alencar Araripe, o chefe confederado de 1824 e sobrinha do Padre Martiniano de Alencar, pai do romancista José de Alencar - Carolina fugira antes para casar com um primo. Mesmo. nesse estado de profunda frustracio amorosa, lbiapina Viaja imedi- atamente para o Rio de Janeiro, com bastante antecedéncia, a fim de assumir as fungdes de Deputado, na 3? Legislatura da Assembléia Geral do Império, cuja posse s6 ocorrerd no dia 2 de Maio de 1834. Encerrada a sessao legislativa daquele ano, Ibiapina retorna ao Ceara para assumir por trés meses (final de 1834 a margo de 1835) 0 cargo de Juiz de Direito de Quixeramobim, um ano apés ter sido nomeado. Nessa ocasiao, Ibiapina vai visitar o Padre Martiniano de Alencar, entéo presidente da provincia, que o nomeia para exer- cer também 0 cargo de Chefe de Policia da mesma regifio. A referida comarca de Quixetamobim abarcava vasta extenséo do territério provincial, compreendendo, além da sede, os juigados das vilas de Maria Pereira (atual Mombaca), de Sao Joiio do Principe (Taud) ¢ das povoacées de Quixada e Boa Viagem. Logo o seu desempenho &tico e exigente o levaria a conflitos com o Executivo provincial € 76 Pe, Ibispina: figura matricial do Catolicismo sertancjo no Nordeste do século XTX com os potentados da comarca’. Parte entéo para a Corte e, s6 no final da sessio de 1835, exonerou-se da magistratura. Nesse segundo ano de mandato apresenta projeto propondo a redugdo do meio circulante para reestabilizar a economia e vai progressivamente assu- mindo atitude de oposigAo. Em 1836, tinha havido roubo no Tesouro Nacional e era Ministro da Fazenda Manuel do Nascimento Castro e Silva, deputado alencarista do Ceara. Suspeitando deste, Ibiapina apresenta indicag4o solicitando que o trono o substituisse por alguém mais competente. Na sessio de 1837, foi calma a sua atuagao e constitui sua derradeira presenga na politica. Assinale-se que the foi oferecido um ministério e uma presidéncia de provincia, porém, de- clinou dessas nomeagées, tal a sua decepcao com a vida publica. Findo assim o mandato de Deputado, abandonada a carreira da magistratura e frustado o casamento, Ibiapina veio viver no Re- cife. Resolve entao dedicar-se 4 advocacia, com escrit6rio num so- brado da Praga do Carmo e com atuagao no foro da Capital e do interior. Antes, porém, inicia sua brilhante carreira de advocacia, atuando por dois anos na Paraiba, onde seu prestigio de criminalista assume cores de intensa popularidade, sobretudo depois de célebre defesa de payoroso crime passional, cujo texto foi divulgado ampla- mente e comentado em jornais e revistas da época”. Continua a sua acao profissional no Recife por toda a década de 1840 a 1850, quan- * Seria longo resumir aqui a intensa atividade da sua magistratura, em sua consci- éncia ética, sua competéncia juridica, seu sentimento de que aquelas fancoes significavam também uma educacao social dos sendes semi-barbaros, ou, nas palavras de um dos melhores estudiosos sobre 0 tema: -Dr. Ibiapina, durante apenas és meses de exercitio de magistratura, deixou exemplo imorredouro de honradez, senso de justiga e coragem civica. Nao se limitou a julgar, mas incorporou aos deveres de juiz de direito as funcdes voluntarias de defensor da cidadania, insteutor da Constitui¢ao, orientador dos costumes piblicos, educa- dor do povo, civilizador dos sertdes. Em tho pouce tempo, conseguiu fin¢ar um marco indelével na hist6ria judicidria do Ceara (ARAUJO, 1995: 86). Nesse sentido, € extremamente fecundo ler a correspondéncia trocada, nesse perio- do, entre © Dr. Ibiapina ¢ 0 Presidente da Provincia: ela constiui documento precioso tanto como expressio dessas duas personalidades, quanto na sua qualidade de retrato sociocultural da regiéo. * Cf, em apéndice, o texto de folheto de Cordel que relata essa ocorréncia muitos anos depois, segundo a meméria popular. W Revista do Instirute do Ceard - 1998 do consolida sua reputagao intelectual e moral. Em 1850, ele tivera mais uma decepcao: perdera uma causa. Devolveu os honorarios ao constituinte, distribuiu seus livros juridicos e abandonou a profissao. Leva uma vida retraida em um sitio de sua propriedade, até decidir-se pelo sacerdécio, em 1853, aos 47 anos de idade. Propdc ento a0 Bispo Dom Jodo Perdigio a sua inteng&o de ordenar-se padre, com uma condi¢&o: nao se submeteria a exames. Isso foi no domingo, dia 12 de julho. © Bispo, a principio, impugnou a propos- ta. Mas no sdbado seguinte, dia 18, em virtude da intermedia¢ao de amigos, tomaria as ordens menores, e, no domingo, ja seria subdidcono. Tudo foi feito em ceriménia