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AS IMAGENS TECNICAS: DA
FOTOGRAFIA A SINTESE
NUMERICA
Partamos de uma premissa que podera parecer dbvia para alguns e
absurda para outros: existe, em algum lugar dentro de nds, uma
instancia produtora de imagens, uma espécie de cinematégrafo interior,
por meio do qual nossa imaginagao toma forma. Basta que eu feche os
olhos por um momento e imediatamente posso fazer projetar um
“filme” no interior de minhas palpebras: imagino-me, por exemplo,
caminhando pelas Ramblas de Barcelona ou tomando um vinho num
café de Paris, sem precisar me deslocar um centimetro sequer do espaco
em que agora estou. O debate sobre a natureza dessas imagens que
denominamos — 4 falta de um termo melhor — “internas” movimenta
hoje vastos setores do pensamento cientifico, num espectro que vai da
neurobiologia 4 psicandlise. Porém, pouco se sabe sobre elas e ha
mesmo quem duvide de que sejam de fato imagens. Mas isso nao
importa aqui. O que importa 6 que, seja qual for o estatuto que
conferirmos a essa instancia geradora a que alguns dao o nome de oimaginario, nés nao temos nenhum meio de acesso a ela. A natureza nos
deu um aparelho fonador, por meio do qual podemos exteriorizar os
conceitos que forjamos em nosso intimo e pelo qual podemos também
nos comunicar uns com os outros, mas nao nos deu, desgracadamente,
um dispositive de projecdo incorporado ao nosso préprio corpo, para
que pudéssemos botar para fora as imagens de nosso cinema interior.
Ja que estamos tratando de imagindrio, fagamos um esforgo de
imaginagao. Tentemos visualizar um ser extraterreno, biologicamente
mais evoluido do que nds, em cuja testa haveria algo assim como um
tubo iconoscépico, uma pequena tela de televisio na qual ele poderia
projetar suas imagens interiores e exibi-las aos seus interlocutores. Dois
seres dessa natureza poderiam se comunicar simplesmente “trocando”
imagens entre si. Mas nds nao. Como nao temos esse érgio em nosso
corpo, como nao podemos projetar para fora as imagens que forjamos
dentro de nés, dependemos quase sempre da palavra para traduzir e
exteriorizar as paisagens do imaginario. Esse fato talvez explique por
que a psicanélise deposita uma fé quase cega na palavra falada como
porta de acesso Aquilo que ela chama de inconsciente. E talvez explique
também, de um lado, o estatuto privilegiado da palavra na maioria
esmagadora dos sistemas filoséficos (por muitos considerada a prépria
encarnagao do pensamento) e, de outro, a desconfianga, o preconceito e
até a ma vontade desses mesmos sistemas filoséficos em relagaéo a
imagem, condenada, desde Platao, 4 doenga do simulacro. £ que a
imagem, nao vindo diretamente do homem, pressupde sempre uma
mediacao técnica para exteriorizé-la, ela é sempre um artificio para
simular alguma coisa a que nunca podemos ter acesso direto.
Esse preambulo é necessario para colocar a questo das imagens
técnicas, propésito declarado deste texto. Grosso modo, o senso comum
define tais imagens como aquelas cujo modo de enunciacao pressupéealgum tipo de mediacgio técnica. O exemplo mais ébvio e mais citado 6
a fotografia, uma vez que a sua producao depende fundamentalmente da
mediacio de, no minimo, trés dispositivos técnicos: a camera, o sistema
6ptico da objetiva e a pelicula fotossensivel. Imagens técnicas sdo
também as imagens sintetizadas em computadores e essa é uma
premissa mais ou menos inquestiondvel, uma vez que a producao de tais
imagens depende largamente do concurso de toda uma parafernlia
tecnolégica: computadores, scanners, placas graficas, além de
aplicativos de modelacao, editores ou processadores de imagem e
algoritmos graficos de toda espécie. O computador parece hoje marcar
bem a diferenga das imagens técnicas em relagdo a todas as outras
imagens até ent&o conhecidas, na medida em que conduz essa diferenca
aos seus limites mais extremos. O exemplo de Harold Cohen deixa bem
evidente essa diferenga: trata-se de um artista plastico que produz
quadros sem jamais pintd-los, nem mesmo com o mouse; na verdade,
ele escreve programas que habilitam computadores a pintar em seu
lugar (cf. McCorduck 1991).
Tudo isso parece indicar um conceito de precisao cristalina.
