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MEU SALAO 4A ABERTURA! © Sakio abre hoje. Nao pude ainda colocar meus pés nas salas de Expo: sigao © no entanto j4 sei que longas filas de quadros verei penduradas nas Paredes. Nossos artistas acostumaram-nos pouco com surpresas ¢ todos os anos sao exibidas as mesmas mediocridades, com a mesma teimosia. Um pe- queno esforco de meméria basta para evocar 0 espeticulo dessas telas sem: Pre iguais, que voltam pontualmente na bela estacio. As salas estendem-se, cinza, monétonas, cheias de placas com mancha: desagradaveis ¢ berrantes como os buqués de flores impressos nos fundos neutros dos papéis de parede, Cai uma luz-crua, langando reflexos esbran- quicados nas telas lustrosas, arranhando 0 ouro das molduras, enchendo 0 ar com uma espécie de poeira difusa. A primeira sensagio é de cegueira, um stupor paralisa nossas pernas, fica-se com os bragos que pendem, o nariz Para o alto. Examina-se com uma atengio escrupulosa o primciro quadro que aparece, sem realmente vé-lo, sem mesmo saber 0 que se esta olhando. Da direita € da esquerda partem descargas de cores que fazem cnvesgat Pouco a pouco recobramos 0 4nimo, retomamos o folego. Entao come: amos a reconhecer os velhos conhecidos. Eles estio todos lé, arrumados como se fossem montes de cebolas, cada um em seu cantinho, nem mais 1 Antigo publicado em £'Fvénement Iltustré, de 2 de maio de 1868, jovens nem mais velhos, nem mais bonitos nem mais feios, tendo conserva do religiosamente as mesmas rugas ¢ os mesmos sorrisos Hil as grandes composigoes sérias, ¢ nio me refiro aqui 0s quadros rel giosos de quem ninguém fala, mas sim as obras acacémicas, dos 101508 nus conservados no vinagre, segundo a sagrada receita da Escola. As carnes, co locadas em conserva, adquiriram matizes transparentes, tons rosados ¢ ama telados, que lembram a0 mesmo tempo 0 couro da Russia ¢ as pétalas de uma rosa Hi quadros de genero: as cenas militares, os interiores alsacianos, os te- ‘ma$ risticos — que também se dividem em varias familias, 5 pequenas in dliscrigoes gregas ¢ romanas, epis6dios histéricos picados em pedacinhos, € nem sei mais 0 qué. A lista nao acabaria nunca, Em arte, estamos no reino dos esplcialists: conheco senhores que construiram uma reputagio colo: sal pintando sempre a mesma mulher de papel2o, apoiada na mesma med de feno Hii 0s quadrinhos limpos que poderiam servir de espethos de Veen a belas damas. Esses quadrinhos fazem um sucesso esmagador. Neles os ho. ‘mens sio esculpidos em madeira ou marfim com uma delicadeza ¢ um aca bamento to finos que fazem a multidao se extasiar. Como a mao de um ho. mem livre pode se divertir imitando o trabalho dos prisioneiros que talham cascas de coco? Hi enfim as paisagens: céus de rocha, planicies de algodo com arvores de agticar. Aqui, no entanto, seria injusto zombar demas, pois nossos paisa sistas modemnos olham a natureza e frequentemente a copiam; varios dentre cles si0 verdadeiros mestres, que outros tentam seguir Esquecci os retratos. O fluxo de retratos aumenta a cada ano e ameaca invadit todo o Saliv, A explicagao ¢ simples: hoje, as pessoas que querem seu retrato sio praticamente as Unicas que ainda compram quadtos. Os tos tos estipidos ¢ cheios de caretas, de um tom rosa e palido, langam-nos 0 sorriso idiota das bonecas de cera que giram nas vitrinas dos cabeleirciros Se, daqui a alguns milhares de anos, algném encontrar o retrato da sra. Baro. nesa S... 00.0 do st. L.D., vai exclamar, com um grito de surpresae piedade "Meu Deus, dirio nossos descendentes, que epidemia grassava naquela épo ca na nossa infeliz Franga? A que familias anémicas, carcomidas por quis doengas hereditarias, pertenciam essas pobres pessoas, que tomaram a triste providencia de nos transmitr Faces pilidas, rosadas apenas nas magds do r0sto, como as dos tuberculosos? 