privada, No domingo, 26 de julho, recebeu o presbiterado, celebrando a sua primeira missa no dia 29, na [greja da Madre de Deus. Alterou seu nome civil, irocando 0 sobrenome Pereira pelo cle Maria, passando a chamar-se Padre José Antonio de Maria Ibiapina. © Bispo o nomeia Vigdrio Geral e Provedor do Bispado, e professor de Eloqii€ncia do Seminario de Olinda. Tais cargos ¢ honrarias nao seduziam Ibiapina, que logo renuncia a eles para dedicar-se ao seu projeto missionario de viajar, doutrinar, educar e construir algo concreto para as populagées abandonadas dos sertdes nordestinos. E sera esse 0 ramo que tomar sua vida até o fim cos seus dias. Ha noticias de sua presenga na Paraiba, em 1856, ano da irrup¢ao do cdlera nessa provincia: ele constréi um cemitério para os pestosos, dando-ihe o nome de Soledade, que, mais tarde, cons- tituiu o nticleo de povoa¢ao que veio a tornar-se a atual cidade de igual nome. Mas sua a¢g&o inovadora comega efetivamente a partir de 1860. Nessa década, Ibiapina por certo cruzou nos caminhos com outro pregador e construtor de igrejas, cruzeiros e cemitérios: © Padre Hermenegildo Herculano Vieira da Cunha. Segundo informa Celso Mariz, anteriormente aos dois, nos sertdes da Paraiba, houve outros missionatios: Frei Caetano de Messina (1843), Padre Manuel José Fernandes (1848) ¢ o capuchinho Frei Serafim da Catania (entre 1849 e 1853). Luis da Camara Cascudo refere-se 4 passagem do missionario Ibiapina pelo Rio Grande do Norte, em 1860, quando fundou uma Casa de Caridade em Santa Luzia de Mossor6, J4 0 Presidente Francisco Aratijo Lima, no governo da Paraiba em 1862, 78 Pe. Ibiapina: figura matricial do Caioticismo sertanejo no Nordeste do século XIX quando irrompe a segunda epidemia de célera na provincia, registra em sua fala 4 assembléia a agdo de Tbiapina dirigindo a construgao de uma casa de caridade em favor dos acometidos da doenga, na cidade de Areia e na vila de Alagoa Nova. Ressalte-se que nao se trata ainda das grandes Casas de Caridade que instituiu mais tarde para abrigo e educac3o sobretudo de meninas pobres. Estas consti- tuirdo, nalguns casos, imponentes conjuntos de edificagdes, misto de abrigo, orfanato, escola profissional, oficina e centro cultural. Aquelas que ent4o construjra eram hospitais de emergéncia, face & multidao de atingidos pela epidemia. Mas esses mesmos edificios de Areia e Alagoa Nova foram remodelados depois e se tornaram as Casas de Caridade dessas localidades. Ele foi espalhando em vasta Area da regiao tanto 0 seu influxo espiritual e moral quanto as obras materiais que ia construindo nas cinco principais provincias alcangadas por suas missées: Paraiba, Ceara, Piaui, Rio Grande do Norte e Pernambuco [ver mapa da drea coberta por sua a¢4ol, No inicio dos anos 60, quando di corpo aos rumos de sua acao, funda Casas de Caridade em Santa Luzia do Sabugi (PB), em Angicos ¢ Acu (RN), ¢ em Barbalha (CE). Tais construgées eram feitas em curto espacgo de tempo, em virtude da multidao de pessoas ¢ dos recursos que sua palavra mobilizava: a Casa de Caridade de Barbalha levou um més; e na povoagio de Caldas (CE), iniciou e concluiu um agude numa semana; em 18 dias, com um mutirao de 12.000 pessoas ergueu uma capela em Goianinha. Em fins de Agosto de 1862, chegou a Fortaleza, apresentou-se ao Bispo Dom Luis Anténio dos Santos e proferiu sua primeira prega- cao no Ceara. Continuou sua missio pelos povoados de Imperatriz (hoje Itapipoca) e, passando antes pelo povoado de Sao José, segue rumo a Sobral, sua terra natal, onde, a 27 de setembro iniciou uma Casa de Caridade, inaugurada no final de novembro e mais tarde (1864) ampliada com sala de aulas e um pavimento para hospital. Em fevereiro de 1863, instalou, em SanrAna do Acarati, uma Casa de Caridade, vasta edificagdo de 15 janelas de frente. Depois dessas misses e fundagdes, em Marco de 1863, Ibiapina viaja de navio para Olinda e Recife. Mas ai nao se demora, pois parte outra vez para a Paraiba, subindo a Borborema e descendo para Os sertées baixos do Piranhas. Ainda no mesmo ano, pregou 79 Revista da Instinuto do Ceart - 1998 em Catolé do Rocha e, no ano seguinte, fundou uma Casa de Cari- dade em Acari. Em Fevereiro de 1865, inaugura a Casa de Caridade de Missdo Velha (CE), amplo edificio com uma roda de expostos ou de enjeitados e pavilhdes para hospital. Prega depois em varias outras vilas ¢ aldeias do Ceara. Faz uma volta pelo Rio Grande do Norte, visitando as fundacdes de Agu e Santa Luzia; inicia e deixa quase concluida a igreja matriz de Flores, chegando em Fevereiro de 1866 a Alagoa Nova (hoje