“Imagem técnica” seria toda representacao plastica enunciada por ou
através de algum tipo de dispositivo técnico. Mas — e aqui comega a
complicagao — existiré alguma imagem, exceto aquelas que forjamos
dentro de nés mesmos, que nao decorra da intervengio de um
dispositivo técnico? Ao longo da historia da arte, j4 nos defrontamos
com técnicas pictoricas semiartesanais estreitamente associadas a
criaco artistica, como € 0 caso da gravura, da litografia, da serigrafia e
de outros procedimentos do género. Seria o caso de nos perguntarmos
também se o gesto em si da pintura dita artesanal nao pressupée jé uma
infinidade de mediagées técnicas, desde a preparacdo das tintas e sua
combinagao, o tratamento da tela, 0 recurso a modelos matemiticos de
representacao (como é o caso da perspectiva renascentista) até a propriatécnica de pintar, que pressupée um aprendizado longo e dif
modelos formais dados pela cultura em que se insere o pintor.
A técnica, portanto, esta longe de representar um traco distintivo
dentro das artes visuais ou a expressaio de um fendmeno singular dentro
da histéria da cultura, mesmo porque toda imagem materializada em
algum tipo de suporte é o resultado da aplicagao de algum tipo de
técnica de representagao pictorica. A ideia, mais ou menos generalizada,
de que a criagdo artistica seria a expressdo da experiéncia vivencial de
um sujeito enunciador apenas da conta de parte do problema. A
experiéncia sozinha nao rende obras visuais ou audiovisuais, se ela nao
estiver, ao mesmo tempo, associada a um know how especifico, se ela
nao se deixar moldar pelos artificios da representagao. Talvez essa seja
a condigo de toda e qualquer obra criativa, mas, no campo especifico
das artes visuais, é possivel que esse fato possa ser explicado, entre
outras coisas, pelo imenso abismo existente entre as imagens que
concebemos em nossa imaginago, como agentes destiladores da
experiéncia vivencial, e as que podemos materializar e socializar com
os meios e as técnicas disponiveis.
Isso deve ser posto logo de inicio para limpar um pouco 0 terreno e
situar corretamente a insergdo da técnica no universo das artes em geral
e das artes visuais em particular. Quando se fala de imagens, é
impossivel pensar a estética independentemente da intervengao da
técnica. Dependendo do sistema filoséfico invocado, o campo
seméantico implicado pela primeira pode ser mais vasto do que o da
segunda, mas, de qualquer maneira, jamais se pode ignorar o papel
determinante jogado pelas técnicas de produgao na realizacao dos
fenémenos estéticos, sob pena de reduzir qualquer discussao estética a
um delirio intelectualista completamente ignorante da realidade da
experiéncia produtiva. Nenhuma leitura dos objetos visuais ouaudiovisuais recentes ou antigos pode ser completa se nao se considerar
relevantes, em termos de resultados, a “légica” intrinseca do material e
das ferramentas de trabalho, bem como os procedimentos técnicos que
do forma ao produto final. Nao nos esquecamos de que o termo grego
original para designar “arte” era téchne; isso significa que, nas origens,
a técnica ja implicava a criacao artistica, ou que, em outros termos,
havia ja uma dimensao estética implicita na técnica.
Isso posto, podemos agora mudar um pouco a orientagao deste
debate. Naturalmente, quando hoje falamos em imagens técnicas,
estamos nos referindo quase sempre a um campo de fendmenos
audiovisuais mais especifico e também mais tipico de nosso tempo, em
que a intervencao de tecnologias pesadas afeta substancialmente a
natureza mesma da imagem, um campo de fenémenos em que a
intervengaio das maquinas dpticas faz inserir a produgao de imagens
dentro de paradigmas formadores que nos parecem novos ou inéditos,
embora nem sempre o sejam necessariamente. Por “imagens técnicas”
designamos em geral uma classe de fendmenos audiovisuais em que 0
adjetivo (“técnica”) de alguma forma ofusca o substantivo (“imagem”),
em que o papel da maquina (ou de seja 14 qual for a mediacao técnica)
se torna tao determinante a ponto de muitas ve:
es eclipsar ou mesmo
substituir o trabalho de concepgao de imagens por parte de um sujeito
criador, o artista que traduz as suas imagens interiores em obras dotadas
de significado numa sociedade de homens. Nesse sentido, vamos
introduzir um certo “desvio” em nossa argumentacio e restringir,
apenas para fins operativos, o conceito de “imagem técnica” a um
campo de fendmenos visuais e audiovisuais em que a intervengao da
técnica produz uma diferenca no universo das imagens, marcando
muitas vezes uma ciséo, uma distancia em relacéo as imagens do
homem, as suas imagens interiores. Veremos, ainda assim, que o que
hoje se passa no universo das imagens, da fotografia aos simulacrosdigitais, nao é algo propriamente novo, mas o aprofundamento de uma
tendéncia que tem pelo menos 500 anos de histéria e que podemos
caracterizar grosseiramente como a assungao do artificio como destino
mesmo da imagem.