98 Os retratos, as paisagens, os quadrinhos limpos, as cenas de género € as grandes telas sérias enchem as paredes-de uma extremidade a outra, de alto a baixo, colados confusamente uns 20 lado dos outros, os vermelhos com 05 azuis, 0$ azuis com os verdes, obedecendo a arbitrariedade da or- dem alfabética, Para um olho delicado, isso € como a cacofonia exasperante de um concerto onde cada instrumento tocasse a melodia desafinada de sua propria invencio. Nada oferece repouso ao olhar; tudo faz.caretas, tudo danca, tudo fere. Alguns quadros parecem um torrao de terra argilosa, morna e pali- da, outros s40 como potes de geléia, transparentes, gelatinosos, com reflexo de groseiha ou marmelo. O que cansa e irrita € no encontrar nem a menor porcao de natureza nisso tudo: s6 ha sentimentalismo, banalidade, habilida- de ou estupidez, devgncios ou loucura, De vez em quando, sé muito raramente, uma tela nos faz parar brusca- mente. Esta se abre para fora, para a verdade; 0 arco-fris berrante dos qua dros vizinhos desaparece € conseguimos respirar um pouco de ar puro. Percebe-se rapidamente que o artista viu ¢ sentiu, que cle pintou enquanto homem, enquanto temperamento enérgico ou delicado, olhando a natureza ¢ interpretando-a de uma maneira pessoal. Tais encontros sao raros, mas ¢s- pero que acontecam. Tentarei entdo esquecer quanto possivel o volume mas- sacrante de mediocridades, para falar mais longamente das pessoas de talen- toe de inteligencia. Minha tarefa ser4 mais agradavel, menos irritante € mais Stil Eu tinha imaginado, antes de entrar no assunto, explicar a inferioridade artistica do momento. Essa inferioridade deve-se a razdes profundas, que nao cconseguem ser saneadas pelos encorajamentos, pelo prémio de Roma, pelas cruzes ou medalhas. Mas 0 espaco para isso aqui falta, ¢ assim vou contentar- ‘me em enumerar em algumas linhas'as principais causas que enchem 0 Salo com tantas obras vazias € nulas. ‘A primeira dessas causas € a propria natureza do talento frances, que se traduz, antes de tudo, pela facilidade, por qualidades amaveis superficiais. Nosso pintor, aquele que pertence indubitavelmente 4 nagao, € Horace Ver- net, espititual € leve, burgués até a medula. N6s gostamos da limpeza, da ni tidez, das imagens facilmente compreensiveis, que emocionam ou fazem sor- rir Nesse sentido temos uma tendéncia muito marcante para a imitacZo, to- ‘mamos de bom grado dos vizinhos aquilo que nos agrada, mas sem tomé-lo brutalmente: temos 0 cuidado de afrancesé-lo, de acomodé-lo, embelezando-o Ievianamente em funcao do gosto do dia. Dai os plagios dos quais vive nossa 99 Escola; ndo possuimos uma arte verdadeiramente francesa; imitamos os ita- lianos, os holandeses e até os espanhdis, dando-Ihes nossa graca, NOSso esp: rito, nossa banalidade encantadora. A segunda das causas encontra-se na crise nervosa que 0s tempos mo- dernos atravessam. Nossos artistas no so mais homens generosos ¢ fortes, sios de espirito, vigorosos em seus corpos, como 0 eram,os Veronese © OS Ticiano. Existe neles um desarranjo de toda a maquina cerebral. Os nervos tomaram o controle, 0 sangue empobreceu-se € as mos, cansadas € fracas, procuram somente pintar as alucinagdes do cérebro. Hoje’ pintam-se pensamentos, da mesma forma como antigamente pintavam-se corpos. O éxtase doentio fez nascer artistas como Ary Scheffer, oetas que quiseram representar espiritos, seres imateriais, através de linhas, € coloragdes inateriais. O Unico génio de nosso tempo, Eugene Delacroix, era presa de uma neurastenia aguda: ele pintou como se escreve, contando todas as febres ardentes de sua natureza A terceira causa, que decorre da precedente, ¢ a profunda ignorancia sobre as coisas de seu oficio em que se encontram os pintores. Eu sei que a