Laranjeiras). Segue para Areia, onde pre- ga e anuncia a préxima inauguragao da Casa de Caridade de Santa Fé, em tezras doadas pelo Major AntOnio José da Cunha e sua mu- jher Dona Candida. Esta Casa foi efetivamente inaugurada a 1° de maio de 1866 e constituird o centro irradiador de sua obra, tanto que a escolher4 pata construir sua moradia e onde vivera os anos finais de sua existéncia. Depois de Santa Fé, ainda no mesmo ano, viajou a missionar, fundando a Casa de Caridade de Pocinhos e a de Pom- bas (hoje Parari), nos municipios de Campina Grande e $40 José do Cariri. Mantinha 0 seu estilo forte de pregacao e partia 4 frente da muttidao que o ajudava, dirigindo pessoaimenie as reformas, a con- servacdo, os melhoramentos ou as novas consiru¢des, retornando as vezes para fiscalizar e reparar fundacoes anteriores. Em 1868, Ibiapina deixa em Barbalha uma igreja, um cemité- rio e uma cacimba d’4gua para o povo, Vai ao Crato e ai funda sua Casa de Caridade. No ano seguinte, retorna 4 Barbatha onde realiza varias construgdes: uma Casa de Caridade na cidade, e uma capela eum acude em Caldas, uma capela em Goianinha e outras obras em Porteiras. Ainda neste ano, no Ceara, constréi uma Casa de Carida- de em Milagres, com anexos para hospital ¢ asilo de invalidos; levanta igrejas nos povoados de Sao Bento € Brejo do Cuité; e constr6i um agude em Serra da Mdozinha. Vem para a Paraiba e ergue a Casa de Caridade de Cajazeiras, em terreno cedide por outro grande apostolo, o Padre Rolim; e, em prédio doado pelo vigario Marques Guimaries, instalou a Casa de Caridade de Souza. Perma- nece mais tempo em Cajazeiras, de onde parte a 9 de outubro de 1870 a fazer missdes em Barra do Jud e em Souza. Em 1871, atravessando 0 Ceard a pé, atinge 0 Piaui no més de maio, chegando primeiro a Carnaibinha, cujo nome troca por Pio IX (hoje Patrocinio), levantando ai uma capela. Segue para Picos, onde edifica igreja e cemitério. Vai a Jacés ¢ af constréi cemitério e inicia 80 Pe. Ibiapina: figura matricial do Catolicismno sertanejo ne Nordeste do século XIX igreja. Das vilas do Piauf segue rumo a Ouricuri, Baixa-Verde e Flo- res. Em Pernambuco, Ibiapina tinha construfdo, em 1860, sua pri- meira Casa de Caridade, em Gravata de Jaburu, e, em 1868, comegara outra em Bezerros - esta s6 foi inaugurada em 1870°. De 1871 a 1873: a Casa de Caridade ¢ hospital em Baixa-Verde (janeiro de 1871); igreja e cemitério em Sao Gongalo; igreja € cemitério em Flores (De- zembro de 1871); igreja e agude em Santa Cruz; acude e cemitério em Mata-Virgem. Noutros povoados, repata templos, caminhos, cemité- trios, etc., deixando marcas de sua presenca por onde passava. Em Junho de 1872, Ibiapina chega a Santa Fé, de retorno de sua longa caminhada missiondria até o Piaui, de onde regressou pelo interior de Pernambuco e entrando enfim na Paraiba. Em Ju- lho, constréi agude em Soledade e a 15 de agosto, instala a Casa de Caridade de Cabaceiras (PB). Dejulho de 1872 a Dezembro de 1873, realizou outro periodo de missdes € fundagdes sobretudo na Paraiba. Depois, $6 a partir do final de Setembro de 1875, Ibiapina se dispde 4 nova excussao apostdlica pelos sert6es, chamado pela dificil situ- agio da Casa de Caridade de Baixa-Verde (PE). Por esse tempo, vinha ele sofrendo sérios achaques. Em especial, suas crises fre- qientes de asma. Realiza, todavia, obras € sai a pregar por inimeros povoados até chegar a Baixa-Verde (hoje Triunfo). Dai, preparou-se para retomar a Santa Fé, que, desde 1873, escolhera para residéncia € repouso na velhice. Contudo, sofreu uma congestio cerebral a 30 de dezembro. A 7 de janeiro de 1876, partiu de volta. Seu estado era grave. Estava no quarto dia de caminhada, quando o vigario de * Em Fortaleza, o jornal Pedro If, de 11 de novembro de 1870, di a seguinte noticia: -O Rvd. Ibiapina. — 0 Jornal do Recife noticiou que o Rea. Padre Dr, José Antonio Maria Ibiapina, secundado pelo vigario Trajano de Figneiredo Lima, tinba fundado na povoagao de Bezerros um asylo destinado aos orphdos desva- Hidos. A inauguragdo teve lugar no dia 11 de setembro uitimo. © custo do edificio, bastante espacoso com suficientes accomodacées, 6 orcado em cerca de 50:0008000. Achavam-se jé recolbidas ao asylo 25 orphds, No dia da tnaugura- (ao, dirigindo-se 9 Rud. Iblapina ao povo, que o cercava, pedio que cada um desse uma esmola, conforme os seus recursos, para a casa de caridade. Inmediatamente fordo recebidos 4158000, € 72 cabecas de gado foram pro- mettidas ¢ inscriptos os nomes dos doadores pura a creagao de ume fazenda, que sirva de patriménio ao asylo.. (Cf. hemeroteca da Biblioteca Publica do Estado do Cearil. 