De fato, imagens técnicas stricto sensu comegam a aparecer pela
primeira vez no Renascimento italiano, quando os artifices da matéria
plastica se poem a construir dispositivos técnicos destinados a dar
“objetividade” e “coeréncia” ao trabalho de produgdo de imagens. E
nessa €poca que os artistas comecam, por assim dizer, a rejeitar as suas
imagens interiores, a encard-las como enganosas e desviantes, ao
mesmo tempo em que se ancoram no conhecimento cientifico como
forma de garantir a credibilidade, a verossimilhanga, 0 valor mesmo da
produgao imagética como forma de conhecimento. Diirer estuda
anatomia humana para poder pintar com maior exatiddo os seus
modelos; Leonardo estuda 0 movimento das Aguas e dos ventos para
representar a dindmica do mar e das ondas; Brunelleschi e Piero della
Francesca devoram avidamente toda a geometria euclidiana, crentes de
que ela deveria dar a linguagem basica da construgao do visivel. Por
outro lado, Bosch foi o tiltimo dos grandes videntes medievais a retirar
sua delirante iconografia do cadinho de imagens interiores. Depois dele,
a imagem se torna cada vez mais calculada, arquitetada,
conceitualizada, construtiva, encarnando a prépria utopia de um total
controle do visivel. A partir do Renascimento, a paisagem visualizada
no quadro advém cada vez mais sobria, encorpada, matematicamente
controlada, regida por conceitos de simetria e de funcionalidade. Em
todos os sentidos, trata-se de um efeito de conhecimento, primado do
intelecto sobre a mo ou, mais precisamente, um empenho na diregao de
uma imagem cientificamente verossimil, a propria esséncia do que
agora estamos chamando de imagem técnica.Para a consecugao de tais objetivos, constréi-se um ntimero
incontavel de mAquinas e inventam-se diversos procedimentos de
representacdo destinados a garantir a objetividade da coisa representada.
Era comum, no Renascimento, encontrar no atelié do artista aparelhos
de pintar baseados no principio da tavoletta de Brunelleschi e
constituidos basicamente de um ponto de referéncia para o olho do
pintor (apenas um olho; o outro deveria ser tapado, pois, como se sabe,
a imagem renascentista era monocular) e um vidro transhicido para a
projecdo das imagens. Olhando do ponto de referéncia, o artista
“copiava” sobre o vidro transhicido a sua frente os modelos e objetos
colocados no lado posterior. Tal era a materializagéo da célebre
“piramide visual” que definia o ato pictérico no Renascimento: o ponto
de referéncia era o vértice ou “centro visual” da pirdmide, ao passo que
o vidro correspondia a uma intersecao vertical do objeto geométrico,
personificando 0 quadro (a tela) onde deveriam ser projetadas as
imagens das coisas compreendidas dentro da piramide. O artista obtinha
assim um esboco da imagem, com dados tomados do prdéprio objeto
representado, de modo que bastava transferi-lo depois para a tela e
cobri-lo de cores para que a obra ganhasse forma acabada. A imagem
obtida por intermédio de tal dispositivo era a seguir “corrigida” por uma
aplicagao do cédigo da perspectiva artificialis, cuja fungao basica era
sugerir uma ilusao de profundidade sobre a tela plana, mas pressupunha
também toda uma ideologia da objetividade e da verossimilhanca
decorrentes de sua base “cientifica”. De fato, a perspectiva
renascentista, tal como foi sistematizada por Leo Batista Alberti em seu
De Pictura (1443), era encarada pelo homem do Quattrocento como um
sistema de representacao plastica baseado nas leis “objetivas” do espaco
formuladas pela geometria euclidiana e, como decorréncia de tal fato,
acreditava-se que ela deveria nos dar a imagem mais justa e fiel da
realidade visivel.B também no Renascimento que se generaliza 0 uso da camera
obscura como dispositivo destinado a reproduzir o mundo visivel da
forma mais exata possivel. A objetividade da imagem obtida por esse
dispositivo parecia inquestionavel ao homem daquele perfodo: afinal,
era a prépria realidade que se fazia projetar de forma invertida na
parede da camera oposta ao orificio por onde entrava a luz, enquanto o