palavra “oficio” assusta esses senhores. Eles nao querem ser artesios, ¢ € isso, no entanto, a tinica coisa que deveriam ser. Os grandes artistas da Re- nascenga comecaram aprendendo como preparar as tintas. Entre nds as co sas Se passam de outra maneira: os pintores aprendem primeiramente o ideal; em seguida, quando jé Ihes ensinaram bem o ideal segundo a antiguidade, eles comecam a espalhar a cor sobre uma tela, prestando atencao ao tema, cuidando somente para que a execucio seja bem limpa. ‘Bu nao me queixo da habilidade deles; pelo contririo, eles sio habeis demas; todos tém suas receitas, seus truques: alguns envernizam, outros raspam, parece um trabalho de tapecaria. Eu me queixo porque em nenhum deles existe a pincelada untuosa € magistral do verdadeiro operirio, do homem que traba- Iha colocando as mios inteiramente na massa, sem medo de se sujar. Hoje hd somente dois ou trés artistas que conhecem realmente o seu oficio de pintor ‘A quarta causa vem do meio ambiente, da multidao. A burguesia mo- derna deseja pequenos temas lacrimejantes ou licenciosos para oramentar seus saldes de tetos baixos e sufocantes. A grande decoracao morreu, 0 En. terro do pobre e outras brincadeiras mais ou menos fiinebres foram repro. uzidas aos milhares. O st. Prudhomme’ é 0 Mecenas contemporaneo; € pa- * O sr. Prudhomme é um personagem criado pelo escritor H. Monnier, que se caracteriza pela pretensao e mediocridade. Espécie de Consciheiro Acicio frances, ficou como 0 simbolo de uma burguesia sem inteligencia, timorata e enfatuada. (N.E.) 100 cle que trabalham nossos pintores, € por causa dele que todos os anos © Salao fica entulhado de idilios, de encenagoes de fabulas, de pequenas fi- _guras nuas ou vestidas que mostram muxoxos deliciosos de criadinhas. E so- bretudo, evita-se com grande cuidado a originalidade, pois a originalidade €o terror do sr Prudhomme, que sc zanga quando cacontia usta muller de came ¢ 0ss0 em um quadro, declarando que a natureza € indecente. Quan- do Edouard Manct expos suas primeiras telas, 0 pUblico provocou um tu thulto; nao podia aceitar esse talento novo que se revelava. Mas também, por que diabos o-st Manet ndo pintava como todo 0 mundo? is sio, rapidamente, as raz6es que levam a esse amontoado de obras mediocres, que vao de uma estupidez sentimental a uma gravidade ridicula, Noss0os Saldes sio‘feitos para um publico limitado por artistas de um talento amavel e facil, que pintam mal, pensam demais € se fantasiam de fidalgos com 0 casaco roto do ideal. Ah! se a arte ndo se tivesse tornado um sacerdécio ¢ uma brincadeira, se menus aprcnidizes sem talento se langassem 4 pintura por gozagao ou val- dade, se nossos pintores vivessem como lutadores, como homens fortes vigorosos, se eles aprendessem seu oficio, se cles se esquecessem do ideal para se lembrar um pouco mais da natureza, se 0 publico concordasse em ser inteligente ¢ em nao mais vaiar as novas personalidades, talvez nds visse- mos outras obras penduradas nas paredes das salas de exposic20, obras hu- manas ¢ vivas, carregadas de verdade e de interesse, EDOUARD MANET! Acabei de ler, no titimo ntimero de L'Artiste, estas palavras do st. Arse- ne Houssaye: “Manet seria um artista excepcional se tivesse uma boa mao... Nao basta de forma alguma ter uma fronte que pensa e um olho que vé; além disso € preciso ter uma mio que fale’ Para mim esta € uma confissao preciosa, que merece ser recolhida. Cons. tato com prazer a declaracao do poeta das elegancias, do romancista das gran- des damas, reconhecendo que Manet tem uma fronte que pensa e um olho que vé, ¢ que ele poderia ser um artista fora de série. Sei que hd uma restri- fo; mas essa restricdo é perfeitamente explicivel: 0 sr. Arséne Houssaye, galante epicurista do século XVIII, desorientado em nossos tempos de prosi € de analise, gostaria de colocar algumas pintas um pouquinho de pé-de- atroz no talento grave ¢ exato do pintor. Bu respondetia ay pocts: “Nao deseje que O mestre original € pessoal de quem o senhor fala tenha uma mio que fale mais do que ela jé faz, pois isso nao seria bom. Veja no Saldo todos esses quadros de curiosidades, to- dos esses vestidos em irompe l'oeil. Nossos artistas tém dedos ‘igeis demais brincam com dificuldades pueris. Se eu fosse um grande justiceiro, corta ria seus pulsos, abritia suas inteligencias ¢ seus olhos com tenazes”. 