11 Escrita de si por Heliana

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Ensaio sobre a escrita em Michel Foucault: do belo perigo a escultura de si Heliana de Barros Conde Rodrigues Ha muito me solicitam um artigo para o “livro das cartas”. Ao pensar nessa expresso, evoco uma frase de Peter Sloterdijk (2018, p. 7), que ele, enigmati- camente, atribui a outrem:! “Livros so cartas dirigidas a amigos, apenas mais Jongas.” No momento em que se associam amigos, livros ¢ cartas, tudo me conduz a Michel Foucault — reiteragio que sé escapa pecha de hagiografia em decorréncia da evocagio de um texto de 1983," “A escrita de si” (Foucault, 19922). Discreto, texto de ocasifio, em suma, ¢, justamente por isso, talvez um daqueles preferidos pelo filésofo, com seu gosto genealégico pelo “nunca lido” (Foucault, 2002); ou, quem sabe, texto particularmente apreciado por cle em seus tltimos anos de vida - momento em que privilegia a ética ¢ os modos de subjetivago ~, por tratar a correspondéncia como tecnologia de si. Nada mal para comecat um artigo, penso, num momento em que as palavras escasseiam porque desperdigadas em imprecagSes contra o intoleravel ~ 08 leitores saberdo a que me refiro sem necessidade de maiores explicagdes. E ja que comego a povoar este escrito com interlocutores imaginirios, talver algum deles diga que exagero ao prolongar essas justificativas iniciai quem se oporia, afinal, 4 presenga de Foucault em um livro que pretende falar de escrita (de cartas ou do que quer que seja)? Pois ndo foi ele apaixonado pelas lettre? ao longo de todo o seu percurso? Que melhor apoio se poderia 1.0 “escritor Jean-Paul” é apontado como o autor da frase. Seré Sartre ou um simples anénimo? 2. Vécriture de sol, Corps Ecrit, n. 5, fev. 1983. 3. Letre: letra, carta, missiva. Lettres a Literatura (Burthin-Vinholes, 1964). ” igi....-.--- -L... Lo... La....er Escritas de si > reivindicar do que o pensamento de Foucault, ao ter tudo amigavelmente, de livros e cartas? oe Nada € tio simples, contudo, quando nos aproximamos do « mesmo se disfargamos a paixiio por meio de uma critica as ha ticas. Porque basta pensar em tomé-lo como ¢ advertir que a trajetéria sera erratica, permeada inflexdes, deslocamentos.' Quando nos pomos a: velmente praticamos 0 ensaio, no sentido que el i no uma aproximacao simplificadora de outrem visando 4 Comunicacg, uum “exercicio de si,no pensamento” (Foucault, 1984, p, 13), may Nesse sentido, 0 artigo que é finalmente apresentado Pretende.se oy, | ensaio sobre alguns dos deslocamentos experimentados pelo Pensameng” Michel Foucault no que tange a escrita; e também ensaio sobre Cettas ing, xdes experimentadas pela escrita no percurso histérico do ocidente, Sepun, fl & Perspectiva de Michel Foucault, Parece muito. Serd, Contudo, um brew ensaio, pois seu intuito é somente ode i vimentos, a uma autoforma: fosse o envio desta carta, Por intuitg falay Fon Categy, -ventual compet de hesitacdes, alten ay Peg 10 lado de Foucaulr ia, e Proprio atribuiy ¢ tia, Agrande estrangeira Apés a aquisicao, em 2013, pela Biblioteca Nacional da Franca, 37.000 documentos pertencentes a Michel Foucault, uma infini dernetas repletas de ideias para livros, artigos e cursos tornow-s Rovas publicagdes do fildsofo,* tevivendo-o, kafkianamente, Tecebo a divulgacio de uma coletanea intitulada Folie, ser langada pela editora Vrin (Foucault, desdobra: de cerca de idade de ce. e fonte para “Em fungio disso, langage, ltterature, 1 2019). O texto informativo assim s¢ Aloucura, a linguagem e a litera tum lugar central no pensament estatuto ¢ a fungiio do louco e ue se diferenciam do que po tura por muito tempo ocuparam 'o de Michel Foucault. Quais sio 0 M Nossas sociedades ocidentais eem dem ser em outras sociedades? Mas, 4. Termo que prefere, com usteza, minha ‘amiga Rosimeri Dias de Oliveira, inventora dest® “livro das cartas”, 5. Entre os livros, cumpre destacar Les aveux de la chair, quarto volume da Histéria da sexualidade, jé publicado em francés (Foucault, 2018) em processo de tradugio para © Portugues (As confissBes da came), 6. Dizem que Foucault nio queri 38 igit...