papel do artista consistia apenas em fixar essa imagem com pincel e
tinta. Ou seja, a imagem se originava da prépria realidade representada
e nao da imaginacao do artista. A camera levava ainda a vantagem
assessoria de produzir automaticamente a perspectiva renascentista, 6
que a imagem por ela codificada, apesar de inteiramente focada,
apresentava sérios problemas de definicéo, além de exibir uma
curvatura nas partes mais afastadas do centro, conforme se pode
constatar ainda hoje nas cameras de “buraco de agulha”. No século
XVI, aparecem as objetivas, inventadas por Daniele Barbaro, que
consistiam num sistema de lentes céncavas e convexas destinadas a
refratar a informacao luminosa que deveria penetrar na camera obscura
para corrigir os problemas decorrentes da aplicagao estreita da
perspectiva renascentista. Junte-se os aparelhos de produzir retratos
com base no fendmeno da camera obscura, a técnica da perspectiva
artificialis e as objetivas de Barbaro e ja temos resolvidos nos séculos
XV e XVI todos os problemas épticos necessarios para a produgao
“automatica” de imagens, e essa tecnologia toda serd responsavel por
boa parte da iconografia desse periodo, além de dar a diretriz
metodolégica e construtiva até mesmo para a producao plastica mais
artesanal (Machado 1984).
O De Pictura de Alberti, além de aparecer na historia da arte como
a primeira obra literdria a tomar a pintura como objeto de teoria,
coincide de ser também, muito sintomaticamente, a mais antiga reflexao
que se conhece sobre a imagem técnica. La estao claramente delineadasas duas maximas da iconografia renascentista: a objetividade (“imitacaio
da natureza”) e a beleza (configuracao ideal) (Alberti 1989). A busca da
objetividade tem um sentido claro no Renascimento: trata-se de um
empenho no sentido de colocar fora do homem a produgao de imagens e
livré-la do peso deformante das imagens interiores. A imagem
“objetiva” é a imagem que vem de fora (“da natureza”), aquela que se
pode apreender com maquinas e instrumentos derivados da investigagao
cientifica, e a sua principal virtude é estar imune 4 subjetividade
humana, as imagens interiores, que deformam e adulteram a realidade
visivel. Mas a objetividade por si s6 6 insuficiente como procedimento
pictérico; & preciso que as imagens objetivamente captadas e
representadas por dispositivos dpticos sejam corrigidas de suas
imperfeigdes por uma aplicagao da geometria, que da a exata proporcao
das coisas e dos seres no espaco. A perspectiva corrige os dados
imagéticos diretamente tomados da realidade (“da natureza”) e os
conforma a modelos matematicos de beleza, nao esquecendo que
“beleza”, para o homem renascentista, significa reconhecimento da
configuragao ideal dos objetos, pressupondo portanto o conhecimento
de sua estrutura e do seu relacionamento harménico com todos os
outros objetos da cena.
A fotografia é filha legitima da iconografia renascentista. Nao
apenas porque, do ponto de vista técnico, ela se faz com os recursos
tecnolégicos dos séculos XV e XVI (camera obscura, perspectiva
monocular e objetivas), mas sobretudo porque a sua principal fungao, a
partir do século XIX, quando sua producdo comercial se generaliza, sera
dar continuidade ao modelo de imagem construido no Renascimento,
modelo esse marcado pela objetividade, pela reproducéo mimética do
visivel e pelo conceito de espago coerente e sistematico, espago
intelectualizado, organizado em torno de um ponto de fuga. A
descoberta das propriedades fotoquimicas dos sais de prata no séculoXIX representou um incremento substancial desse modelo, pois
permitiu substituir a mediaco humana (o pincel do artista que fixa a
imagem projetada no interior da camera) pela mediagéo quimica do
daguerreétipo ou da pelicula gelatinosa. Ou seja, a fotografia retirou da
cena pictdrica o Ultimo gesto artesanal, representado pela mao do
homem, abrindo a possibilidade de uma producio inteiramente
automatica e tecnolégica da imagem, dando nascimento, portanto, a
uma imagem da qual a intervencdo do homem pode ser exclufda.
