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CAPITULO 2 REALISMO E IDEOLOGIA: UMA INTRODUGAO A SEMIOTICA E AO CUBISMO Francis Frascina Introdugéo Levantando questées Entre 0 outono de 1912 e a primavera de 1913, Pablo Picasso e Georges Braque produzi- ram uma série de obras que levantaram varias perguntas sobre o estatuto do objeto de arte. Algumas delas, como La Suze e Natureza-morta “Au Bon Marché” (ilustragbes 77 e 78), sio feitas de materiais “usados”, como jornal, rétulos e cartao. Também sao utilizadas palavras, letras e tipografia. Como essas obras ndo podiam ser incluidas na categoria d objetos de arte convencionais, foi cunhada uma “nova” categoria: papiers collés, “ papéi colados”, ou “colagens”. Em termos artisticos convencionais, esses materiais eram itens sem valor, do tipo asso- ciado com freqiiéncia a “cultura de massa”. As referéncias 4 “cultura de massa” na arte de vanguarda nao eram novas. No século XIX, de Courbet e Manet em diante, os artistas haviam se envolvido com uma ampla gama de fontes, especialmente na medida em que tinham uma divida para com as nogées baudelairianas de “modernidade”; no entanto, eles trabalhavam principalmente nos media da arte “elevada”, como o dleo sobre tela Embora muitas das pinturas cubistas de Picasso e Braque dessa época inclufssem referé: cias & “cultura de massa” contemporanea, e estivessem, portanto, dentro da tradicao daquele envolvimento, suas colagens introduziram uma nova dimensao para 0 uso de materiais cotidianos comuns, como jomnais e antincios, normalmente estranhos a “arte ele- vada". Os critérios aceitos para os media artisticos estavam sendo questionados quando nao revistos. O mesmo se dava, ao que parecia, com as nocGes convencionais de “repre- sentagao”. Se considerarmos o género ostensivo de muitas das colagens, a natureza-morta, a relagao entre o objeto de “arte” material e o observador é diferente da estabelecida pela natureza-morta tradicional, digamos, por A arraia de Chardin (ilustragao 79). A “forma” do objeto de arte é diferente: elementos reais colados substituem o ilusionismo do éleo sobre tela. No Chardin, é dada muita prioridade a semelhanca dos objetos representados —uma jarra, um gato, uma arraia. A pintura oferece um paradigma de representaga0 no qual a imagem poderia ser lida por espectadores acostumados as convengdes associadas semelhanga com “coisas” do mundo. Uma imagem com alto grau de semelhanga, ou identidade, com 0 mundo das “coisas” é sempre referida como icénica. Exemplos do ico- nico em outros sistemas de representagao sao a linha reta num mapa, significando “estra- da reta” em virtude de uma propriedade comum, ou linha curva num sinal de transito, significando “curva na estrada”. ‘As formas e marcas pintadas de Chardin significa objetos especificos. Mas, assim como uma “linha curva” num sinal de transito significa ndo s6 “curva na estrada”, mas também “potencialmente perigosa”, da mesma forma A arraia transmite um significado particular dentro de um conjunto de convenc6es. Tradicionalmente, muitas pinturas de natureza-morta eram composicées simbélicas destinadas a significar vanitas (a vaidade das 88 REALISMO E IDEOLOGIA; UMA INTRODUGAO A SEMIOTICA E AO CUBISMO 78. Pablo Picasso, Nature morte “Au Bon Marché” (Natureza-morta “Au Bon Marché”), primavera de 1913, dleo papel colado sobre cartao, 24 x 36 cm. Colegao Ludwig, Aachen, © Dacs, 1993. posses ¢ a fragilidade da vida humana). Isso costumava ser indicado por um cranio como simbolo ligado por convencao a “morte”, um memento mori nos lembrando que havemos de morrer. Aqui, um sentido simbélico similar é significado pela arraia destri- pada com seu sorriso zombeteiro. Hé também uma significacao sexual. As gonadas da arraia se estendem por quase todo o comprimento do tronco - tal é a explicitude de seus 6rgdos sexuais, que ela era muitas vezes exposta nos fundos das peixarias por motivo de decoro. A direita da composigéio hd marcas que significam um tipo particular de jarra, que é também um simbolo tradicional do titero (quando quebrada ou rachada, significava perda da virgindade), e a esquerda é representado um gato, com seu pélo erigado como simbolo de licenciosidade. A relacao entre esses elementos numa composicao ilusionisti- ca evoca vanitas e significa a suposta vaidade da paixao venal; essas idéias tém raizes no simbolismo secular holandés e flamengo e nos ideais e valores burgueses.' E claro, por- tanto, que pinturas como A arraia podem ser interpretadas em termos icOnicos (“jarra”, “gato”, “arraia”) e simbolicos (vanitas, desejo sexual). Na verdade, hd uma relago inten- sa entre as duas interpretagoes. Consideremos uma obra do mesmo género, desta vez. de um artista modernista com © qual 0 cubismo de Picasso & associado com freqiiéncia. A primeira vista, Natureza- morta com molde de gesso de Cupido de Cézanne (ilustracao 80) parece estar preocupada com asemelhanca, com 0 icdnico, do mesmo modo que a pintura de Chardin. Todavia, A arraia tem um grau superior de “acabamento” pictérico e um ponto de vista perspectivo cen- tralizado — qualidades que, para muitos modernistas, significavam a abordagem acadé- mica. A pintura de Cézanne é caracterizada por paradoxos de ponto de vista e escala Ver E. Snoep-Reitsma, “Chardin and the bourgeois ideals of his time”. INTRODUGAO 89 79. Jean-Baptiste-Siméon Chardin, La Raie (A arraia), 1728, dleo sobre tela, 114 x 146 om. Musée du Louvre, Paris. Foto: Réunion des Musées Nationaux Documentation Photographique, pictérica: consideremos o efeito da escala similar aplicada tanto ao objeto redondo no “fando” quanto as macas e cebolas sobre a mesa, que sustenta a figura de gesso. Esses objetos representados também podem ser interpretados simbolicamente: 0 molde de gesso de Amour do escultor seiscentista Puget, por exemplo, como um simbolo do “deus do amor”. O historiador da arte Meyer Schapiro mostrou, também, que na poesia e nas imagens cléssicas as magas eram associadas a uma oferenda de amor e eram usadas como metéfora para os seios femininos. No Cézanne “as magas sao agrupadas com cebo: las — formas e sabores contrastados, que sugerem a polaridade dos sexos” ("The apples of Cézanne”, p. 11), ‘Apesar das significativas diferengas, as pinturas de Chardin e de Cézanne adotam um paradigma de semelhanca e mantém uma Telacao entre 0 ic6nico e 0 simbdlico que nao, estd presente nas colagens cubistas de Picasso. Se as primeiras s4o consideradas obras exemplares, fica claro por que muitos questionaram se as colagens realmente podiam ser vistas como “arte”. Todavia, ha um modo de abordar a representacao que pode langar alguma luz sobre todas essas obras. Ao examinar essa abordagem, que considera o modo como o significado é transmitido nas imagens e 0 papel do observador nesse proceso, teremos condigao de avaliar se a colagem era uma espécie de critica do tipo de objeto de “arte” representado pelo Cézanne ou o Chardin. Jé comecamos a usar a terminologia dessa abordagem, que se baseia na relacdo entre signo, significante e significado. 