1. Artigo publicado em L'Evénement Illustré, de 10 de maio de 1868. , NO momento atual nao € 56 0 sr. Arséne Houssaye que tem cora gem de dizer que Edouard Manet possui algum talento. No ano passado, pot ocasido da Exposig2o particular do artista, li em varios jornais elogios a res- peito de um grande ntimero de suas obras. A reagdo necessaria, fatal, que cu anunciava em 1866, cumpre-se lentamente: 0 pablico se habitua, os criti- cos acalmam-se € concordam em abrir 08 olhos, 0 sucesso chega. ¥ sobretudo junto a seus colegas que Edouard Manet encontra, neste ano, uma crescente simpatia. Nao penso ter 0 direito de citar aqui os nomes {dos pintores que acolheram com uma franca admiragdo.o retrato exposto pelo jovem mestre. Mas eles s40 numerosos € esto entre os melhores. Quanto ao piiblico, ainda nao compreende, mas deixou de rir. No do- mingo passado diverti-me estudando as fisionomias das pessoas que para- vam diante das telas de Edouard Manet, O domingo € 0 dia da verdadeira multidio, 0 dia dos ignorantes, daqueles cuja educacao artistica ainda esti inteiramente por se,tealizar Vi chegarem pessoas que vinham ali com a clara intengio de alegrar-se um pouco. Permaneciam com os olhos inexpressivos, 0s labios entreaber- tos, completamente atOnitas, sem conseguit esbogar 0 menor sorriso, Mal- grado clas propria, scus olhares acostumaram-se; a originalidade que thes parecera to cOmica, provoca-lhes agora somente a mesma surpresa experi- ‘mentada por uma crianga face a um espeticulo desconhecido. ‘Outros entram na sala, dio uma olhada ao longo das paredes e sio atrai- dos pelas estranhas elegincias das obras do pintor. Bles se aproximam, abrem o libreto. Quando véem o nome de Manet, tentam arrebentar em risos. Mas, as telas esto I4, claras, luminosas, parecendo olhé-los com um desdém gra- ve ¢ orgulhoso. E eles ent4o vio embora, sem jeito, ndo sabendo mais 0 que pensar, atingidos malgrado si proprios pela voz severa do talento, prepara- dos para se admirar nos proximos anos. Na minha opinio, 0 sucesso de Edavard Manet & completo. Fir nao on sava imaginé-lo vindo tao rapida € dignamente. & especialmente dificil fazer com que 0 povo mais espiritual da terra reconheca um erro. Na Franca, se um homem tiver sido alvo de um tiso estépido, muitas vezes estard conde- nado a viver ea morrer ridiculo. Podem notar que, durante ainda muito tem. po, poderemos encontrar em jornalecos cagoadas a respeito do pintor de Olympia, Mas a partic de agora as pessoas intcligentes foram conquistadas € 0 resto do piiblico vai segui-las. 08 dois quadros do artista estdo, infelizmente, muito mal-localizados 103, ‘Ros cantos, muito alto, a0 lado das portas. Para vé-los ¢ julgé-los bem seria Necessario que eles estivessem sobre 0 cimécio, no nariz do publico, que gosta de olhar de perto. Quero acreditar que um acaso infeliz foi o unico Tesponsivel pelo desterro dessas telas notiveis. Ainda assim, apesar de tio mal-localizadas, podemos vé-las e de longe: em meio as idiotices e aos senti mentalismos que as rodeiam, elas fazem furos na parede Nio falarei do quadro intitulado Uma jovem senbora. Ji o conhecemos, ele pode ser visto na exposi¢io particular do pintor. Somente vou aconse har os senhores habilidosos, que vestem