Ninguém exprimiu melhor do que André Bazin o espanto e o fascinio
dessa imagem objetivada:
Pela primeira vez —afirma ele —, entre 0 objeto inicial e a sua representagao nada
se interpée a nao ser outro objeto. Pela primeira vez, uma imagem do mundo
exterior se forma automaticamente sem a intervengao critica do homem, segundo
‘um determinismo rigoroso. (...) Todas as artes esto fundadas sobre a presenga do
homem; 6 na fotografia contamos com a sua auséncia, Fla age sobre nés como
fendmeno natural, como uma flor ou um cristal cuja beleza € inseparével de suas
origens vegetais ou teliricas. (Bazin 1981, p. 13)
Seria 0 caso de nos perguntarmos sobre a dependéncia das imagens
que consumimos hoje, imagens técnicas no sentido mais pleno do
termo, para com os cAnones renascentistas de objetividade e coeréncia
espacial. Na fotografia, no cinema, na televisio e mesmo nos novos
produtos audiovisuais propostos pela informatica, had uma
predominancia quase absoluta da imagem especular consistente do
século XV, da qual no conseguimos nos desprender mesmo depois de
quase um século de desconstrugao dessa imagem pela chamada arte
moderna. De certa forma, 0 que ocorre no universo das artes visuais nao
difere muito do que se passa em outras esferas da criagio, como na
mnisica, por exemplo, em que o modelo da tonalidade classica resiste
bravamente a toda e qualquer tentativa de superagao ou de relativizacao.Da mesma maneira, a visio do homem contemporaneo permanece em
larga escala determinada por modelos formativos do passado e as
imagens técnicas jogam um papel fundamental na manutengao desse
impasse. Isso quer dizer que, contrariando um pouco um certo discurso
corrente sobre o tema, as imagens tecnoldgicas, as “novas imagens”
como se costuma dizer com mais frequéncia, nem sempre anunciam
necessariamente um progresso no modo de perceber, enunciar e
compreender o mundo, nem sempre correspondem ao que poderiamos
denominar uma visio propriamente contemporanea. O mais sofisticado
spot publicitario exibido na televisio, apesar de construido com
recursos tecnolégicos de tiltima geracao, nos quais se incluem captagao
em pelicula cinematografica, pés-producio em video de alta definicao e
insercdes de imagens modeladas e animadas em computador, em geral,
nada mais faz que celebrar uma iconografia historicamente datada,
tomada como modelar e repetida até a exaustdo pelas sucessivas
geracées.
Mas a histéria da arte, felizmente, nao é coerente nem linear. Jé no
Renascimento, no momento mesmo em que as técnicas da perspectiva
monocular eram fundadas e aperfeicoadas, métodos engenhosos de
encurtar, alongar e deformar a evolucao dos raios visuais em direcdo ao
ponto de fuga estavam sendo elaborados. Como consequéncia, podia-se
fazer com que um pequeno espaco se dilatasse a dimensées infinitas, ou
que grandes distancias fossem reduzidas a um infimo qualquer, ou ainda
que espagos curvos, irregulares e disformes fossem invocados por uma
deformaco proposital dos raios visuais que transitam na piramide de
Alberti. Jurgis Baltrusaitis, estudioso maior dessas perversées do cédigo
perspectivo renascentista, chama tais deformagées de anamorfoses e
vislumbra para elas uma fértil linha de evolugao dentro da historia da
arte. As anamorfoses nao sfio mais do que desdobramentos perversos do
cédigo perspectivo, mas 0 efeito por elas produzido resulta francamenteirrealista, “uma multiplicagdo de mundos artificiais que atormentam os
homens de todas as épocas” (Baltrusaitis 1977, p. 4). Embora tenham
nascido mais ou menos junto com o sistema projetivo renascentista, as
anamorfoses constituem a sua negagao explicita, “uma continua
adverténcia dos elementos aberrantes e artificiais da perspectiva”
(Baltrusaitis 1977, p. 2).