80. Paul Cézanne, Nature morts avec I’Amour en ptre (Natureza- morta com molde de gesso de Cup), c. 1895, papel montado sobre painel, 70x57 cm. Courtauld Institute Galleries, Londres, 90 REALISMO F IDEOLOGIA: UMA INTRODUCAO A SEMIGTICA E AO CUBISMO. Um significante visual pode ser tanto o proprio objeto material quanto as marcas ¢ for- mas materiais sobre sua superficie. No Chardin, so a propria pintura a dleo e as marcas Pintadas que constituem as representacées dos objetos e coisas individuais, bem como a relaco entre essas representagdes, tais como entre a jarra, o gato e a arraia. Nos Picassos, Bio sao 86 os elementos individuais, 0 antincio recortado, 0 jornal e as linhas a lapis gsaueméticas, mas também a relacéo entre esses elementos, que constituem a colagem inteira, O significado € 0 sentido, o qual é substituido pelo significante. No Chardin 0 significado € tanto ic6nico (tinta e formas significando um tipo de “jarra”) como simbéli. co (“jarra” significando titero). Portanto 0 significado é (i) “uma reuniao de objetos”, (ii) Seu simbolismo individual e— mais importante ~ (ii) 0 efeito de sua combinacao, o senti- do moral e social especifico de todo o quadro. Embora, para efeito de andlise, possamos fazer uma distingao entre significante e significado, na pratica eles atuam juntos, sao materialmente inseparaveis. Juntos eles constituem o signo como um todo, 0 qual tem um sentido particular para um publico ou uma comunidade. Na pintura de Chardin enquar- fo signo, uma mensagem moral simbélica é lida ao mesmo tempo que a semelhanga icanica, como se a mensagem moral fosse to “natural” quanto os objetos representadlos, Isso levanta a questao de seu priblico, da classe e do género de sua comunidade de “leitores”, ues'ao que também é relevante para as obras de Cézanne e de Picasso enquanto “signos A andlise em termos de signos, significantes e significados é conhecida como eemi ‘ica, Essa forma de anélise foi aplicada 3 linguagem e &s obras literdrias, bem como a repre- INTRODUGAO 91 sentagGes visuais tais como pinturas, filmes e antincios. Por meio da semistica, tedricos de diferentes dreas da cultura tiveram (e ainda tém) muito a dizer de importante uns aos outros. Ao explorar a semistica e aquilatar seu potencial para “decodificar” as obras cubistas, consideraremos se a representacao visual em geral pode ser analisada de modo Aitil como um sistema de cédigos, e avaliaremos a espécie de valores sociais e culturais, codificados nesses sistemas de significagao, Leituras introdutérias de duas colagens cubistas La Suze Os materiais usados nessa colagem sao claramente identificaveis. No centro esta 0 rétu- lo de uma garrafa do aperitivo comum Suze; embaixo a esquerda e a direita ¢ usado 0 mesmo papel de parede, como em Violdo, pauta de muisica e copo (ilustragao 81); ha varias pecas recortadas de papel colorido, notadamente a oval azul no meio e as colunas impres- sas recortadas de jornal. Todos esses elementos foram colados a uma base de papel com a adigao de desenho a carvao e tinta guache. 81, Pablo Picasso, Guitare, feuille de musique et verre (Viola, pauta de musica e copo), outono de 1912, papéis colados, guache carvao sobre papel, 48x 37 cm. Marion Koogler-McNay Art ‘Museum; legado de Marion Koogler-McNay 1950.12. Foto: Michael Smith. © DAcs, 1993. 92 REALISMO E IDEOLOGIA: UMA INTRODUGAO A SEMIOTICA E AO CUBISMO Nao podemos recorrer a uma semelhanga com um “copo” ou com uma “garrafa”, os Objetos mencionados no titulo. Devemos sim inferir “garrafa” ao identificar um rotulo ver- dadeiro como parte do objeto, o qual é construido pictoricamente pela forma branca adel- gagada, quase triangular, a curva do topo do gargalo da garrafa e sua “rolha”. Podemos inferir uma garrafa inteira de uma contigiiidade entre suas partes representadas. Também © “copo”, a esquerda, é muito esquematico. Essas formas pictoricas (que S40 significan- tes) e 0 uso de jornal e do carvao (também significantes) relacionam o signo pictorico para ‘um copo ao objeto real por elos da convencao cubista, estabelecida nas pinturas cubistas. Uma vez que “identificamos” um copo, podemos seguir adiante e inferir que a oval azul um tampo de mesa redondo em perspectiva eliptica Mas ¢ 0 jornal? Em trés lugares ele é usado como parte do signo para “copo” (sua parte superior) e como parte do signo para “garrafa” (seu formato canelado), mas no estante ele é usado cortado em colunas. Aqui, ele parece significar coisas diferentes: tal- vez uma “textura” ¢ um matiz. pictéricos; talvez espaco raso, particularmente onde acrescentado 0 sombreado, ou onde o tipo segue diferentes direcGes; possivelmente uma toalha de mesa na parte debaixo, caindo da beira da “mesa” azul; talvez.a refracao da luz através de um copo, indicada por uma mudanga na direcdo da tipografia. Também pode, € claro, ser literalmente lido — Jer o jornal é uma atividade na qual qualquer espectador um pouco curioso pode se envolver.” Esses extratos so de um jornal especifico, Le Journal, datado de 18 de novembro de 1912 (ilustracao 82). Picasso recortou pedacos da primeira pagina e da pagina dois, todos com referéncias a Guerra Balcanica. Ha reportagens da guerra de Paul Erio, datadas de 12 e 17 de novembro, e de Henri Barbi, datada de 16 de novembro. Varios extratos dessa tiltima so colados ao longo do topo, detalhando 0 avango sérvio para Monastir na Macedénia. Aqui podemos ler sobre os feridos, os movi- mentos de batalha e a ameaca de fome na Adrianépolis sitiada. Na extrema direita, cola- da de cabeca para baixo esta a narrativa de Paul Erio sobre uma devastadora epidemia de célera ~ um dos efeitos das condigdes desumanas da guerra - que havia matado milha- res de soldados turcos © horrivel relato da morte e a resposta autémata dos soldados em marcha é contra- posta na extrema esquerda pela coluna contendo uma reportage muito diferente, cola- dana posigao correta. Ao lado dela, 0 sombreado que significa esquematicamente “copo” esta debaixo de uma curva para sua borda e de um angulo agudo que significa tanto 0 encontro de lado e borda como uma “flecha” que aponta para um subtitulo, “L’ordre du jour” (“A ordem do dia”) a meia altura da coluna. A reportagem é a continuacao de uma iniciada na parte debaixo a direita da primeira pagina de Le Journal. Em contraste com a reportagem de uma batalha furiosa, esta detalha “A Reuniao em Pré-Saint-Gervais con- tra a Guerra’, e ilustra uma multidéo muito diferente, uma manifestagao de “40,000- 50.000 pacifistas”, sindicalistas, trade-unionistas e socialistas, que ocorreu na tarde de 17 de novembro, numa comunidade trabalhadora perto de Belleville, no décimo nono arron- dissement de Patis. Ela descreve os numerosos coros de “abaixo a guerra”, “vida longa A revolugao social” e varios discursos, entre eles um do deputado socialista Sembat, que ter- minou “afirmando que os trabalhadores ndo devem matar ‘pelos capitalistas e fabrican- tes de armas e municdo’ .. eles devem ‘conservar suas forcas e também seus bragos para a grande guerra interna que derrubara o regime capitalista’”. © uso de texto nao termina ai. Embora Picasso pudesse ter escolhido para a “garra- fa” um rétulo de “Bass” ou um de Viewx Marc (um tipo de brandy), como fez em outras obras, nesta ele colocou