suas bonecas com roupas copiadas de revistas de moda, que olhem o vestica rosa que essa senhora usa: é ver dade que nio conseguimos distinguir a textura do pano ¢ que nilo poderia- ‘mos contar 0s buracos da agulha; mas ele envolve de forma admirivel um corpo vivo; pertence a familia desscs tecidos macios e untuosamente pint dos, que os mestres jogaram nos ombros de seus personagens, Hoje os pin- tores so clientes das boas costureiras, como as senhoritas clegantes, Quanto 20 outro quadro. Um de meus amigos perguntava ontem se eu falaria desse quadro, que € 0 meu retrato. “Por que nio?", respondi. Gostaria de dispor de dez Colu nas de jornal para poder dizer bem alto aquilo que pensei baixinho durante as sessbes de pintura, a0 ver Edouard Manet lutar passo a passo com a natu- reza, Voces pensam quc sou t20 poucu urgulliuso para sentit algum prazer istraindo as pessoas com minha fisionomia? £ claro que sem divida falarei desse quadro, ¢ os que gostam de brincadeiras de maul gosto ¢ encontrarem aqui um assunto para mostrar seu espirito serio simplesmente imbecis, Lembro-me das longas horas em que posei. Em meio ao entorpecimen. to que toma conta dos membros im6veis, em meio ao cansago do olhiar aberto ‘em plena claridade, os mesmos pensamentos flutuavam em mim, com um tuido doce ¢ profundo. As bestciras que correm as ruas, as mentiras de uns €.5 cretinices de outros, todo esse rufdo humano que flui, indeil como gua suja, estava longe, bem longe. Parecia que eu estava fora da terra, em um. lugar de verdade ¢ justica, repleto de uma piedade desdenhosa pelos pobres coitados que chafurdam li embaixo. Por momentos, cm meio 3 sonoléncia da pose, eu olhava o artista, em Pé diante de sua tela, com o rosto tenso, o olhar claro, completamente imer. 50 €m sua obra. Ble tinha me esquecido, nao sabia mais que eu estava li, copiava-me como teria copiado qualquer outro animal humano, com uma atencdo € uma consciéncia artistica que raramente vi em outro lugar. E en: 104 Zo eu me lembrava do aprendiz debochado da lenda, deste Manet fantasio. So dos caricaturistas, que pintava gatos como gozacao. Nao se pode deixar de admitir que freqiientemente o espitito possui uma rara estupidez Pensei durante horas inteiras neste destino dos artistas individuais, que faz.com que eles vivam a parte, na solidao de scu talento. Em torno de mim, nas paredes do atelié, estavam penduradas essas telas fortes caracteristicas, que 0 piblico nao quis compreender Basta ser difercnte dos outros, pensar 2 parte, para tornar-sc um mionstto. Voce € acusado de ignorar sua arte, de zombar do senso comum, justamente porque a ciéncia de Seu olho, os im- Pulsos de seu temperamento o levam a resultados particulares. A partir do ‘momento em que vocé nao segue a larga corrente da medioctidade, 0s idio. tas vao apedrejé-lo, tratando-o de louco ou de orgulhoso. Foi remexendo nessas idéias que via tela se cobrir O que surpreendeu a mim mesmo foi g consciéncia extrema do artista. Muitas vezes, quando se tratava de um detalhe'secundério, cu queria deixar de posar ¢ sugeria que ele inventasse. ‘Nao”, ele me respondia, “nao posso fazer nada sem a natureza. Nao sei inventar Durante todo 0 tempo em que quis pintar segundo as liyoes apreendidas, nao produzi nada que valesse a pena. Hoje, s¢ valho alguma coisa, devo isso a interpretacao exata, a andlise fiel’ Seu talento est todo ai. Antes de tudo ele € um naturalista, Seu olho vé € representa as coisas com uma simplicidade elegante. Sei muito bem que ‘nao conseguirei fazer com que os cegos amem a sua pintura; mas os verda- deiros artistas vao me compreender quando cu falar do encanto ligeiramen- te dcido de suas obras. O retrato exposto este ano é uma de suas melhores telas. Sua cor € mui to intensa c cle possui uma harmonia possante. E no entanto