-- LL... Lee. er Ensaio sobre a escrita em Michel Foucault igualmente, que estranho parentesco a loucura entretém com a linguagem ¢ a literatura, trate-se do teatro barroco, do teatro de Artaud ou da obra de Roussel? B, caso se trate de um interesse pela linguagem em sua materialidade, como se transformou a anilise literdria, em particular sob a influéncia cruzada do estruturalismo e da linguistica, e em que diregio evoluiu? As conferéncias ¢ os textos, na maior parte inéditos, aqui reunidos ilustram a maneira como, desde os anos 1960 e durante mais de uma década, Foucault nfo cessou de tecer, de reformular e de retomar esses questionamentos. (Foucault, 2019, n. p.) interlocutor imaginirio forjado na introdugio deste ensaio regozija- im, ontem, em vida, e ainda hoje, redivivo, Foucault é um inescapavel mestre das Lettres, e a critica jamais deixa de reconhecé-lo. Nao se equivoca 0 interlocutor, mas algo omite, assim como algo omitem os pardgrafos de di- vulgacdo do novo livro por vir: tanto a critica francesa e estadunidense, com Judith Revel (2004) e John Rajchman (1987), respectivamente, como a bra- sileira, com Roberto Machado (2000), entre outros, ndo apenas percebem em Foucault — para usar uma expresso do norte-americano — um “sublime modernista” que tudo espera da literatura’ como enfatizam um momento de inflexdo, cuja data é dificil de precisar, a partir do qual ele néo mais acredita que a literatura possa ser a forca de ruptura com a ordem do presente. Vale lembrar que a énfase, quer na literatura, quer no destaque foucaul- tiano da literatura, deve-se menos, aqui, & discussio da literatura enquanto tal do que ao propésito de situar a escrita na trajetéria do filésofo. Lancando mio do titulo de um livro que resultou da reunio de programas radiofSnicos econferéncias do periodo 1963-1970, se Foucault chegou a ver na literatura “a grande estrangeira”* (Foucault, 2016a), ao deixar de assim a considerar modi- ficou, correlativamente, sua posigio a respeito da escrita. O ocorrido é assim sintetizavel: enquanto pode ser visto como “sublime modernista”, Foucault parece confortavelmente instalado na escrita académica, a maneira de um critico literdrio marcado pelo estruturalismo e pela linguistica saussuriana; & 7.Aliteratura nunca foi detentora isolada dessa almejada descontinuidade: a histéria, praticada na esteira de Nietzsche, sempre a acompanhou. Melhor dizendo, em Foucault, literatura e hist6ria nfo sio paralelas, mas, em sentido deleuziano, intercessoras. 8, Na apresentago da obra em pauta (Artiéres et al, 2016, p. 9), a expressio faz referencia 20 que liam, no pés-guerra, as pessoas da geragio de Foucault: ndo romances franceses, mas ‘estrangeiros, norte-americanos, Porém a expressio propicia que se aponte para o cariter de ruptura que a literatura possuiria quanto aos modos hegeménicos de dizer, pensar e ser, desempenhando al o papel de “grande estrangeira’. 39 igit..