Suze no centro da colagem. Como o rotulo deixa claro, esse é um * Os historindores da arte comesaram a fazer isso na década de 1960, Ver, por exemplo, a tese de mestrado iné- dita de J. Charlat Murray, Picasso's Use of Newspaper Clippings in his Early Collages e R. Rosenblum, "Picasso and the typography of Cubism’. A discussio a seguir da colagem Suze se baseia num exame detido da propria obra em uma elaboragao de leituras encontrada em P. Daix e J. Rosselet, Picasso: The Cubist Yenrs 1907-16, p. 289; ‘The Open University, A315 Cubism: Picnsso and Braque, pp. 756 (escrito para a equipe do curso por F. Frasck- na); R, Cranshaw, “Notes on Cubism, war and labour”, p. 3;P. Leighten, “Picasso's collages and the threat of war 1912-13", p. 665, e, também dela, Re-Ordering the Universe: Picasso and Anarchism, 1899-1914, pp, 126-7, roi THoroger de Chsrines sur les hignes de Tehataldj Prous — te cou isa Femme? mrss camuen | 92H SITES ROLLS YER Monastir eat serrée de pris par les Sebi el les Gree in Cone | DA BATAILLE S'EST ENGAGEE FURIEUSE |,,‘rer isin WENVOYE SPECIAL DU " JOURNAL” 82. Le Journal, 18 de novembro de 1912, primeira pagina inteira. Bibliothéque Nationale. 94 REALISMO E IDEOLOGIA: UMA INTRODUGAO A SEMIOTICA E AO CUBISMO aperitivo feito da erva genciana, usada com freqiiéncia como tonico e digestivo. Mas ele significa mais que isso. O nome genciana deriva de Géncio, rei ilirio do século I a.C,, que teria descoberto as virtudes da erva. Iliria, centro das Iinguas eslavas, ficava na margem oriental do Adritico, precisamente a area que, na época da colagem de Picasso, consti- tuia a Liga Balcénica (uma alianca de Bulgéria, Sérvia, Grécia e Montenegro que travou a primeira Guerra Balcanica contra a Turquia, de 1912 a 1913). No proceso de selecionar, recortar e combinar pedagos de papel, Picasso alude a questdes politicas e morais con- temporaneas numa forma que sugere 0 costume ou ritual da conversa de bar, referencias e conexdes entendidas por um grupo social particular. O que estou sugerindo é que o significado aqui se dé de modo social. Os artistas, como ‘quaisquer outros individuos, se relacionam e reagem uns aos outros e ao mundo material através de formas de relacionamento social. Essa é a base e a fonte de sua “consciéncia”, sua conscientizagao e seu engajamento ativos com as forcas e relagdes na sociedade, como sao manifestadas nas representagSes — politicas, juridicas, filosGficas, religiosas, literdrias, artis- ticas etc. Os meios de comunicacio e os sistemas visuais ~ as formas de relacionamento = com os quais eles se envolvem, inclusive os visuais (arte, jornais, antincios, livros, rituais etc.), correspondem a formas particulares de organizagao social e s4o necessarios, a existéncia deles. Por exemplo, a propaganda de massa é produto de um sistema econd- mico orientado para o mercado que pode explorar a tecnologia moderna. Os antincios buscam vender produtos e valores alimentando-se de ~ e também estabelecendo — desejos, expectativas e consumismo. Palavras e imagens com freqiiéncia codificam valores pas- sados e presentes para assegurar a manutengao nao s6 do sistema econdmico, mas também dos valores e crengas que estimulam um ptiblico consumidor passive. Esses pressupostos sobre sociedade e significado derivam de Marx e Engels. Eles costumavam descrever “ideologia” como aquelas idéias, valores e crencas sobre a socie- dade e a vida social que nés (erroneamente) tomamos como dados. Algumas vezes eles, trataram a ideologia como uma inversto da realidade das relagdes sociais. Nessa expli- cacio, as desigualdades na distribuico de poder, bens e riqueza na sociedade, entre classes, grupos étnicos e géneros, s4o sustentadas por grupos dominantes as classes diri- gentes. Os grupos dominantes constroem “representacdes” do mundo real (isto é, desctigées que podem ser codificadas na lei, na literatura, assim como nas imagens) que mantém os interesses de seu poder ao fazer essas desigualdades parecer “naturais”. Dois exemplos poderiam ser a tepresentagao da classe trabalhadora como uma turba perigo- sa ou como beneficidrios agradecidos da riqueza e do valor “aristocraticos”; das mulhe- res como objetos sexuais idealizados ou como domésticas maternais. Em ambos 0s casos, 0 poder sobre os outros é investido em herdeiros particulares. Os marxistas afirmam que um proceso como esse é uma “inversdo” da verdade das relagdes sociais: Se em toda ideologia os homens [sic] e suas relagdes aparecem de cabeca para baixo como numa camera obscura, esse fendmeno surge de seu processo de vida histérico da mesma forma como a inversao de objetos na retina surge dos processos da vida (The German Ideology, p. 42) ‘Um modo tradicional de simbolizar uma resisténcia aos efeitos da dominagdo é repre- sentar “o mundo de cabeca para baixo”; simbolizar a ideologia como “falsa consciéncia”, como uma inversao ou refragio da “verdade”. Representar 0 mundo “de cabega para baixo” é também uma estratégia anarquista que Picasso provavelmente conhecia devido a sua familiaridade com grupos anarquistas. Nessa colagem, varios dos recortes de jornal do horror da Guerra Balcanica, vista por muitos a época e desde ent4o como a servigo dos interesses e do poder do capitalismo e do imperialismo, estao invertidos. Essa inversao, como vimos, esté em contraste com a reportagem da manifestacao pacifista colada na posigio correta para leitura e indicada pela “flecha/copo”. Evidentemente, a escolha e 0 uso do jornal por Picasso ndo foram arbitrérios. Nem foi arbitrario 0 uso do rétulo Suze como um significante tanto de “um aperitivo”, com todas as suas conotagdes sociais, como dos “Balcas”, com toda sua significacao sociopolitica. ‘Também importante é 0 fato de que nao s6 as partes da colagem podem atuar como signi- INTRODUGAO 95 ficantes, mas as relagdes particulares entre elas, como no caso da inversao, séo cruciais para um entendimento do que é significado pela obra como um todo. Aqui surgem algumas questées importantes. O modo como “lemos” a colagem de Picasso é nitidamente diferente do modo como “lemos” os exemplos de Chardin e de Cézanne; e 0 que isso nos diz sobre os sistemas de significagéo nos quais eles tra- balharam? La Suze era uma “pega tinica” ou hé outros exemplos que revelam uma complexidade similar de “signos” potenciais e uma relacdo estrutural particular entre eles? A primeira questdo é ampla demais para ser tratada neste capitulo, mas a segun- da pode ser considerada ao olharmos outra colagem, Natureza-morta “Au Bon Marché” (ilustracao 78). Natureza-morta “Au Bon Marché” Podemos ver “signos” cubistas para um copo, & direita, e para uma garrafa, a esquerda, ‘com 0 que parece ser uma caixa com rétulo no centro. Muitos dos outros elementos se referem ao contexto contemporaneo especifico da obra. Um deles é o pequeno recorte de jomal, abaixo da “garrafa”, que é de um despacho de Constantinopla, relatando o assas- sinato do ministro Nazim Pasha em 23 de janeiro de 1913 outra referéncia & Guerra Balcanica. Um segundo exemplo é o rétulo colocado no centro, da loja de departamentos ‘Au Bon Marché, em Paris, que significa nao s6 a mercadoria contemporanea