esse € 0 quadro de um homem acusado de nao saber nem pintar nem desenhar Desafio qual quer outro retratista a colocar uma figura em um interior com amesma ener gia, sem que as naturezas-mortas do ambiente prejudiquem o rosto, Esse retrato é um conjunto de dificuldades vencidas; desde os quadros do fundo, desde o encantador biombo japonés a esquerda, até os menores detalhes, tudo se sustenta em uma gama inteligente, clara e brilhante, tao real que 0 olho esquece o amontoado de objetos para ver simplesmente um to- do harmonioso. Nao falo das naturezas-mortas, dos acess6rios ¢ livros jogados sobre a ‘mesa: neles Edouard Manet mostrou toda a sua maestria. Mas peco uma par- 105 wean hola ticular atengao para a mio pousada sobre o joelho do personagem: € uma maravilha de execucao. Finalmente vemos a a pele, a verdadeira pele, sem frompe-l'oeil’ ridiculo. Se 0 retrato por inteiro tivesse conseguido chegat 30 ponto aonde chegou essa mio, o proprio piblico teria gritado que ele era uma obra-prima Acabarei como comecci, dirigindo-me ao st Arsene Houssaye. O senhor se queixa de que falta habilidade a Edouard Manet. Com efei- {0, comparados a ele, seus colegas s4o miseravelmente habeis, Acabei de ver uma diizia de retratos raspados e novamente raspados, «uc set vitiatt as Til maravilhas como rotulos de caixas de luvas. As mulheres bonitas consideram essas obras encantadoras. Mas eu, que nao sou uma mulher bonita, penso que esses trabalhos de habilidade mere. cem no indximo tanta atengio quanto uma tapegaria realizada com peque- os pontes. As telas de Edouard Manct, pintadas em um s6 impeto, como aquelas dos mestres, possuem um interesse eterno. O senhor mesmo o dis. se: cle tem inteligéncia ¢ a visio exata das coisas: ou seja, cle nasceu pintor Acredito que ele ficard satisfeito com esse grande elogio, que hoje s6 mere- cem dois ou trés artistas. UMA EXPOSICAO. OS PINTORES IMPRESSIONISTAS Paris, 16 de abril" Ainda nao hes falei da exposicdo dos pintores impressionistas. £ a ter cetra vez que esses pinlures submicten suas obras ao pablico, fora dos Sa- loes oficiais. Inicialmente, eles desejavam subtrair-se do julgamento do ji, que afasta do Saldo todas as tentativas originais. Decidiram assim formar um ‘grupo homogéneo, onde todos tinham aproximadamente 2 mesma visto da nhatureza; tomaram como uma bandeira a qualificagao de impressionistas que Ihes tinha sido dada. Foram chamados de impressionistas por zombaria, resolveram, com fanfarronice, continuar sendo impressionistas No entanto, penso que hoje ndo € oportuno buscar exatamente a signi ficagao do nome. Ele é uma boa etiqueta, como todas as etiquetas. Na Franga as escolas nao fazem seu caminho antes de serem batizadas, mesmo que seja ‘com um nome barroco. Penso que devemos entender por pintores impres- sionistas pintores que pintam a realidade, e que se orgulham de representar ‘a propria impressao da natureza, que eles no estudam em seus detalhes, mas em seu conjunto. E certo que, a vinte passos, € impossivel distinguir os olhos ou 0 nariz de um personagem. Para representé-to tal como € visto, nao deve ser pintado com as rugas da pele, mas sim na vida de sua atitude, com o ar vibrante que o envolve. Dai uma pintura de impress4o e no uma pintura 1 Artigo publicado em Le Sémaphore de Marseille, de 19 de abril. de 1877 235 de detalhes. Mas felizmente, além dessas teorias, hd outra coisa no grupo: quero dizer que ha verdadeiros pintores, dotados do maior mérito. Como jé disse, 0 que eles tém em comum é um parentesco de visio. ‘Todos véem a natureza clara ¢ alegre, sem o suco de betume ¢ de terra de Siena dos pintores romanticos. Eles pintam ao a livre, revolucao cujas con- sequéncias serao imensas. Tém coloragoes loiras, uma extraordindria harmo- nia de tons, uma originalidade de aspecto muito