81 Revista do Instituo do Ceard - 1998 Cajazeiras, Padre Vieira, decidiu leva-lo para Bom Conselho, onde demorou por dois meses. Chegou 4 Santa Fé em abril, depois de um més de penosa marcha. Foi a derradeira viagem de Ibiapina. Seu estado se agrava, sobrevindo uma paralisia das pernas que o prende ao leito ou 2 riistica cadeira de rodas. E dai que conti- nuara escrevendo, aconselhando e provendo suas Casas de Carida- de. Nessa condicao enfrenta os terriveis anos da Seca de 1877 a 1879, Em 1878, institui oficialmente, com declaragao passada em cartério, um pedinte para cada Casa de Caridade, com 0 encargo de recolher doagdes, a fim de salvar seus protegidos e os que ali bus- cavam sobrevivéncia. Seu estado de satide vai piorando progressi- vamente até sua morte 4s 15 horas do dia 19 de fevereiro de 1883, em Santa Fé, onde estava recoihido desde 1876.4 Apreciagao Historiografica Estranho destino este que acompanha a posteridade das per- sonalidades que se destacam por sua atuagio junto ao povo: a literatura a seu respeito tende a seguir quase inexoravelmente duas vertentes - a dos apologistas mais ou menos fandticos ou ingénuos, ea dos detratores com maior ou menor grau de paixao negadora. Mas os lideres sao assim, dividem opinides e sentimentos, arrastan- do uns e provocando repulsa noutros. Sao figuras humanas nascidas do e para o conflito, especialmente no campo religioso que, como 9 politico, tende naturalmente para o antagonismo e 0 sectarismo, no sentido etimolégico desses termos Nao foi outra, por exemplo, a sina do Padre Cicero. Até hoje nao se compreendeu com equilibrio e rigor o sentido do mifagrede Juazeiro e sao de fato raras as obras de boa historiografia que atra- vessem © periodo de sua existéncia clareando a real significagao e o alcance dessa figura contraditéria. Com o Padre Ibiapina, porém, embora nao tenha gozado das simpatias sinceras de alguns mem- + 0 roteiro aqui exposto segue fundamentalmente as notas que tomei nas obras de NOGUEIRA (1888), MARIZ (1942) e ARAUJO (1995). 82 Pe. Tbiapina: figura matricial do Catolicismo sertanejo no Nordeste do século XIX bros da hierarquia eclesidstica da regio, esse destino que acompa- nha os lideres religiosos se tornou mais estranhavel: existe ampla unanimidade na encomidstica literatura que se acumula acerca do homem e da obra missionaria que desenvolveu. Posto nao seja alentada essa produgio, outra de suas marcas est4 em que seus autores tendem a repetir com monotonia os mesmos dados extrai- dos de uma fonte eleita como mais fidedigna’ e a reproduzir o mesmo perfil tematico da obra que se imponha como paradigma’. Com efeito, os trabalhos que pretendem dar conta da existén- cia, da atividade e da influéncia dessa singular figura de missionario sertanejo que foi Ibiapina mostram forte inclinagao para realizar o classico modelo do género «vida dos vares ilustres» ou, ao que € pior, deslizar no rumo da légende dorée heroificante, tipica da hagiografia tradicional catélica. Lamentavelmente, o Padre Mestre no consegue fugir desses louvadores perenes que pouco contribu- em para justa avaliacio de uma personalidade rica ¢ multiforme como a sua. E, assim, o movimento que se faz hoje, no Ceara, com vistas A sua canonizagdo parece inevitavelmente escorregar nessa diregao, tanto mais contraditério quanto ele parte de uma institui- ¢d4o que sempre, historicamente, buscou preservar suas formas de poder € teve pouca tolerdncia e compreensio para com suas figuras proféticas ou carismaticas; s6 muito posteriormente procurando re- cuperar «o doce espirito cristo», que o confronto coetaneo excluiu ou deturpou; foi assim também, mais tarde, em relacae ao Padre Cicero, duramente controlado pela intransigéncia romanocéntrica de Dom Joaquim José Vieira, como, antes, ocorreu, em menor grau, * Ea caso do escorco biegrafico de Ibiapina por Paulino Nogueira, saido na Revista do Instituto do Ceard, de 1888, Anno 11, Tomo Il, 3° timestre, pp. 157 220 (Fortaleza: Typ. Economical * No caso, é inegével que se trata de /biapina, um apéstoio do Nordeste, do pesquisador paraibano, Celso Mariz, publicado por Uniie Editora, erm Joao Pessoa, em 1942. Sob certos aspectos, especialmente na compreensio da épo- cae na busca cronologica dos futos que compéern a existéncia do Padre Mestre Ibiapina, é esta uma das obras mais completas. Muito posterionmente, surgiu icabalho mais minucioso ¢ mais amplo ne que tange As fontes ¢ fatos, que € 0 livro do Pe. F, Sadoc de ARAWO: Padre Ibiapina, Peregrino da Caridade, Forta- leza: Grafica Tribuna do Ceard, 1995. 