---- LL... Lon. -er —_—_ scritas de si deceplonn com 8 Lets Pa884 a examin se ; ne ida que ' olicial,” os romance, Meg medida ave ento a literatura p « PoDUlarg, a ues Ps tio sofisticados como aqueles a que antes dedicat 1%, Sue" La pensa em abandonar a escrita académicg arg tenths tem ‘apa det 1 toma a mesmo temps stado ao diagnéstico do presente" OU, Doug Mang iornalista radical volta 0) Jormalista reper de ideias"® que ih min Presente 08 locais Onde as j igs tae oo. a fal esceenfecieie apontado careceria de “es, 7 oa ie as notas de rodapé apressadamente Acresce, referencias bibliogrficas sugeridas, fi dito & mancira de ae ouconsisténcia. Tentando corrigi-lo, ou, ao men a 0 tom deste escrito que, a assim prosseguir, de erSMlO Bassard a coy esboro, decido fazer uma parada em uma entrevista de Foucaul, com Bonnefoy, datada de 1968, intitulada “O belo perigo” oucaur, 2216) ‘8 Procur, mote é justamente a arte de escrever, Antes disso, contudo, recorro ainda uma ver & “grande estrangeins caso para expor 0 modo como os apresentadores justificam 9 aDagamene ta tajetria de Foucault, “dessas Palavras estrututalmenn Fecaleitrany dependendo do caso: inaudiveis, escandalosas, inclassificaveis, intradui, indecidiveis,fragmentirias, aleatdrias, inconstantes, Vertiginosas.”(Artiénss al., 2016, p. 17) Intimeras razdes para tanto Poderiam ser sugeridas, mas dy srign Por mencionar somente trés." Primeiramente, 9 abandono, por pare de Foucault, do Privilégio do discursivo em re i {iia preci acorea de Euge AB a7 =crienldh 1978, pubcado om Free puget Foucault (200), p, 344-377) - org rn Sobreas reper Fetes ltérares (n, 268, 56 ano). ‘cault.com o jornalismo, consultar Droit (2006) e Rodrigues ba mse tS” encontra-se em Foucaue (202, p 24-05) 4 Jnr Macha apg 224 Ir em 978-1979 ora oP (2000,p.24 Wal Foye 12 POF Sua vez, enfatiza ume entrevista concedi i + eeusautatribul sey distanciamento da literatura as transtol vai ea propria Kerdria: “Quando ‘Madame Bovary fol publicado, a literatura ms 60 que os homes ee sufciente [...] Hoje, pelo contrério, a literatura i oe Hes So inf Pea em Paris, Mes Olivro no é condenado, ena ‘oi perdidam (Foucau, 2002p 2a A forga transgressiva da literatura, ness¢ Ensaio sobre a escrita om Michel Foucault (Artigres et al., 2016, p. 18) Em seguida, a reticéncia foucaultiana em atri- buir unicamente a certo cruzamento entre literatura e loucura uma eventual vontade (ou decisiio) de mudanga, Esta deveria, alternativamente, alcangar uma dimensio coletiva,'*“com priticas partilhadas e constitutivas nao apenas de uma subjetividade singular, mas também de subjetivagdes transversais” (Artiéres et al., 2016, p. 19). Por fim, 0 reinvestimento do tema da diferenga possivel na histéria, mediante uma aposta tedrico-politica que toma a forma da seguinte indagacio: “E possivel, do proprio interior dessa historia que nos faz ser aquilo que somos (ou seja, também: pensar da maneira que pensamos, falar da maneira que falamos, agir da maneira que agimos), liberar-se dessas determinagdes e arranjar paradoxalmente o espago (contudo sempre interno) de uma Palavra ou de um modo de vida diferentes?” Se, para Foucault, isso ¢ possivel - melhor dizendo, compossivel -, “estamos bem longe, a partir de entio, da transgressio cara a Bataille ou do fora blanchotiano” (Artiéres et al., 2016, p. 19-20). O belo perigo © pardgrafo anterior justifica, por sua simples presenga, aquele caminho tortuoso antes previsto ao propor um artigo sobre a escrita de/em Michel Foucault. A conversa com Claude Bonnefoy, A qual agora efetivamente pas- samos, é, de tal circunsténcia, um novo avatar, O entrevistador pretende ter acesso ao “avesso da tapecaria”, ou seja, ao Foucault escritor, em vez de aos escritos de Foucault. O “Careca” nio se furta 4 aventura, embora declare temé-la; melhor dizendo, embora afirme recear, enquanto académico, a si- tuagdo de entrevista. Mas ndo tarda a encontrar uma estratégia, por sinal, surpreendentemente, também presente em outras ocasides: a fala autobio- grifica."® Cénscio da estranheza que tal decisio poderia despertar, esclarece: “Vou fazer uma retratago. Voltar contra mim mesmo o sentido do discurso que desenvolvi a propésito dos outros. Vou tentar Ihe dizer 0 que foi para mim, a0 longo da minha vida, a escrita.” (Foucault, 2016b, p. 37) Seguem-se recordagSes: primeiramente, a de sua dificuldade para “es- crever bem”, remetendo a expressio ao gesto da escrita em sua materialidade, 14. A experiéncia de Foucault com 0 Grupo de Informagao sobre as Pris6es (GIP), no inicio da década de 1970, mostra-se fundamental quanto a essa dimensao coletiva. 