de uma ins tuicdo moderna como essa, mas serve também para fazer “brincadeiras” com a relagio entre perceptor e percebido, e com as nogies de “real” e “ilusio”. O rétulo real é posi- cionado ilusionisticamente de modo a parecer recuar como a tampa de uma caixa, com uma frente padronizada e um lado na sombra. O mesmo papel de parede é usado, con- tudo, em toda a obra para sugerir um plano pictérico vertical. Isso contradiz a ilusao ao instar 0 observador a ler 0 rétulo como mais um plano vertical. Acima do rétulo Au Bon ‘Marché ha um extrato da pagina nove de Le Journal, datado de 25 de janeiro de 1913 (ilus- tragdo 83). Ele esté recortado de modo que partes selecionadas de trés antincios diferen- tes sao combinadas para formar uma relacao nova e particular na colagem. A primeira é canto superior esquerdo de um amiincio ilustrado para uma venda de lingerie na Sama- ritaine, outra loja de departamentos de Paris. Acima dela esta a parte inferior direita de um antincio de uma maquina de escrever, a “Torpedo”, anunciada em Le Journal como uma “MAQUINA DE ESCREVER MODERNA”. E & direita dela, 0 lado esquerdo de um antincio de “massaceM”, “médica” e “estética” Além de combinar esses antincios, Picasso altera alguns. Ele pintou sobre partes do antincio de venda de lingerie, deixando apenas o torso superior da mulher, 0 preco “2 francs 85 centimes” e as letras SAMA. Essas tiltimas significam parte da palavra SAMA[RITAI- NE], que o observador deve completar. Picasso costumava usar apelidos; por exemplo, “Ma jolie” (“minha linda”, para a mulher com quem ele vivia) esta inscrito em muitas de stias obras dessa época. Serd SAMA também um apelido para uma pessoa ou para a loja de departamentos, ou algum trocadilho particular? Bem no topo ele cortou 0 “A” de “agents”, de modo que as letras agora dizem “gents”. “Gent” significa “tribo” ou “raga”; nessa época ainda era tusada com humor para referéncia a mulheres, segundo a maneira de La Fon- taine, o escritor seiscentista de fabulas e versos (com freqiiéncia licenciosos) ~ “ gent fémi- nine” significa “o belo sexo”. No contexto das outras palavras e da imagem da mulher anunciando lingerie, as palavras “gents sériewx demandés Partout” poderiam ser lidas como “precisa-se de mulheres sérias (0 “belo sexo”) em todos os lugares”. Se assim fosse, nao teria sido a primeira vez que Picasso esperaria que os observadores participassem de um jogo de palavras, para completar “piadas” sexuiais ou para perceber insinuagdes em suas obras. ‘Acolagem envolve o observador ativamente de outras maneiras. Abaixo do rétulo Au Bon Marché, uma mancha de tinta ripolin parece ser um hiato branco, assim como faz 0 “copo” a direita com seu “detalhamento” goivado. Mas, como 0 “copo”, é uma forma tex- turizada positiva, fato que contradiz a expectativa visual de ver o branco como um hiato ‘ou um “buraco” ilusionistico, e que contradiz. também as palavras “TROU" (buraco) ¢ “ICI” (aqui, em tipografia preta). Ademais, 0 efeito ilusionistico do branco sobre o preto (as 96 REALISMO E IDEOLOGIA: UMA INTRODUGAO A SEMIOTICA E AO CUBISMO TORPEDO cauoss Lundi 27 Janvier ithe, PUES DARREL aca BYENOTIOME 83. Le Journal, 25 de janeiro de 1913, pagina 9 (metade superior da pagina). Bibliothéque Nationale. letras sama) ou do preto sobre o branco (“TROU”, “icr”) é um elemento da “linguagem” da tipografia de jornal ~ esse é outro caso de mistura de signos da “cultura de massa” com aqueles da “arte elevada”. Au Bon Marché: “Lendo” o cubismo As colagens de Picasso brincam com as convengées existentes e convidam a especulacao eao debate. Hé um significado particular no uso que Picasso faz de palavras e textos; serd uma referéncia mais provavel que outra? Apenas lemos as palavras enfatizadas num sen- tido literal ou é apropriado recorrer seja ao contexto original da reportagem de jornal, do antincio ou do rétulo, seja ao da nova relacdo estrutural entre partes da colagem, o novo “texto”? O contexto original é deslocado, transformado, atacado na feitura da colagem; a nova relacdo produz varios significados em termos tanto das convengées da “arte ele- vada” como das convencdes das fontes originais — a mercadoria “produzida em massa” moderna. Uma leitura da combinaco inovadora de elementos em Au Bon Marché é que eles significam a poderosa socializacio, orientada para o consumo, da loja de departamentos. Addécada seguinte a 1900 havia presenciado importantes inovacdes, o metr6, os telefones, a energia elétrica, a caixa registradora e a escada rolante — que facilitaram as compras nas lojas de departamentos. A gama de produtos era ampla, da bicicleta ao cinematégrafo; objetos caros ou itens produzidos em massa podiam ser comprados, inclusive papel de INTRODUGAO 97 parede, papel de embrulho, papel de decoragao imitando madeira e oleado, usados por Picasso e Braque em suas colagens. A Bon Marché foi a primeira loja de departamentos a ser inaugurada na Franga (sua pedra fundamental foi langada em 1869). Em 1912, foi inaugurada uma loja maior, e & época da colagem de Picasso ela vivia seu perfodo dureo. Em 1910, ela vendeu mercadorias no valor de 227 milhies de francos, enquanto sua con- corrente mais proxima, a loja do Louvre, vendeu cerca de 152 milhdes de francos, e a Samaritaine (fundada em 1870) teve um faturamento de 110 milhdes de francos. A Bon ‘Marché tinha sua propria industria de ilustracdes, com catélogos, agendas e cartées ilus- trados representando adultos e criancas. Ela fornecia um quadro da “casa apropriada, a roupa correta, a boa vida burguesa” e uma visdo da cultura burguesa, persuadindo as pes- soas de classe média de que esse era o modo como eles deviam viver suas vidas numa sociedade moderna: ‘ABon Marché abria suas portas a todos, mas na maioria das vezes era a burguesia que pas- sava por elas. Existia sem diivida uma clientela de trabalhadores, mas seu ntimero era limi- tado pela politica de pagamento a vista ... Havia, na verdade, algo distintamente respeitive! na Bon Marché que podia torné-la proibitiva para aqueles que nao tinham pretenses de clas- se média, muito menos 0s recursos da classe média. A loja extraia seu espirito do bairro que a circundava, que era conhecido por sua afluéncia, suas ordens catdlicas e seus habitos bien- pensant... (M. Milles, The Bon Marché, pp. 178-9) “Au Bon Marché” de Picasso combina um antincio de venda da “saMa[RITAINE]” com um, de facilidades de crédito de mais de vinte meses. Esse tiltimo era na verdade para a maquina de escrever “Torpedo”, mas no contexto da colagem ele aparentemente signifi- ca.a possibilidade de crédito na Samaritaine. Contudo, é 0 rétulo para “Lingerie, Brode- rie” da loja Bon Marché, que s6 vende a vista, que o acompanha, criando, portanto, um contraste econémico. ‘Uma leitura diferente da colagem gira em torno do possivel trocadilho sexual e do que pode ser significado pela imagem feminina. Edward Fry afirmou que: 0 cenario pode ser entendido como um bar com uma garrafa e um copo sobre uma mesa. Sentada atras da mesa esté uma mulher aparentemente de vida facil, cuja cabeca € indica- da por um antincio de jornal, 0 corpo (combinado com a mesa) por um rotulo