83 Revista do Instinita do Ceard - 1998 mas de forma incisiva, com relagao ao Padre Ibiapina da parte de Dom Luis Anténio dos Santos, primeiro Bispo do Cear4’. Fomego dois exemplos simples desses fatos. O primeiro, eu o respigo em Dom José Tupinamb4 da Frota, bispo de Sobral no Ceara, que, nfo obstante demonstrar clara simpatia por Ibiapina e dedicar quase trés dezenas de paginas sobre sua vida e suas missdes na regio norte do Estado, faz este comentario, bem integrado ao espirito institucional dominante a época e cuja forte marca perdura ainda hoje: Por ocasidio das Missdes fundou o grande Missiondrio uma associagéo de “beatas”, que se revestiam de uma especie de habito religioso, com um grande véo au lencol branco na cabega, e residiam nas proprias casas {de Caridade}, Nesse ano (1862) veio a Sobral 0 1% Bispo do Ceara, D. Luis Antonio dos Sanios, que nao aprovou a devogdo do tal habito, como se vé no Provimento deixado no Livro do Tombo da Freguesia...f Assinale-se, no texto do bispo- historiador, o termo -associagao- e as aspas sobre beatas, recursos que demarcam a distingao face & ordem religiosa canénica € 4s Sreiras oficialmente aceitas pela instituicio. O outro exemplo parece-me ainda mais expressivo. Eu o tomo de Irineu Pinheiro, historiador do Cariri. Em 2 de fevereiro de 1865, © Padre Ibiapina inaugura a Casa de Caridade de Missao Velha, a primeira do sul da Provincia, o Cariri cearense ou Cariri Novo como. era chamado entao, no inicio de suas missées nessa regiao. Em 1869, ele intensifica ¢e forma impressionante sua atividade aposté- lica ou reevangelizadora, de modo que de margo a junho, dentre outras obras, ele constréi as Casas de Caridade de Crato, de Barbalha e de Milagres. Pelos dados de sua biografia atribulacia e da energia realista e pratica com que investiu seu projeto missionario sertanejo, 7 A provincia do Ceara, como a do Rio Grande do None ¢ a da Paraiba, pertencia a diocese de Pernambuco, de que se autonomiza com a criacao do seu proprio bispado e respectiva diocese em 1853; Dom Lufs a assume 1861 € af permane- ce até 1879. A sede fica vacante até a vinda do segundo bispo, Dom Joaquim José Vieira (1884-1912). © Cf. sua Hisiéria de Sobral, 2 ed., Fortaleza: Edit, Henriqueta Galeno, 1974, p. 256. As expressdes dle esclarecimento entre colchetes, na citagao, so minh: 84 Pe. Ibiapina: figura matricial do Catolicismo sertanjo no Nordeste do século XIX nao é dificil imaginar 0 empenho e a esperanga que depositou nessas realizac6es, que possuiam claro sentido de valorizagao das camadas subalternas, de igual modo, nao ha dificuldade em supor as incompreens6es, conflitos e invejas que, por certo, despertava a autonomia dessa ago itinerante e relativamente fora dos quadros institucionais. Registre-se, paralelarnente, o fato que, a 24 de janeiro de 1871, D. Lufs Ant6nio dos Santos mandara fechar a igreja de S. Vicente, no Crato, em virtude de terem alguns leigos, 4 revelia do vigirio, presidido a novenas dentro da capela, acompanhadas de misicas e cnticos. Registre-se ainda que, no ano seguinte (1872), no dia 11 de abril, chegava a Juazeiro, no Cariri?, como capelo, o Padre Cicero Romao Batista, que também se tornaria mais tarde figura de contradigdes face a uma hierarquia romanizada e ciosa de sua autoridade. Pois bem, no segundo semestre deste ano, em do- cumento enderegado aos irm4os, beatos e irmias das Casas de Cari- dade do Cariri Nove (Missio Velha, Crato, Barbalha ¢ Milagres), advertiu o Padre Ibiapina ter passado ao Bispo do Ceara, o mesmo > Importa assinalar que, neste mesmo ano, circula também ai Antnio Vicente Mendes Maciel, o futuro Conselheiro, que também j ouvira suas pregacdes em Sobral. Nao € dificil supor o enorme influx que a agio missionaria do Padre piapina teve sobre o espitito desses dois lideres religiosos (Conselheiro e Cicero), que ocuparto 0 cendtio ulterior dos sertbes nordestinos. Neitan MACEDO afirma explicitamente essa filiagao espiritual, quando, ao comentar uma decla- ragio de Floro Bartolomeu acerca das praticas dos penitentes do Cariri que envolvism povo e sacerdotes, ele sustenta: -Faziam, @ certo, 0 gue antes ja fizera o Padre-Mesire José Antonio Maria Ibiapina, cujas prédicas e cilicios, no século XIX, tanta influéncia exerceriam sobre reverendos ¢ beatos do serido, Seria 0 Padre-Mestre imitado, no apenas por sacerdotes, como Félix de Moura ¢ Félix Arnaud, mas pelo proprio Padre Cicero, como o fora antes, e de maneira completa, por Antinio Vicente Mendes Maciel, 0 Conseletro. A poniténcia, nos sert6es, era uma heranga