Pode-se ent&o dizer que, a partir do século XV, a arte caminharé em
duas diregdes simultaneamente: na direcdo dos canones oficiais de
objetividade e coeréncia e na direcao ja de uma desconstrucao de toda
essa positividade, sob a forma de anamorfoses. Dependendo da época e
do lugar, uma diregao pode predominar sobre a outra. Boa parte dos
efeitos de instabilidade e desproporgéo da arte barroca, por exemplo,
provém de sutis deformacées anamorficas da cena renascentista e esses
efeitos serao em seguida aprofundados na arte roméntica, quando as
imagens internas do artista voltario a povoar a tela com seu poder
desagregador. A perversio do sistema perspectivo classico pelas
anamorfoses desembocard, j4 no final do século XIX, em toda a
aventura da arte moderna, explicitamente uma arte da negagao dos
postulados renascentistas de objetividade e coeréncia, a ponto de chegar
a uma aboligao radical da figura especular por meio da abstracao. Na
posigao inversa, entretanto, situam-se as imagens técnicas: quando o
impressionismo e 0 cubismo desferem o golpe mortal no modelo de
representacdo do século XV, a fotografia e logo em seguida o cinema
surgem como alternativas para repor e perpetuar a figuragao que havia
sido colocada em crise. No século XX, vamos aprender a conviver
simultaneamente com dois modelos iconograficos: o modelo
renascentista, mantido vivo pela imagem técnica, e o modelo
“moderno” de que as artes plasticas serdo as principais articuladoras.Naturalmente, os dois modelos nao sao excludentes, eles nao
aparecem como monolitos indissoltiveis, a fronteira exata entre eles é
dificil de ser tracada. Toda uma geragao de fotdgrafos — em que se
incluem nomes como os de Moholy-Nagy, Anton Bragaglia, Bill
Brandt, Aleksandr Rodtchenko, Edward Weston e os brasileiros Geraldo
de Barros e José Oiticica Filho — tentou atualizar a iconografia
fotografica para uma sensibilidade contemporanea, de modo a inserir a
arte da fotografia dentro de paradigmas de nosso tempo. Muitos desses
fotégrafos mantiveram contatos estreitos com artistas plasticos ligados a
movimentos artisticos contemporaneos, quando nao desenvolveram eles
proprios uma atividade pictdrica paralela. O mesmo ocorreu
esporadicamente no cinema, quando criadores como Fernand Léger,
Marcel Duchamp, Luis Bufuel e Oskar Fischinger, entre outros,
esforgaram-se para desviar a historia do cinema para fora da linha
evolutiva baseada na imagem naturalista e nos efeitos ilusionistas da
narrativa literaria do século XIX. Tais exemplos, todavia, resultaram
sempre marginais dentro da histéria da fotografia e do cinema, mesmo
porque a imagem fotografica (que constitui também a base do cinema)
se mostrou demasiado resistente a qualquer gesto desconstrutivo e raras
vezes se deixou moldar de fato por uma vontade criadora
verdadeiramente moderna. Pode-se mesmo dizer que a imagem
fotografica encontra-se marcada por uma fatalidade figurativa que a
conecta irremediavelmente com a iconografia renascentista e que sé
mesmo um gesto extremo de radicalidade, com repercussées na propria
engenharia da camera, pode subverter de forma consequente.
A partir dos anos 60, porém, a emergéncia de um novo meio mudou
radicalmente o destino da imagem técnica. O aparecimento do video,
mais precisamente a sua disponibilidade comercial, que Ihe permitiu
chegar As mos de uma geracio de artistas na sua maioria oriundos das
artes plasticas e da musica contemporanea, constituiu um dado novo,que nao demoraria a provocar uma ruptura sem precedentes no universo
das imagens técnicas. Diferentemente da imagem fotoquimica, a
imagem eletrénica 6 muito mais maledvel, plastica, aberta a
manipulacéo do artista, resultando portanto mais suscetivel as
transformagées e as anamorfoses. Pode-se nela intervir infinitamente,
alterando suas formas, modificando seus valores cromiticos,
desintegrando suas figuras. No por acaso, a arte do video, que se
constitui tao logo os recursos técnicos se tornam disponiveis, definir-se-
4 rapidamente como uma retérica da metamorfose: em vez da
exploragio da imagem consistente, estavel e naturalista da figura
classica, ela se definira resolutamente na direcaéo da distorgao, da
desintegragéo das formas, da instabilidade dos enunciados e da
abstragdo como recurso formal. Mesmo antes do videotape estar
disponivel para a intervencdo artistica, criadores como Wolf Vostell e
Nam June Paik jA produziam video-arte alterando os circuitos de
aparelhos de televisao ou distorcendo suas imagens com a ajuda de imas
poderosos. Logo em seguida, a descoberta do efeito de feedback, que
permitiu gerar imagens sem necessidade de registro fotografico, e a
invencfo dos sintetizadores de video, que possibilitaram criar toda uma
iconografia informal sem necessidade do concurso da camera, tudo isso
fez com que a video-arte desse o salto necessario de atualizacio da
imagem técnica em relagdo ao estagio j4 alcangado pelas artes visuais
em outros dominios.