grande. Alias, cada um de- les tem um temperamento muito diferente e muito acentuado. Nao posso, nesta correspondéncia, conceder a cada um 0 estudo que mereceriam. Vou me contentar em nomed-los. © st Claude Monet € a personalidade mais acentuada do grupo. Neste ano cle cxpés magnificos interiores de estagdcs de trem. Podemos ouvir 0 estrondo dos trens que se engolfam, vemos af os transbordamentos de fu- ‘maga que rolam sob os vastos hangares. £ af que se encontra a pintura de hoje, nesses quadros modernos, que mostram tanta amplidao. Nossos pinto: ss devem encontrar a poesia das estagdes, assim como seus pais encontra: ram a das florestas € dos rios. Citarei em seguida o sr Paul Cézanne, que € certamente 0 maior colo- rista do grupo. Ele apresenta na exposicio paisagens da Provenga de um be- lissimo carter As telas tao fortes € tao vividas deste pintor podem até pro- vocar tisos nos burgueses, mas de qualquer forma clas indicam os clemen- tos de um grande pintor No dia em que o st Paul Cézanne se possuit por inteiro, ele produziré obras incompariveis. (© sr Renoir enviou encantadores retratos de mulheres. O sucesso da exposigio € o rosto da srta. Samary, a pensionista da Comédie-Frangaise, um rosto todo loiro e risonho. Mas eu prefiro os retratos da sra. G.C. e da sra A.D., que me parecem muito mais s6lidos e de uma qualidade de pintura su- perior O sr Renoir também expoe um Baile do Moinbo da Galette, grande tela com uma extraordinaria intensidade de vida. ‘Também s6 posso conceder apenas poucas linhas a srta. Bertbe Mori- sot, Cujas telas possuem uma cor tio fina € tio justa. Neste ano a Psiqué e Jovem mulber no toucador si0 duas verdadeiras pérolas, onde o cinza € 0 bbranco dos tecidos wcan uni sinfonia muito delicada, Também notci as deliciosas aquarelas da artista. Meu espaco vai terminar, por isso tenho de passar rapidamente pelo sr Degas, cujas aquarelas so to belas. Ele tem bailarinas prodigiosas, surpreen- didas em seu ela, cafés-concerto de uma espantosa verdade com “divas’ que se debrucam sobre candeeiros enfumacados, com a boga aberta. O st Deans Se eregenhista Ge uma precisto admirdvel, e suas menores figuras tomam ‘um impressionante relevo. Neo elassifico aqui os pintores impressionistas por ordem de mérito, pois nnesse nso fi teria falado do st Pissarro c do sr Sisley, dois paisagistas de aeertne talento, Cada um deles expde, com tonalidades diferentes, recantos saolmroreza de uma surpreendente verdade. Finalmente vou nomear 0 5 Gi jleborte, um jovem pintor dos mais corajosos, que nio recua diante dos aie modernos em tamanho natural, Sua Rua de Paris em tempo de chuva ‘nostra passantes, sobretudo um senhor € uma dama em primeiro plano, ro Ge ama bela verdade, Mesmo que seu talento se abrande, ainda assim tle seré um dos mais ousados do grupo. ‘Pagora, os pintores impressionisias podem deixar o psblicg ri, seu trim fo tem nsse prego, © pablico sempre rit diante de quadros Originals: Quan fo Delacroix e Decamps apareceram, 0 piblico encolerizou-se © quis raseie guas telas. O privilégio dos pintores de talento ¢ alvorogar ¢ apaixonss St Spoca, O que existe de certo € que seguramente algo saird desse movie eee Gue hoje € determinado pelos pintores impressionistas, Daqul » agvns vo ca veremnos suf influencia agi sobre os proprios Sal6es oficial. O furwro ano Joes escola est af, 0 primeiro impulso foi dado, $6 resta aos mestrcs realizar 0 novo estilo. ‘A prova de que os pintores impressionistas determinam um movisneno eset A tas de que, mesmo rindo, o puiblico acorre para ver sua exposicao. v, doniados mais de quinhentos visitantes por dia, Nao somente certo co. Sa coat cspesas da exposicao, como também talvez haja Iucro, Animo ¢ sucesso para os pintores impressionistas!

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