de Ibiapina, cwjo exemplo encalga, permanentemen- le, @ figura sombria do Conselbeiro, Quanto mais nos debrugamos sobre essa bistGria do misticismo sertancjo, mais assinalamos pontos de contato, mais seme- Ibancas descobrimos, entre o rude beaio de Canudos e o Veneravel Padre-Mestre dos Sert6es, AntGnio Vicente Maciel, (..), 0 bomem de Canudos 6, em vida, uma sombra, um reflexo, uma imitacdo de ibiapina. (...) Os mesmos tragos de iden- tidade, na agéo apostilica, caracterizariam o beato e o sacerdote pregador. Re- corda, a propésito, José Calasans que 0 Conselbeiro conduzia consigo, sempre, as imagens do Crucificado ¢ de Nossa Senhora, e as daua a beijar, aos iis, reco- Ihendo esmolas. O beija das imagens era, também, ato comum nas misses de 85, Revista do Instituto do Ceard - 1998 D. Luis Anténio, a diregio das referidas Casas. Tal documento, car- regado de significagao, termina nestes termos que lembram vaga- mente uma certa Epistola aos Gdlatas: «Irmdéios, eu ndo procuro bonras de instituidor, quero que se beneficie a humanidade desvali- da, como 6 a orfandade, principalmente na minba terra; portanio sejamos todos felizes e eu sou também. Adeus, bom povo do Cariri Novo, eu vos abraco sem excegdo porque de todos vds recebt testemu- nbos de amor esimpatia, que bem se conhecia que vosso coragdo era meu, como a meu era e é vosso. (.. Jadeus gentes todas dessa terra de onde sou retirado por altos juizos de Deus, para que sofra 0 coracao que gozou as ternuras do amor da patria e as doces consolacées da amizade. Betjo este papel e nele fecho meu coragdo para ser visto nestas poucas palavras pelo bom povo do Cariri Novo, Padre Ibiapina. Cravata, 16 de setembro de 1872.»¥ Mas retomo o meu comentario sobre a construgao histérica da imagem do Padre Ibiapina, que se depreende da literatura a seu respeito. Ora, como © que acima ficou dito pode insinuar algo que nao pretendi afirmar ou ocultar, apresso-me a completa-lo, subli- Ibiapina. (.) Da mesma forma, ainda, que o Padre-Mestre, 0 Consetheiro man- dava queimar, publicamente, monies de xales, vestidos, saias, chapéus, sapatos de tranga e ouiros atavios da moda naquele tempo. A primeira informagdo de que setem noticia, alias, sobre a sua estranha e fascinante figura, foi publicada, @ 27 de junbo de 1876, no Didrio da Babia, que o descreve como “quase uma miimia® Obrigando~ afirma o mesma jornal— as mulberes a conar 9 cabela e 4 queimar xales e botinas como objetos de tuxo. (...) A mesma temosia, a mesma irredutibilidade, os mesmos habitos e maneiras de ser dos seus dois conterraneos: José Maria Anténio Ibiapina e Cicero Roméo Batista.» (Cf.: Flore Bartatomeu. O cauditho dos beatos e cangaceiros. Rio de Janeiro: Agéncia Jornaiistica Image, 1970, pp. 44-40], Desejo fazer um reparo a um ponto em que o autor exagera quanto & influéncia do Padre Ibiapina - quando afirma ser a peniténcia nos series uma heranca sua: nao ha suficiente suporte histérieo para tal assertive; pelo contrario, existem bastantes evidéncias de ser essa pratica antiga na Euro- pa ¢ introduzida entre n6s em tempo bem anterior ao Padre [hiapina [Cf., por exemplo, 9 estudo do Abbé BOTLEAU: Histoire des Flagelianis. ie bon et le mauvais usage de la Flagellation parmi les chrétiens — 1701. Reedigao Montbonnot-St. Martin: Jerome Millon, 1986]. ‘© CE: PINHEIRO, Irineu: Efemérides do Cariri. Fortaleza: Imprensa Universitaria do Ceara, 1963; pp. 156-157. 86 Pe, Ibiapina: figura matricial do Catolicismo sertenejo no Nordeste do século XIX nhando a importincia do feliz rumo que as pesquisas histéricas sobre o tema tém tomado, sobretudo a partir da colaboragao trazida pelos trabalhos recentes de Eduardo Hoomaert, seus prdprios estu- dos ou aqueles que coordenou. Refiro-me em particular ao esforgo critico que durante quase duas décadas ele desenvolveu para reconstituir preciosa documentagao original € recompor fontes bi- bliogrficas sobre © Padre € as Casas de Caridade, agora disponivel em livro"!. Completa esse trabalho o Simpdsio que E. Hoornaert dirigiu no centendrio da morte de Ibiapina (1983), no quadro dos trabalhos da Comissdo de Estudos de Histéria da Igreja na América Latina - CEHILA, e que foi editado no ano seguinte com a coopera- cao de Georgette Desrochers € com colaboragdes de Dom José Maria Pires, Joao Alfredo de S. Montenegro, José Francisco Pinheiro, Vinicius Barros Leal, Eduardo Hoornaert, Frei Hugo Fragoso, Luitgarde Oli- veira C. Barros e José Comblin.” Nao pretendo obviamente elaborar aqui uma apreciagac des- ses trabaihos mais recentes. Quero apenas ressaltar que, sem desco- nhecer