A video-arte sera a primeira forma de expresso, no universo das
imagens técnicas, a produzir uma iconografia resolutamente
contempordnea e a lograr uma reconciliacao das imagens técnicas com a
produgao estética de nosso tempo, ou pelo menos a primeira a fazé-lo
de uma forma programatica, transformando essa busca na sua propria
razo de ser, e néo como uma investigacdo marginal, conduzida na
contramao das formas dominantes. O alcance e a profundidade dessarevolucao dentro da historia das artes visuais e audiovisuais nao foram
ainda devidamente equacionados, sobretudo porque os critérios de
avaliagéo predominantes no universo das imagens técnicas derivam
ainda de cAnones figurativos das artes fotografica e cinematografica.
Mas 0 impacto da arte do video nao pode ser avaliado dentro dos limites
estreitos da prépria imagem técnica; ele deve, antes, ser avaliado na
perspectiva mais abrangente da histéria da arte como um todo, de que o
video é agora uma de suas principais instncias criadoras.
E curioso observar que os profissionais formados no universo da
imagem técnica (fotégrafos, cineastas) ficam desconcertados quando se
iniciam na experiéncia do video. Esses profissionais operam com uma
expectativa de qualidade técnica que é moeda corrente no nivel da
imagem fotoquimica, mas que resulta fora de propésito nos dominios do
video. Ja os artistas de formagéo musical ou oriundos do universo da
pintura artesanal se relacionam de forma muito mais produtiva com o
video, pois percebem que nele se pode resgatar a mesma liberdade e a
mesma flexibilidade de tratamento que se encontram em seus dominios
especificos. Aquilo justamente que os profissionais da imagem técnica
consideram um “defeito” da imagem eletrénica — sua virtualidade, sua
baixa definigéo, sua labilidade cromatica e as anamorfoses de suas
figuras — é encarado pelos outros como qualidade positiva, a diferenca
qualitativa do video em relaco aos demais meios técnicos, aquilo
justamente que 0 coloca em sintonia com a arte de nosso tempo.
Jé a imagem digital, a imagem gerada ou processada em
computador, apresenta uma posicaéo ambigua dentro desse panorama.
Num certo sentido, trata-se de um retorno aos canones renascentistas de
coeréncia e objetividade. Mais que um retorno, a imagem digital
aparece como uma verdadeira hipertrofia dos postulados estéticos do
século XV, na medida em que ela realiza hoje o sonho renascentista deuma imaginacdio puramente conceitual, em que a imagem seria encarada
e praticada como uma instancia de materializagao do conceito. De fato,
os algoritmos de visualizagao invocados no universo da computacao
grafica permitem restituir sob forma visivel (perceptivel) o universo de
pura abstracao das matematicas, ao mesmo tempo em que possibilitam
também descrever numericamente as propriedades da imagem. Como
consequéncia, eles dio origem a imagens ainda mais calculadas,
coerentes e formalizadas do que a pintura do Quattrocento, E uma vez
que se pressupée existir algum tipo de isomorfismo entre as formas da
matematica e as estruturas do universo, ha também uma certa vontade
mimética conformando as imagens digitais, um certo sentido de
realismo que, de alguma maneira, da continuidade ao principio do
registro fotografico. Tudo isso pode ser constatado no grosso da
producao imagética computadorizada, que se mostra cada vez mais
como uma simulagio do realismo fotografico. Ha, todavia, uma
diferenga: a partir do computador, o “realismo” resulta visivelmente
desencarnado, sem qualquer vinculaéo direta com a paisagem
registrada. O realismo praticado na era da informatica é um realismo
essencialmente conceitual, elaborado com base em modelos
matemiaticos e nao em dados fisicos arrancados da realidade visivel.
A intervengao do computador compreende, portanto, uma certa
margem de ambiguidade: o fato de ele dispensar inteiramente a
mediacaio da camera para a enunciacio da imagem, de um lado, ¢ as
imensas possibilidades de manipulagaio e metamorfose que ele abre, por
outro, relativizam bastante o seu apetite de realismo fotografico. Pode-
se, com o computador, simular a fotografia, se é isso o que se quer, mas
pode-se também criar mundos absolutamente irreais, mundos regidos
por leis arbitrarias, até o limite da abstragao total. Pode-se também
desintegrar imagens anteriormente enunciadas por cameras, de modo a
aproximar a imagem digital dos processos formativos de naturezaanamérfica, mais tipicos do video. Obras conhecidas tais como as de
Harold Cohen, Yoichiro Kawaguchi e Michel Bret j4 demonstram hoje e
de uma forma eloquente as imensas possibilidades estéticas da imagem
digital.