'S. Foucault raramente se furtou a falar de sua vida, E 0 argumento usado na entrevista com Bonnefoy reaparece, quase idéntico, em entrevista concedida no Brasil, em 1974: “Vou Ihe dar uma razio que eu proprio nio aceitaria e ndo daria, caso se tratasse de outra pessoa. Mas, como sempre falamos mal de nds mesmos, invocarei razdes biograficas.” (Foucault, 2012b, p. 20) 4 igit...-.o- 2... Lolo. er Eseritas de sl ja caligrafia; em seguida, a de sua vida de Crian, ena cidade francesa nos anos 1930. Acerca desta alti Be, uma ui ediante uma andlise em que se mesclam seus prépei 33 Foca estencde, medion we ngulares: “De fato 0 médico, e particg nn CHugette téricos e memori . = ntod I ‘Cularmen, te ‘og gio - ora, sou filho de cirurgido -, nao é aquele que fala, Eaquele ging, [..] 0 cirurgiao descobre a lesio no corpo adormecido [., Ste fey, ro mutismo, na reduglo absoluta da fala.” (Foucault, 2orgp, p40, Moi, na aridade dessa fala fildsofo acrescenta: “Decerto, foi essa desyat ty profunda, funcional, da palavra na velha pratica da medicing clinica 7 a sobre mim por muito tempo e que fez com que até dez, 12 anos atras a © para mim, fosse ainda e sempre vento.” (Foucault, 2016b, p, 40-41) Pala, Cumpre indagar, por conseguinte, como teria surgido 9 8critor adn: rado por Bonnefoy. A pergunta que insiste, Foucault, uma vez mais, reg dey. autobiograficamente. Afirma que somente por volta dos 30 anos de dade, criado 0 gosto pela escrita, justamente ao se encontrar vivendo em um ra estrangeiro, a Suécia, Com isso, por um lado, ao relatar problemas pat expressar em sueco ou em inglés, idiomas que oimpediam de dizero queda java, faz pensar em uma familiaridade quase natural com o francés, Por no entanto, ressurge, com forca incomum, o tema do estranhamento: “Nes impossibilidade em que me encontrei de utilizar minha prépria lingua, pe. cebi [...] que ela tinha uma espessura, uma consisténcia, que ndo era simple- mente como oar que se respira, uma transparéncia absolutamente insensive” Nao mais simples vento ou mero entorno, sua (prépria?) lingua aparece 20 filésofo, no estrangeiro, como igualmente estrangeira, com suas “leis propriss, seus corredores, seus atalhos, suas linhas, suas escarpas, suas costas, suas perezas” (Foucault, 2016b, p. 38). “avesso da tapegaria”, entretanto, ainda nio foi inteiramente devi sado, Prosseguindo com esse intercessor autobiografico, Foucault se encamiaht Para uma das mais belas andlises existentes acerca de sua propria escrits quando, em resposta a supostos leitores que a dizem “seca e mordaz”, im gina que haja, em sua caneta, uma velha heranga: “Transformei o bisturi ce caneta, Passei da eficdcia da cura a ineficacia do livre enunciado; sa 8 cicatriz sobre 0 corpo pelo grafite sobre o papel; substitu! © inapagire arg eee perfeitamente apagivel ¢ rasurdvel da escrita.” (Fouctt Ps 44 chr Nanas na urPteende que essasconsideragdes reativem assoraro Oi? = fi dos aa aide escrita literdria, por mais que 0 Oe pe ina Foucault ne 20° ~ if sea 0 de certo descarte da “grands Oo ast ue uae pis nie no teoriza sobre tais associagdess or ‘mod? om © cadiver doo ns eordagies ¢ impressdes: “Falo de eer, arom Sutros [...] Falando deles, estou na situacdo A legibilidade d 6a by, a2 igit...