de loja de rou- [pas e as pernas embaixo da mesa por recortes com o trocadilho “LUN 6 TROU ci”. O trocadilho completo diz portanto: “AU BON MARCHE LUN 8 TROU ICI", que pode ser traduzido como “Aqui pode-se consumir sem gastar muito”, Essa double entendre sexual, verbal e visual, também é particularmente notavel por sua indicagao nao-ilusionistica da profundidade pictérica e das relagées espaciais... (Picasso, Cubism and reflexivity”, p.301) Christine Poggi, por outro lado, chama a aten¢ao para a ironia e a ambigitidade, uma diferenca que indica que a colagem como signo nao tem um significado privado ou publico determinado. Na colagem, ela argumenta, sao feitas alusGes a “promiscuidade da mercadoria”, tanto pelos materiais usados quanto pelas referéncias a lojas de depar- tamentos: Picasso constréi uma imagem da mulher burguesa que itonicamente se conforma aquie- la dos meios de comunicagio de massa, Ela aparece nessa colagem em sua exemplar funcao dual, tanto como consumidora de bens quanto como objeto de desejo, como envolvida inti- mamente no mundo das mercadorias. ("Mallarmeé, Picasso and the newspaper as commodity”, p. 140) Poggi argumenta que Picasso pode estar fazendo uma referéncia particular ao primeiro romance pornogratico, Mirely, ou le petit trou pas cher (““Mirely, ou o buraquinho barato”), de seu amigo Guillaume Appollinaire, poeta e critico que apoiava os cubistas, mas que ¢ ais provavel que as alus0es ersticas se refiram a uma fascinacao contemporanea obses- 98, REALISMO F IDEOLOGIA: UMA INTRODUCAO A SEMIOTICA E AO CUBISMO siva, ea um mau humor, em relagéo a sexualidade das “garotas” vendedoras das lojas de departamento. Os escritores fantasiavam que essas “garotas ingénuas” poderiam sucum- bir a vida depravada das regides degradadas do centro; alguns insinuavam que as garo- tas estavam dispostas a seduzir homens “respeitéveis”, outros protestavam que elas “tal- vez nao fossem facilmente distinguiveis da bonne bourgeoise e isso ameacava levar a uma confusio social e moral indesejével” (Poggi, p. 40). O fato de Picasso ter incluido um copo e uma garrafa com uma rolha pode contribuir para essa leitura, na medida em que esses, objetos eram interpretados como receptaculos sexuados, como a jarra quebravel em A arraia. O papel padronizado, significando tanto “papel de parede” do fundo como “caixa” decorada, e o amtincio de lingerie estabelecem esse espaco como feminino? Dependendo do género do espectador, sera essa uma invasdo voyeuristica desse espaco? Ou, ao con- trério, o copo ea garrafa evocam uma cena de café mais ptiblica, com o intercambio sexual sugerido por Fry? Uma outra leitura poderia associar a colagem de um rétulo e de antin- cios com uma parede ptiblica parisiense coberta com cartazes, antincios e proclamacoes, tal como fotografada por Atget ou como em Paisagem com cartazes de Picasso (ilustrago 84 € 85). 84. Eugene Atget, fotografia da Rue St. Jacques, Paris, 1906, Musée Carnavalet. Foto: Habowzit / Photothéque des Musées de la Ville de Paris. © DAcs, 1993, INTRODUGAO 99 85, Pablo Picasso, Le Paysage aux affiches (Paisagem com cartazes), verao de 1912, éleo sobre tela, 46 x 61 cm. Museu Nacional de Arte, Osaka. © Dacs, 1993, Resumindo Uma das conclusdes dessa andlise introdutéria é que o significado é produzido por observadores que interpretam uma pintura em termos tanto icOnicos como simbélicos. Esse é 0 caso mesmo quando, como na Arraia de Chardin, ela segue um paradigma de representagao no qual ¢ dada muita prioridade A semelhanca com objetos. Poder-se-ia argumentar que nesse tiltimo caso espera-se que os observadores sejam consumidores relativamente passivos das idéias, valores e crengas transmitidos ~ afinal de contas, a semelhanca pict6rica serve para naturalizar a mensagem ideol6gica codificada e para disfarcar as relagbes de poder das quais ela depende, normalmente as de género (supon- do-se, por exemplo, um observador masculino) e de classe (a vanitas, por exemplo, era uma preocupacao burguesa com raizes na ética protestante do trabalho). A colagem cubista funciona como uma critica desse paradigma de representacao? Ao se confundir a expectativa da semelhanca, os espectadores sao forcados a tornar-se mais auto-reflexivos? Ou seja, a tornar-se conscientes nao s6 da colagem como uma representacao codificada, mas também da relacfo entre os e6digos e o processo de “leitura” do observador? Na cola- gem, essa consciéncia é produzida pelo uso de varios “materiais” — literalmente (jornal, rétulos, antincios) e metaforicamente (arte elevada e cultura de massa, debate politico, a modernidade da vida social parisiense). O que uma tal consciéncia auto-reflexiva revela sobre os sistemas de significacdo, cédigos ou “linguagens” particulares de diferentes representagdes visuais? O que isso implica a respeito da instrucao, da classe social e do género dos observadores? Essas sio questées controvertidas e probleméticas, especial- mente na medica em que estado ligadas a relacdo entre nogGes de realismo e representacao. Para alguns, como Patricia Leighten e Christine Poggi, as colagens s4o um assalto da vanguarda as nogdes burguesas de cultura elevada. Para aqueles, como Rosalind Krauss 100 REALISMO E IDEOLOGIA: UMA INTRODUGAO A SEMIOTICA E AO CUBISMO, e Yves-Alain Bois, cuja preocupacdo é com as tradigdes de representagao na arte ociden- tal, a colagem é aparentada a desenvolvimentos em semistica, é “o primeiro exemplo nas artes pictéricas de algo como uma exploracao sistematica da representabilidade acarre- tada pelo signo” (Krauss, "In the name of Picasso”, p. 16).° Quais significados sdo siste- maticamente codificados nas colagens cubistas? Eles so fixos e a-histéricos (como os significados Iéxicos das palavras) ou varidveis e dependentes de condigdes sociais e hist6ricas especificas? Representacao: linguagem, signos, realismo ‘Como € normalmente 0 caso no século XX, o status e a interpretacao dominante do cubis- mo foram fixados pela exposigio, particularmente por Cubism and Abstract Art, realizada no Museum of Modern Art (MoMA), Nova York, na primavera de 1936. Em termos de vali dacao curatorial e da produgéo de um texto “cléssico” de interpretacdo, a exposi¢ao e seu respectivo catélogo representam uma mudanca nitida na discussao e exposigao da arte moderna e de sua histéria convencional. Ambos foram basicamente obra de Alfred H. Barr Junior, o primeiro diretor do novo e prestigioso museu, o qual havia sido criado em 1929 € fora custeado pela elite financeira do capitalismo da Costa Oeste. Na capa do guia e caté- logo de Barr para a exposi¢&o aparecia um diagrama de linhas de influéncia no desen- volvimento da Arte Abstrata (ilustragio 86).. Barr chama corretamente a atencdo para um aspecto importante da arte nos primei- ros anos do século XX - seu radicalismo técnico. E facil situar em ordem cronolégica um Bouguereau, um Cézanne, um par de pinturas cubistas de Picasso e um Mondrian de pouco antes da Primeira Guerra Mundial (ilustragdes 98, 101, 1, 114, 167) e postular um abandono progressivo das tentativas de imitar a aparéncia natural, e um desprendimen- to das fung6es "descritivas” que deixa a “linguagem” da representacdo artistica preocu- pada com as possibilidades expressivas das “configuracées pictéricas” de cor, forma e linha, e com a sensibilidade composicional do préprio artista. Uma tal proposta seria con- sistente com o privilegiamento que Roger Fry faz da “desinteressada intensidade de contemplagao” (“An essay in aesthetics”, 1909, p. 32) e com a nocao de Clement Green- berg de especializacao moderna na produgao e na recepcao “auténtica” de obras de arte modernas.! Nesses posicionamentos, encontramos pressupostos sobre a linguagem da representagao ilusionistica e reivindicagdes de um refinamento gradual da “linguagem’, até que, destituida de associacdes visuais externas e de alusGes sociais e intelectuais, ela alcance um estado de “pureza” através da “autocritica”. Nessa visio, o potencial técnico € expressivo dos elementos formais da arte moderna séo a medida mais significativa de sua fungao como representagoes. Todavia, aqui deparamos com a distingao errénea que muitos modernistas fazem entre as obras de arte “representacionais” ou “realistas” e as abstratas, contestada por Schapiro em sua critica do catélogo de Bart: A oposicao légica de arte realista e arte abstrata, por meio da qual Barr explica a mudanca mais recente, baseia-se em dois pressupostos sobre a natureza da pintura, comuns nos escritos sobre arte abstrata — que a representaco é um espelhamento passivo de coisas e por- tanto essencialmente nao-artistica, e que a arte abstrata, por outro lado, é uma atividade puramente estética, ndo condicionada por objetos e baseada em suas prdprias leis eternas Essas visdes so completamente unilaterais e se baseiam numa idéia errada do que ¢ a representacdo. Nao hé nenhuma representacao passiva, “fotogrdfica” no sentido descrito Todas as representagées de objetos, nao importa quao exatas parecam, mesmo as fotografias, procedem de valores, métodos e pontos de vista que moldam de algum modo a imagem, ¢ com freqiiéncia determinam seus contetidos. (Nature of abstract art”, pp. 85-6) » Para Ywes-Alain Bois, ver “Kahnweiler’s lesson”. * Greenberg, “A revolucdo da colagem” e “Pintura modernista” REPRESENTAGAO: LINGUAGEM, SIGNOS, REALISMO 101 TRRARTSEPRINTS. #1 . va SYNTHETI: a 180 16 as Rousseay ae 180 CUBISM te i (vastelcr)—euruRism EXPRESSIONISM 19 ien eT asc UPREMATISN CONSTRUCTIVISM an ve NEOPLASTICISM la en i an BAUHAUS. eer Ds SURREALISM io Ta 1 Pr, NON-GEOMETRICAL ABSTRACT ART GEOMETRICAL ABSTRACT. ART 86, “The Development of Abstract Art’, quadro preparado por Alfred H. Barr Junior para a capa do catélogo Cubism and Abstract Art publicado por The Museum of Modern Art, Nova York, 1936, Foto: cortesia The Museum of Modern Art, Nova York. 102 REALISMO E IDEOLOGIA: UMA INTRODUCAO A SEMIGTICA E AO CUBISMO Schapiro argumenta que toda arte é uma pratica de representacao: “qualquer fantasia ou construgao formal, mesmo o rabisco aleatdrio da mao, é moldada pela experiéncia e por preocupacées ndo-estéticas” (“Nature of abstract art”, p. 86). Como vimos em A arraia de Chardin, as obras de arte nao refletem ou fornecem uma iluséo transparente da “reali- dade” ou do “mundo”, mesmo onde a pintura parece ic6nica. Dessa perspectiva, todas as pinturas, mesmo uma aparentemente tao refratéria como Ma Jolie de Picasso (ilus- tragdo 114), constituem alusées produzidas 4 “realidade” ou ao “mundo”. Como repre- sentagées de idéias, valores e crencas, elas so representacdes mediadas ou trabalhadas da realidade.* “Realismo” ¢ representacao (Oargumento de Schapiro sobre realismo e representaciio foi repetido uma década depois, em 1948, por Daniel-Henri Kahnweiler, marchand de Picasso e Braque durante o periodo cubista. Como amigo e como marchand, Kahnweiler tinha um conhecimento intimo, embora interessado, da pratica cubista. Esses pintores rejeitaram a “imitacao”, ele argu- mentava, porque haviam descoberto que o verdadeiro caréter da pintura e da escultura é 0 de um manuscrito. O produto dessas artes sao signos, emblemas para o mundo exterior, e nao espelhos que refletem o mundo exterior de maneira mais ou menos distorcida. Uma vez que isso foi reconhecido, as artes plasticas foram liberadas da escravidao inerente aos estilos ilu- sionisticos, (citado em YA. Bois, “Kahnweiler’s lesson", p. 40) A caracterizagao por Kahnweiler das obras de arte como “manuscritos” ou “signos” levanta questdes e problemas com os quais Picasso e Braque se envolveram na pratica. As técnicas deles acompanhavam os jogos de palavras e os experimentos gramaticais € sintéticos, por exemplo, da poesia de Mallarmé e Apollinaire, ¢ as justaposic6es absurdas usadas nos escritos de Alfred Jarry para deslocar o familiar. Todavia, é muito improvavel que Picasso ou Braque tivessem qualquer interesse tedrico na andlise lingiifstica que for- mou a base da semiética. Alguns contemporaneos, no entanto, fizeram conexdes entre um texto formativo daquele desenvolvimento, Curso de lingiifstica geral, de Ferdinand de Saussure (publicado em 1916, mas baseado em aulas dadas entre 1906 e 1911), e o cubis- mo. Roman Jakobson, que deu importantes contribuig6es para a lingiifstica e a teoria literéria modernas, foi um deles. Jakobson era membro dos influentes circulos lingitistas de Moscou e Praga no perio- do entre as guerras. Ele afirmou que seu embate com obras cubistas nas colegSes Shchukin e Morozov em Moscou foi importante para sua obra e a de outros membros da escola de lingiiistica e teoria literdria conhecida como Formalismo Russo. Em seu compromisso com a andlise da arte e da literatura, incluindo obras modernas e de vanguarda, uma das preo- cupacdes dos formalistas era a “literariedade” — a qualidade que diferenciava a “obra de arte” literdria de outros tipos de textos. Jakobson lembrava que Saussure enfatizava nao 08 significados de palavras individuais, mas as semelhaneas e diferengas entre elas, e 0 efeito de sua combinagfo e nao de sua aparéncia individual.’ O tratamento da linguagem por Saussure como um “sistema de diferencas” se relaciona, também, ao conceito de “desfamiliarizaga0", proposto por outro formalista russo, Victor Shklovsky. Shklovsky argumentava que um novo modo de dizer nos surpreende num novo modo de ver; um novo meio (e nao a mensagem) nos capacita a perceber 0 que é familiar, habitual e espe- rado num dado contexto. A técnica da colagem cubista, que se diferencia tanto da arte * Sobre Barr, Schapiro, Greenberg e o “paradigma de Barr” ver F Frascina, introdugao a Pollock and After: The Critical Debate "Ver “Structuralisme et tél6ologie”, 1975, em Selected Writings, vol.7, 1985, ctado em Bois, “Kahnweiler’s les son’, p. 49, REPRESENTAGAO: LINGUAGEM, SIGNOS, REALISMO 103 académica como da arte modernista inicial, torna-se assim uma forma de “desfamiliari- zacao”. (Muitas dessas idéias lingiifsticas e semidticas foram assumidas em Paris, depois, da Segunda Guerra Mundial, por tesricos como Roland Barthes e Claude Lévi-Strauss, que ficaram conhecidos como “estruturalistas”.)’ Para Jakobson, tanto Saussure como os cubistas pareciam interessados na natureza da relagao entre “significantes” (palavras e formas visuais) e seu significado (0 que elas simbolizam, ou o que é significado por elas): Talvez o impulso mais forte para uma mudanca na abordagem da linguagem e da lingtifstica fosse ~ pelo menos para mim - o turbulento movimento artistico do inicio do século XX. ‘A extraordinaria capacidade desses descobridores para superar repetidamente os habits desbotados de seu préprio passado recente ... esté intimamente associada a sua singular sen- sibilidade a tensdo dialética entre as partes e o todo unificador, e entre as partes conjugadas, fundamentalmente entre os dois aspectos de qualquer signo artistico, seu signans e seu signatum [seu significante e seu significado]. (Gitado em Bois, “Kahniveiler’s lesson’, p. 64) ‘Tanto Kahnweiler como Jakobson discutem analogias entre a arte cubista e a linguagem: a visio de que os signos artisticos, desde um simbolo convencional (como o gato para licenciosidade) até uma marca de pincel, funcionam do mesmo modo que as palavras numa sentenga; a sentenca corresponde ao todo unificado de um quadro. Em entrevistas publicadias em 1961, Kahnweiler argumentava que algo que ¢ fundamental “para a com- preensio do cubismo e do que, para mim, éa arte verdadeiramente moderna [é] 0 fato de que pintar é wma forma de escrever ... que ctia signos”: ‘Uma mulher numa pintura néo é uma mulher; € um grupo de signos que eu leio como “mulher”. Quando se escreve numa folha de papel “f-e-m-m-e”, alguém que saiba francés ce saiba ler ler nao s6 a palavra “femme” ["mulher"], mas veré, por assim dizer, uma mulher. (O mesmo é verdade para as pinturas; nao hé diferenca. Fundamentalmente, a pintura nunca foi um espelho do mundo exterior, nem foi nunca semelhante a fotografia; foi uma criagao de signos, que foram sempre lidos corretamente pelos contemporaneos. (Kahnwveiler em entrevista a F. Crémieux, Mes galeries et mes peintres, p- 57) ‘As reaces havidas 4 época indicam que nem todos os contemporaneos conseguiam ler os signos e referéncias nas obras cubistas. Contudo, hd evidéncias de que Picasso e Braque desejavam produzir uma forma de “realismo” (que havia tradicionalmente sido pensacio como um paradigma de legibilidade). A questao do realismo e da legibilidade é expres- sada explicitamente em Du “Cubisme”, um panfleto escrito por dois pintores, Albert Glei- zes e Jean Metzinger, publicado em 1912. No final de seu ensaio (que tem uma divida para com a nocao de “super-homem” de Nietzsche), os autores afirmam: Que o fim ultimo da pintura é atingir as massas, concordamos; todavia, nao é na linguagem das massas que a pintura deve dirigir-se as massas, mas em sua préptia linguagem, para comover, dominar, dirigir e nao para ser entendida. O mesmo ocorre com as religides. O artis- ta que se abstém de todas as concessies, que nao se explica e nao diz nada, acumula uma forca interna cuja radiancia ilumina todos em volta .. O cubismo substitui as liberdades par- ciais conquistadas por Courbet, Manet, Cézanne e os impressionistas por uma liberdade ili- mitada. (Du *Cubisme”, pp. 74-5) No inicio de seu argumento, eles invocam Courbet, “que inaugurou uma aspiracéo realista da qual participam todas as obras modernas” (p. 38). Por que Courbet? Um dos elementos criticos de seu “realismo” est na afirmaco implicita de que todos aqueles tipos de pinturas académicas ou oficiais que atenuavam as divisbes da sociedade de » Sobre Barthes, ver p. 118; para Lévi-Strauss sobre o cubismo ver G. Charbonnier, Conversations with Claude Levi ‘Strauss; sobre todo esse desenvolvimento ver J. G. Merquior, From Prague fo Paris. 104 REALISMO E IDEOLOGIA: UMA INTRODUGAO A SEMIOTICA E AO CUBISMO classes eram representagées ideoldgicas, e portanto falsas, da realidade. Ble estava se alian- do as nogdes contemporaneas de realismo na arte e na literatura (inclusive a Modernité baudelairiana) e ao positivismo, o movimento filos6fico da metade do século XIX que acei- tava como conhecimento apenas questdes de fato baseadas no dados sensiveis “positivos” da experiéncia (e nao na metafisica, na teologia, na especulagao acritica, nem em qualquer conhecimento “transcendente”). A nogao de Baudelaire de realismo na arte estava preo- cupada com o problema da veracidade e dos modos pelos quais as tradigées e con- vengoes artisticas poderiam gerar representagdes errdneas dos temas das imagens. Um dos objetivos do realismo em geral era expor 0 modo de operacao dessas tradigdes e con- vengies. A visdo de realismo proposta em Du “Cubisme”, no entanto, no é uma nogio influen- ciada pelo positivismo. Ao contrario, é uma reagao contra ele. Gleizes e Metzinger dividem © “realismo” em “realismo superficial” e “realismo profundo”: 0 primeiro diz respeito a Courbet e os impressionistas; 0 segundo, a Cézanne. Gleizes e Metzinger afirmam que a realidade existe essencialmente como consciéncia. Tudo que existe € conhecido pelos individuos através de idéias e como idéias. A obra de Cézanne era vista por eles como exemplo das tradigdes e convengdes modernas na arte mediadas pela “consciéncia indivi- dual” dele, ou, nos termos to obscuros deles, “a arte de dar a nosso instinto uma cons- ciéncia plastica” (“pléstica”, aqui, significando fisica). “Realismo” é, portanto, um conceito mutavel, e passou por transformagées culturais no século XIX. A nocio de “realismo” em Du “Cubisme” é mais proxima da de Plato, 0 qual sustentava que as propriedades dos objetos, como a cor vermelha ou a forma qua- drada, existiam independentemente dos objetos nos quais eram percebidas. Ademais, essas propriedades ou “Idéias” eram “mais reais” que os objetos nos quais eram encon- tradas, e constitufam a “esséncia” ou realidade subjacente que o conhecimento busca alcancar. Isso esté préximo de muitas das énfases dos criticos cubistas nos “universais”, nas “esséncias” e na “realidade subjacente” dos objetos e experiéncias. Uma tal visio é mais coerente com uma forma do que hoje chamamos idealismo, e é diferente dos signi- ficados que 0 "realismo” desenvolveu no século XIX. O realismo na arte e na literatura foi usado, por exemplo, por Courbet para caracte- rizar novas teorias sobre a independéncia do mundo fisico em relagao & mente ou ao espi- Tito; essa era uma atitude ou método que favorecia uma demonstragao das coisas “como elas realmente existiam”. Como vimos, essas representac6es sao referidas na terminolo- gia semidtica como ic6nicas. No final do século XIX, havia varias objecdes a essa visao de realismo. Uma delas, muitas vezes associada ao simbolismo, era a de que o que é descri- to ou representado s6 € visto superficialmente, ou seja, em termos de sua aparéncia exte- rior e nao de sua realidade interna. Outra era que ha muitas forcas reais, desde sentimen- tos interiores e estados fisicos até movimentos histéricos e sociais subjacentes, que nao s40 nem acessiveis & observag4o comum nem, se tanto, adequadamente representadas no modo como as coisas aparecem. Com énfases diferentes, as teorias de Marx e Freud, que davam ambas destaque ao condicionamento social, alicergaram muitas dessas objecdes. Uma terceira objecao era que o medium em que as representacdes ocorrem (pintura, cola- gem etc.) é radicalmente diferente dos objetos nele