as colaboragdes dos demais, merecem especial referéncia as observacdes contidas nos estudos de Comblin ¢ Hugo Fragoso, pois ambos buscam apreender, a partir da documentacio disponivel, 0 sentido missionario de Ibiapina, que se sealiza menos pelo discurso e mais pela atitude pritica e concreta para com o povo que evangeliza, assim como as peculiaridades da cultura local que se exprime nas formas de vida religiosa das beatas e beatos do sertao nordestino. Mas € particularmente Eduardo Hoornaert quem rasireia, com agu- do faro e ousadia, os percursos indigenas da area geografica recoberta por sua aco, bem como o sentido de brasilidade regional que ela tealiza - face ao desenho institucional romanizado de velha inspira- ¢4o trideniina da Igreja hierarquica de sua €poca -, onde se desta- cam: a luta contra a fome e a doenga mediante a construgdo de "Chr Crénica das Casas de Caridade, Pundadas pelo Padre Ibiapina. Edigao introdugio de Eduardo Hoomaer:. Transcrico do manuscrito notas de lidefonso Silveira. Sao Paulo: Edigdes Loyola, 1981, “CE: Padre Ibiapina e @ Igreja dos Pobres, Sac Paulo: Edigdes Paulinas, 1984 Canexos. documentos originais) 87 Revista do Instituin do Ceard - 1998. abrigos, de escolas, de agudes, de cemitérios, de hospitais, e a insisténcia no trabalho ¢ na dignidade de todos, a luta contra o desamparo da mulher e da orfandade, o combate contra a desagre- gacio sociopolitica das areas sertanejas, a revalorizagao da heranca indigena, etc, Assinalo, porém, que hd alguns descuidos nos bali- zamentos cronoldgicos basicos que se acham nos textos de Eduardo Hoomaent, tanto mais estranho quanto mesmo uma simples consul- ta ao livro de Celso Mariz ou ao célebre Diccionario do Barao de Studart' serviria para bem registra-los. Outro reparo que nio deve ficar sem assinalar reside no fato que nenhum desses estudos mais recentes aproveitou as pistas aber- tas pelos comentarios que faz Gilberto Freyre sobre a significagdo e oalcance sociocultural do desempenho de Ibiapina, apoiando-se na leitura da obra de Celso Mariz. De fato, na Introducdo» da segunda edicao de seu Sobrados e Mocambos, G. Freyre'* destaca alguns aspectos da obra e da personalidade de Ibiapina, que ele considera como sendo -talvez, a maior figura da Igreja no Brasil, do ponto de vista do Catolicismo ou do Cristianismo social. Assim, é possivel por em destaque, além de seu culto a Maria e de outras caracteristicas da devocao tradicional, seu senso ecolégico-sertanejo ¢ sua conscién- cia de nacionalidade regional, seu maternalismo, a relativa demo- cracia ou igualitarismo das Casas de Caridade em contraste com o autoritarismo dominante, sua concepeao pedagégica simultanea- mente intelectual e pratica (educagto cloméstica, agricola ¢ artesanal), 0 trabalho com os pobres evitando confrontar a incompreensio de Bispos e de potentados, sua aguda percep¢ao da desintegragio do sistema senhorial, seu anti-escravismo (nas Casas $6 havia trabalha- dores livres e até as pensionistas realizavam as mesmas tarefas que os demais), a sua confianga nas mulheres e na sua valorizagao, suas convicgdes politicas liberais, etc. © Cf Diccionario Bio-Bibliographico Cearense. Reedicio da Universidade Fede- ral do Ceara, Foraleza, 1980 [fac-similada a partir da edigdo original em 3 vols.: Fortaleza, Typo-Lithographia a Vapor, 1910, 1913 e 1915] “ Cf Rio de Janeire: José Olympio, 1951, 1? vol., pp.; 87-95. 88 Pe. Ibiapina: figura matricial do Catolicismo sertanejo no Noxdeste do século XIX Enfim, a longa vida ativa ¢ a marcante obra do Padre Ibiapina (1806-1883) esta a exigir ainda muito trabalho de pesquisa e um. esforgo de interpretacao mais abrangente, que, sobretudo, recons- trua amplamente as dimensdes da realidade em que ele viveu ¢ atuou, ¢ que recobre, cronologicamente, quase todo o século XIX assim Como possui implicagdes em escala nacional. Por outro lado, é mister nao desconsiderar as marcas psicologicas que experiéncias dolorosas de sua adolescéncia e juventude por certo deixaram em sua personalidade, e que imprimiram rumos em suas decisdes pes- soais, O trabalho de Celso Mariz, que continua a ser um dos melho- res esforgos nesses dois planos, comega dizendo honestamente que Ibiapina «merecia um olhar mais competente», assim como aponta as lacunas que nao conseguiu: preencher e o caminho da tarefa que resta por realizar. NOTA: Esta versdo preliminar de um estudo em elaboracdo resumiu-se a0 espirito de uma comunicagio para o Grupo de Trabalho-20 -Reli- gio e Sociedade», do XX Encontro Anual da ASSOCIACAO NACIONAL DE PESQUISA E POS-GRADUAGAO EM CIENCIAS SOCIAIS. Faltam par- tes substanciais 20 texto, ou seja, maior desdobramento do exame da vida e da obra do Pe. Ibiapina, sobremido no que tange & sua influén- cia sobre a estirpe de Conselheiros que vieram apés - hipdtese central deste trabalho. Bibliografia ALMEIDA, José Américo de; 1980. A Panatba e seus Problemas, 3. ed. Introdugao de José Hondrio Rodrigues. Jodo Pessoa: Secretaria de Educagao e Cultura do Estado. ANNAES DO PARLAMENTO BRASILEIRO - CAMARA DOS SRS. DEPU- TADOS. 