--- LL... Ler Ensaio sobre a escrita em Michel Foucault que faz uma autdpsia, Com minha escrita, percorro o corpo dos outros, fago incisdes nele [...] tento descobrir os érgios e, trazendo-os a luz, fazer enfim aparecer esse foco de lesio [...] esse algo que caracterizou sua vida, seu pen- samento [...] Esse coragdo venenoso das coisas e dos homens, eis, no fundo, 0 que sempre tentei trazer a luz.” (Foucault, 2016b, P. 44-45) A partir de entio, o filésofo diz entender por que certas pessoas veem cm sua escrita uma espécie de agressio, como se ela (ou ele?) as condenasse A morte. Irdnico, declara ser mais ingénuo do que tais pessoas pensam, dado que nig as quer mortas, apenas supde que jé o estejam. Numa estocada final, fustiga as pessoas que o criticam: “E por isso que fico muito surpreso quando as ougo gritar (...] tio espantado quanto 0 anatomista que sentisse brusca- mente despertar sob 0 seu bisturi o homem sobre o qual quis fazer uma de- monstra¢o. Bruscamente, os olhos se abrem, a boca comega a urrar, 0 corpo a se retorcer, € © anatomista se espanta: ‘Puxa, entio ele nao estava morto!”” (Foucault, 2016b, p. 45) Ha muito mais na entrevista em pauta, mas as paginas escasseiam. Contento-me, assim, em esclarecer 0 motivo da expressio “o belo perigo”, usada para singularizar a escrita de Foucault. & ele proprio quem a utiliza, depois que Bonnefoy lhe pergunta se nao haveria um parentesco entre sua desaparigdo na escrita - Foucault acabara de afirmar, como voltara a fazer em A arqueologia do saber (1969), que “escrever é perder seu proprio rosto” —e a desaparicdio do homem postulada em As palavras e as coisas (1966). Foucault responde afirmativamente, mas evoca o risco que corre, fazendo-o: o de ser diagnosticado como esquizofrénico por um psiquiatra cuja “sombra grotesca” ja se delineia, e que, como consequéncia, trard a certeza de que seus livros nao so mais que delirio, Alegra-se, no entanto, ao se ver fazendo, juntamente com oentrevistador, uma experiéncia que consiste justamente em declinar, em pri- meira pessoa, 0 discurso neutro e objetivo em que sempre procurara se apagar nos livros, Concordar com o parentesco proposto por Bonnefoy nio subtrai valor a tal experiéncia: “E o belo perigo, o perigo divertido, dessas conversas.” (Foucault, 2016b, p. 75, grifos nossos) Rastros de infamias Rompido o fascinio com “a grande estrangeira”, a escrita foucaultiana volta- ~se para textos distantes do cfinone literario modernista e/ou para a pratica do jornalismo, Serd privilegiado aqui, todavia, outro caminho expositivo: aquele em que emerge um Foucault que mais do que praticar uma arte (propria) da escrita pretende unicamente compilar, por meio de documentos de arquivo, vidas infames. Ao menos nas intengdes declaradas, jd que ele jamais se furta a a igitl..---- LL... Leer Eseritas de si Ny colocar em anilise 08 rastros deixados em certos compos nio a sua, Incluem-se nessa vertente dossiés relativos g da Uma ego. tistas Pierre Riviére ¢ Herculine Barbin -, bem coma g tyr’ Vidas yy livro de Foucault, A desordem das familias. 2, Menogt, Bu, Pierre Rivtre, que degolei minha mie, minha irra my é um tribalho coletvo decorrente de um seminatio ng gy ™sy O titulo reproduz o inicio do texto escrito em 1835 pel oue8e de 7 a pedido do juiz responsével pelo julgamento do triplg 9 n° Cimpe® cometido- memorial acerca do qual afirma Foucault: “Esse ‘ant be cidimos no interpreté-o e nem Ihe impor qualquer comenase™ la} ou psicanalitco" [..] por nfo nos ser possivel falar dele sem not desses discursos (médicos judicidrios, psicolbgicos,criminolgginen queriamos falar a partir dele.” (Foucault, 1988, p. XIV) Ji Heng 8 o diério de um hermafrodita, datado de 1978, é novamente um lin dedicado, no caso, as memérias da professora de instituicdes ie viu interrompidas as delicias do “limbo feliz de uma niio idendeeiere se-viu envolvida em dispositivos médicos voltados a inscrever, emse,. subjetividade, “o verdadeiro sexo”” (Foucault, 1982, p. 6), Este ultimo livro constitui o primeiro volume da coleglo Vidas pana que Foucault idealizou para a Editora Gallimard e teve vida efémera, Ap, pria colecdo jé