representados, de modo que 0 efeito de “representacao natural”, “a reprodugao da realidade”, é no melhor dos casos uma con- vengao artistica particular, e, no pior, uma falsificagao, que nos faz tomar as formas de representagao como reais. Arte e semiética Eno contexto dessas transformagées culturais mais amplas do conceito de realismo que encontramos os paralelos que Jakobson identificou entre 0 cubismo como pratica de representagao e o desenvolvimento da semistica. Comegamos a explorar alguns desses paralelos em relagio as colagens de Picasso. Para continuar essa explorago e para exa- ARTE ESEMIOTICA 105 minar o potencial explicativo da semistica, quero considerar outros casos exemplares, comecando por Les Demoiselles d’ Avignon de Picasso (figura 1). Essa pintura oferece um estudo de caso witil, em parte porque nos capacita a exami- nar criticamente uma obra designada como canénica nas histérias da arte moderna pre- dominantes. Nessas histérias a propria pintura é um signo com um valor particular ~ igual a outras obras “canénicas” e superior a obras “nao-candnicas”. O estatuto de Les Demoiselle foi assegurado por um outro catélogo e exposicao de Barr, Picasso: Forty Years of His Art, de 1939, que coincidiu com a aquisicao da pintura pelo MoMA nesse mesmo ano. Les Demoiselles é exposta no museu como uma obra canénica, um simbolo nao s6 de sua colecéo modernista mas também da representacao curatorial do desenvolvimento do cubismo no Museu. A pintura é um signo num conjunto extremamente influente de regras oficiais e nao-oficiais que restringem a recepcao da “arte elevada”. Outra razao é que, pelo que sabemos do planejamento € da producéo da obra, ela se destinava a ser uma intervencao “de vulto” na pratica contemporanea. Como tal, ela ¢ reveladora sobre a pintura como um signo dentro das regras que restringem a produgio. Embora nao tenha sido exposta até 1916, ela teve um impacto consideravel num grupo particular em c. 1907, quando as representagdes fauvistas, em escala pequena ¢ em cores brilhantes, de temas como cidades costeiras ¢ lugares de prazer, reais ou imaginados, esta- vam em voga entre os pretensos “progressistas” (ilustragdes 87, 41 e 43). A produgio e exposicao dessas obras também estavam bastante envolvidas com a politica dos Saldes “independentes” e com a rede de distribuicéo empresarial em desenvolvimento. Na escala e no tema, Les Demviselles evocava diferentes tradigoes: a da principal obra do Sala 87. Georges Braque, Petite Baie de la Ciotat (A pequena bata de Ciotat), 1907, éleo sobre tela, 36x 48 cm. Centre National d’Art et de Culture Georges Pompidou, Musée National d'Art ‘Moderne, Paris. © apap, Paris e DACs, Londres, 1993. 106 REALISMO E IDEOLOGIA: UMA INTRODUGAO A SEMIOTICA E AO CUBISM oficial sobre um tema legitimo, como o do “harém” de Banho turco de Ingres (ilustragao 55); e, por contraste, a das versdes modernistas de temas tradicionais como a represen- tagao sexualmente mais ambigua de um grupo de nus ao “ar livre” (por exemplo, a série de “banhistas” de Cézanne). Para esse projeto Picasso encomendou, como haviam feito muitos artistas académicos, um grande esticador de tela de madeira feito especialmente, de dimens6es néo-conven- cionais (os padrdes produzidos em massa, usados pelos impressionistas e pelos fauves, chegavam 86 a cerca de 190 cm). Durante 0 outono de 1906 a 1907 ele adotou aparente- mente os procedimentos preparatérios académicos normais para uma “performance” de Salo, com intimeros esbosos e estudos sobre papel, tela e madeira, muitas vezes em cores. Ha duizias deles, tanto obras individuais como carnets ou cadernos de esbocos. Embora haja excecdes importantes, esse procedimento se chocava com muitas préticas modernistas ou de vanguarda de fins do século XIX, que valorizavam a “imediatidade” ¢ a “espontaneidade”. Era, portanto, equivalente, mas diferente ~ talvez um sinal de troca com elas ~ das “pinturas narrativas” académicas (ilustragGes 97 e 98) e de pinturas narrativas modernas como as de Seurat. Desde 1900, Picasso, que era espanhol, trabalhara em Paris, estabelecendo-se nas redes sociais do mundo da arte. Ele expds em galerias particulares, inclusive na de Vol- lard, e entrou em contato com criticos como Apollinaire e com colecionadores como Ger- trude e Leo Stein (americanos que logo teriam as mais renomadas colegSes de pintura con- tempordnea de Paris). Em termos politicos e sociais, a comunidade de Picasso tinha rat- zes no legado “boémio” de esquerda do século XIX; os temas da obra de Picasso nos pri- meiros anos do século XX podem ser vinculados aqueles aspectos da modernidade bau- delairiana que destacavam o paria social ou a atividade marginalizada: a prostituta, 0 artista de circo ou o bebedor de absinto, o pobre “hersico”’ ‘Um exemplo é Duas irmis (ilustracdo 88), que significa o interesse na representagio da pobreza, da depressao psicoldgica e da prostituicéo. Picasso escreveut ao poeta francés Max Jacob que um desenho preliminar para seu quadro era uma “puta de St. Lazare e uma mae”. St. Lazare, em Paris, era um hospital-prisao para prostitutas que sofriam de doenga venérea. Essa doenca eo risco de contraf-la eram tanto uma preocupacao pessoal de Picasso quanto, como a AIDS nas décadas de 1980 e 1990, uma questo mais geral pre~ sente nos discursos médica e social. No formato, entretanto, a pintura significa um esque- ma pictdrico anterior: ela lembra um afresco renascentista da “visitacdo”, com o filho nos bracos da mulher a direita.® "A representacdo de um tema de prostituicdo contemporaneo combinado com o uso out a evocacdo de fontes e formatos anteriores também é central para Le Harem (ilus- tragdo 89), uma pintura de Picasso de grandes dimensdes, que utiliza o legado do famoso exemplo de Ingres (ilustrac4o 55). Em termos académicos, a pintura pode ser entendida como uma representacao de “ninfas” cléssicas, ou de um harém idealizado, guardado por uma figura masculina na pose de um deus do rio cléssico. Aqui, a 4nfora, © grande vaso de agua, é tanto uma referéncia ao mundo cléssico como um simbolo do titero com as conotagdes tradicionais de sexualidade e vanitas. Todavia, é possivel ler referéncias espanholas contemporaneas, talvez até mesmo a Gosol, a cidade onde Picas- so trabalhou nessa e noutras pinturas. A anfora era um utensilio cotidiano comum na regido, assim como a carafe que ¢ segurada pela figura masculina (Picasso havia descri- to ambos em vérias imagens). A mulher que est ao fundo, também, provavelmente ¢ modelada na pintura que ele fez de Celestina, a alcoviteira, de 1904. Pode-se dizer, por- tanto, que Le Harem evoca dois discursos - um sobre a representagao académica do harém e outro sobre um tema “contemporaneo", os bordéis e a prostituicéo, com raizes em imagens diferentes do século XIX.’ * Sobre a questio dos discursos médicos e a obra de Picasso ver M. Léja, “‘Le viewx marcheur’ and ‘les deux risques’: Picasso, prostitution, venereal disease, and maternity, 1899-1907", Ver também W. Rubin, "La Gené- se des Demoiselle d’Avignon”, "Ver F. Frascina, “Picasso's art: a biographical fact?”

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