1879. Primeiro Anno da Terceira Legislatura - Sessdes de 1834 a 1837, ito tomos, coligidos por Antonio Pereira Pinto. Rio de Janeiro: Typographia de H. J. Pinto. ARAUJO, Pe. F. Sadoc de. 1995.Padre Ibiapina, Peregrino da Carida- de. Fortaleza: Grafica Tribuna do Ceara. 89 Revista do Instituto do Cearé - 1998 BEVILACQUA, Clovis, 1927. Histéria da Faculdade de Direito do Rect- fe. Rio de Janeiro: Livraria Francisco Alves. BRIGIDO, Jofo. 1919. Ceard: Homens e Facios. Rio de Janeiro: Typographia Besnard Fréres. CARVALHO, Gilberto Vilar: 1983 «Padre Ibiapina, um homem que vi- yeu € morren pelo seu povo-, REB, marco, CASCUDO, Luis da Camara. 1940. sPadre Mestre Ibiapina no Rio Gran- de do Norte», jornal A Republica, Natal, 9 de Junho. 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Muitos anos de- pois, Joo Melquiades Ferreira da Silva, poeta popular nascido em Bananeitas (PB), em 7 de Julho de 1869 ¢ falecido em Joao Pessoa aos 10 de Dezembro de 1933, fez a narrativa desse evento num folheto de Cordei, que transcrevo a seguir. Ele é 0 autor, entre muitos outros folhetos, de uma das mais conhecidas versdes do romance «OQ Pavio Misterioso», plagiado da histéria original escrito por José Camelo. G1. Ninguér se julgue infeliz, Nem desanime da sorte, Viu-se no Brejo da Areia Da Paraiba do Norte, Um réu escapar da forca Ja sentenciado & morte, 03. Tinba no Brejo de Areia Um rapaz que enjeitado Um bomem achou-o no campo Morrendo desamparado, Que nem sequer 0 umbigo Quem deixou-o tinba cortado. 05. Enido Francisco José Era um rapaz sem defeito, Trabathador e honrado Andava sempre direito Nao tinha fortuna alguma Mas era satisfeiio. 92 62. Quando o padre Ibiapina Ainda era doutor Que depois disso ordenou-se E foi grande pregador Se foi bom aduogado Ainda foi methor pastor. 04. A esposa desse bomem Nunca um filbo concebes Criou Francisco José Adotou-o por filbo seu Tanto que um sitio que tinha Deixou-the quando morrett 06. O comendador Veloso Alma negra e nodoada, Senbor de grande fortuna, Porque 0 cardter dele Salta um verso aquit Pensava menos que nada. Pe, Ibiapina: figura mauicia! de Catolicismo sertanejo no Nordeste do século XTX 07. Esse monstro era vitivo Finda uma filha somente, E namorava-se dela Achou mais convenionta, Casd-la com rapaz pobre Que gozava facilmente. 09. Porém 0 cdiculo do mau E mutto raro acertar O maldose tert consigo A testemunba ocular Faga ele o que quiser Bla tem que revelar. 11. O.comendador ndo sabe Que eu fut um enyeitado [falta um verso aquil Meu futuro 6 0 trabatho Endo pretendo casar-me Com filha de potentado, 13, Disse-the 0 comendador Rapa disso tudo eu sei Minha filba ndo tem mae A tempos enviuvei Estou caindo na tdade Ndo set quando morverei. 15. O assassino da honra Teinto fez ¢ seduzin Com as formas do deménio Omaserdvel ilucin Agora vejam onde fot Que 0 inocente cain 17. Francisco José entao Tomou conta do que bavia Assets horas da manbai Com os escravos saia, Mandavam levar-the almogo Fle no campo comia. 19. Sua muther costumava Experd-lo todo 0 dta E retirar-tbe dos ombros 08. Pensava ele consigo Nido hd cdlcuto tao sexteiro Dou-a a um rapaz branco ¢ pobre Que ndo falta aventureiro Que vefa ¢ faca que nao Com ambicdo no dinbeiro, 10, For ao Francisco José Com as armas do traidor E the disse: vocé é Honesto ¢ trabaibador Quer casar com minba filba? Disse-the ele nao senbor. 12. O senbor procure um desses A quem a fortuna falta um verso aquil Prefiro uma’ moga pobre Sé desejo encontrar nela Um cardter limpo e nobre. 14, Nao quero dé-la a um Doutor Que ndosatba trabaibar Porque faltando-lbe carta Ele ndo pode passar Se tiver famitia grande Pede esmoia ou vai firrtar. 16, Casou Francisco José Achou sua esposa pura Muito rica de dinbeiro Gado, terra, escravatura, Carneiros, caualos e burros Tinba com grande fartura. 48. Quando ele voltava a tarde Vinba sempre carregado Com feijao, mile e batara Quando bavia ragado Sempre, trazia nos ombros im cesto grande ¢ pesado. 26. Um dia numa hora dessa Francisco José chegou Nao encontrando a muiher 93

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