substituia uma antologia malograda que ele antes projen nna qual desejava incluir os arquivos do Hospital Geral e da Bastiha, eos introdugao seria 0 texto “A vida dos homens infames” — publicado, em de corréncia, na forma de artigo isolado.” Jé A desordem das familias, de 198, reune, finalmente, o material documental que o fildsofo coletara na Bibliotec: do Arsenal & época da preparagio de Histéria da loucura (1961). A obratee pouca repercussio, possivelmente porque a escrita do proprio Foucault ( coautoria com Arlette Farge) limita-se a introdugdo geral e és conclues bem como a apresentagao da parte relativa & conflitiva entre pais ¢ files ficando aquela voltada aos conflitos entre esposos a cargo da historiadot €M Seu compe, 16, ssa decisio de Foucault fol objeto de critica dsperas por parte do historadorin® Carlo Ginzburg, Para uma andlise da polémica, ver Albuquerque Jinior (199) ie 17, Além do manuscrito autoblogréfico escrito por Herculine depois de fore ‘identidade masculina e nfo longe de seu suicidio, o dossié contém dados hist relatorios médicos e noticias da imprensa, além da novela Um escdndalo no co" Psiquiatra alemio Oscar Panizza, {8. Em palestra na Uer}, o sociélogo francés Eric Fassin contestou ¢ atribuindo a Foucault um fascinio acritico, quigé ausente na propria nio-identitario, Ver, a respeito, Fassin (2014). da en 19. Este € 0 titulo do preficio de Foucault & edico norte-americana, il Somente incluido na mals recente edigdo francesa do livro, datada d2 204 7p, 20. La vie des hommes infames”, Les cahiers du chemin (n. 29, 15 de ane" ssa perspec Herculine. Pe? ‘ “ igit...u.-- LL... Lo ee ner Ensaio sobre a escrita em Michel Foucault Todo o restante do livro é ocupado pela cuidadosa transcrigao de arquivos concernentes as lettres de cachet; mais precisamente, pelas “stiplicas dirigidas seja ao tenente da policia seja diretamente a Casa do rei para obter do sobe- rano uma ‘ordem?’ restringindo a liberdade do individuo (podendo tratar-se de uma residéncia forcada, de um exilio, porém, mais frequentemente, de uma internagaio” (Foucault e Farge, 1982, p. 9). Com tudo isso, desponta a segunda vertente do presente ensaio, dedi- cado nao sé a escrita de Foucault, mas, igualmente, a genealogia, por ele efe- tuada, dos diferentes modos de escrita praticados no ocidente. Serio focali- zadas algumas observacées contidas em “A vida dos homens infames” — texto que condensa muitos aspectos das obras mencionadas nesta se¢do. Primeiramente, cumpre frisar a novidade presente na abordagem foucaultiana das lettres de cachet: a0 contrario da tradi¢ao historiogréfica, Foucault leu minuciosamente esse material (nunca efetivamente lido antes?) e, em fungio disso, péde afirmar que, menos do que serem um instrumento do poder absoluto contra seus inimigos politicos, tais documentos com selo real decorriam primordialmente de solicitagdes populares - maridos que de- nunciavam esposas ¢ vice-versa, pais que denunciavam filhos, vizinhos que denunciavam seus préximos etc. Como exemplo dessas “novelas”, como as apelida o fildsofo, eis parte da relativa a Mathurin Milan, internado no hos- picio de Charenton em 1701: “A sua loucura foi sempre o esconder-se da familia, levar uma vida obscura no campo, ser processado, emprestar a usura ea fundo perdido, passear seu pobre espirito por caminhos esconsos e crer-se capaz dos maiores cometimentos.” (Apud Foucault, 1992b, p. 90-91) Em segundo lugar, Foucault nfo se cansa de apontar as impresses que Ihe causam relatos como esse, capazes de nele percutir “mais fibras do que aquilo a que vulgarmente chamamos literatura”, sem que ele proprio saiba dizer se isso se deve a beleza do estilo clissico neles empregado ou aos excessos que eles contém escla de sombria obstinagiio e perfidia daquelas vidas de que pressentimos, sob