Atualmente, computador e video, nos seus modos de apropriacdo
mais usuais, correspondem a duas estéticas radicalmente diferentes, que
poderiamos caracterizar grosseiramente como sendo respectivamente a
da criagdo e a da destruigao. A arte do video est marcada, antes de
mais nada, por uma ruptura com os canones pictéricos do Renascimento
e por uma retomada do espirito demolidor das vanguardas historicas do
comego do século, fazendo voltar a sua fiiria desconstrutiva sobretudo
contra a figura realista que o modelo fotografico logrou perpetuar. Ja a
sintese numérica da imagem nos reconcilia novamente, senao com o
efeito ilusionista da figuracio renascentista, pelo menos com o seu
carater construtivo e a sua resoluta fusdo de arte e ciéncia. De um lado,
portanto, temos a total destruicdo, a negacdo como energia propulsora
da obra, desagregagao, anamorfose, implosao do visivel. De outro, a
utopia de um total dominio do visivel, de um controle absoluto do
processo gerador da imagem, até mesmo nos seus detalhes mais
microscépicos. A alquimia luminosa do video e a sua extravagancia
visual, a computagao gréfica responde com uma paisagem sébria,
matematicamente ordenada, em que os jogos de luzes, sombras e
reflexos nao passam de dados puramente tedricos, elementos de uma
gramatica, de uma sintaxe ou de uma retorica a priori estabelecidas.
“Elastica, aquosa, sujeita a todas as transformacées e anamorfoses,
fortemente deliqiiescente, fantasmatica e conduzida, as vezes, pelos
artistas, aos limites mesmo do visivel (...) ou do palpdvel (...), a imagem
de video parece se opor totalmente a essa outra imagem, dita ‘de
sintese’, imagem estritamente calculada, nervurada, armada, arquitetada
e encorpada nos minimos detalhes” (Méredieu 1988, p. 6).O mais desconcertante, porém, 6 que hoje um mimero cada vez
maior de trabalhos sao feitos mesclando as duas alternativas e fazendo
nascer dai um didlogo tenso e fértil entre as expressdes atuais mais
avangadas da imagem técnica. E como se, apés 500 anos de ditadura da
imagem especular consistente do Renascimento e apés 100 anos (pelo
menos) de contestagao desse primado pelas vanguardas histéricas, 0
universo das imagens caminhasse agora em direco a uma sintese, uma
sintese que, todavia, nao deixa de apontar para sua natureza
necessariamente hibrida, resultado de influéncias distintas e (as vezes)
contraditérias. Nesse sentido, a situacao atual das imagens técnicas nao
para de surpreender. De um lado, os mais recentes algoritmos de
computacdio grafica prometem simulagées absolutamente “realistas”, a
ponto de poder substituir objetos do mundo real, cenarios naturais e até
mesmo atores de carne e osso por réplicas digitais tao convincentes
quanto as imagens técnicas anteriores, resultantes de um registro
fotoquimico realizado pela camera. Por outro lado, porém, as atuais
imagens fotograficas sao a tal ponto manipuladas por processadores
computadorizados que a propria credibilidade (ingénua, é verdade) no
poder de revelagio da fotografia entra hoje num processo de
degringolamento irreversivel. A tendéncia atual é encarar o registro
fotografico efetuado pela camera como a mera obtencio de uma
matéria-prima que deverd ser posteriormente trabalhada e transformada
por algoritmos de tratamento da imagem. “Fotografia” agora é o nome
que se dé ao resultado de um processo de edic&o e nao a marca deixada
pela luz sobre uma superficie fotossensivel. Em resumo: enquanto
certos produtos da computagao grafica aspiram ao (antigo) poder de
convicgao da fotografia fotoquimica, a fotografia se converte ela propria
em video (as préprias cameras fotograficas ja séo agora eletrénicas),
como que anunciando uma era de indiferenciacao fenomenolégica entre
imagens técnicas e artesanais, objetivas e subjetivas, internas e externas.arm cloc
Um dos quadros miltipos e “verticais" no Parabolic people de Sandra Kogut.