a pedra polida das palavras, o descalabro e a sanha” (Foucault, 1992b, p. 91-92). Por fim, ele reconhece que o livro - Foucault se refere a antologia malo- grada — nao agradard aos historiadores de oficio, pois a coleta dos “poemas- ~vida” obedece a algumas regras simples, das quais sero priorizadas, para nossa propria anélise, as seguintes: incluir somente personagens realmente existentes; ¢ incorporar relatos que nao sejam apenas anedéticos, mas parte efetiva da historia de determinadas existéncias. A primeira regra parece sim- ples ou mesmo simpléria, a nao ser que se visualizem os nexos que possui com a segunda, Pois se Foucault privilegia escritos que possuam o maior niimero Possivel de relagées com a realidade, isso jamais se dé no sentido de fidelidade ou valor representativo: 45 igit...---- LL... Loe. -er Everts de sh vane peas foram “representadas” nestas Pouca vito diet que elas ai foram retratadas, masque aoa, Iiberdade, a sun desgraca, Por Vezes a sua morte, em toa rid seu destino ai foram, pelo menos em parte, decigiga, 0° cat discursos realmente atravessaram vidas; tais existénciag Steg, efetivamente postas em risco € deitadas a perder Restag fo (Foucault, 1992b5 P- 96). Palavray Para além do caréter performativo dos discursos, bem caracter: citacdo anterior, algo mais emerge no texto foucaultiano: 0 Paradoxe, A Ong scura aque somente se tem acess0 Por seu encontro com o podey «Vt Guent impossibilidade de falar dessas vidas em si mesmas, ‘em estaie visto que estio indissoluvelmente ligadas aos jogos de poder que as lie, de certa maneira;" e a inanidade de tentar passar para 0 outro lado Fray em que as vidas falariam por si proprias - ja que seu destino tomou at da relagio com o poder, quer dizer, da Iuta com ou contra ele. Medi esse encaminhamento do problema, Foucault decerto responde aqueles que co acusam de ser incapaz de ocupar um lugar diferente daquele do poder ey faz com maestria, Ainda mais caso se leve em conta a espécie de paradoxo, oy mesmo de vinganga, que, segundo ele, fez com que as existéncias daqueles “zemenddes, aqueles soldados desertores, aquelas vendedeiras de roupas, aqueles tabelides, aqueles monges vagabundos” chegassem até nés: “A sone que permite que aquelas pessoas absolutamente destituidas de gloria surjam em meio a tantos mortos, que gesticulem ainda,” que continuem a manifesr a sua ira, a sua afligdo ou a sua invencivel mania de divagar, talvez compensea ma fortuna que sobre elas atraiu, malgrado a sua modéstia ¢ o sew anonimato, o claro do poder.” (Foucault, 1992b, p. 95-102) Para concluir a presente se¢do, mais uma nota somente: tanto 0 liv -dossié de Herculine Barbin como 0 artigo “A vida dos homens infames"” Possuem relagdes estreitas com a relevancia que Foucault empresta & com fissio para a constituigao seja da escrita, seja das subjetividades no mundo oc dental moderno. No artigo, ofilésofo adverte que talvez no se deva sueubs a0 efeito quase cémico dos relatos dirigidos ao rei ou a seus represent” invariavelmente acompanhados de stiplicas e reveréncias de estilo Br2" quente, dado que, “na época classica, o discurso do poder e 0 discuss? a sf (1990 Le Gof rei na entre 21. Sobre o documento como monumento forjado por forgas historicass aqui-tem? 22. Aimagem do morto que gesticula re possula ganha tonalidade distinea da que possul cna nesta Gltima, era uma ironia de Foucault quanto a seus criticoe® 2 Ato & (paradoxal resistencia a0 poder, de cardter imanente ou agonist osingil® rnarrativa de Pierre Rivitre nfo éalhela& confissio, mas apresenta c®"8°6" 997). «ue nko pode ser lnclulda sem ressalvas a série, Sobre isso, consular Andrade git... -L... Lo... e..ner Ensaio sobre a escrita em Michel Foucault ele se dirige engendram monstros” (Foucault, 1992b, p. 110). Mas, principal- mente, faz notar que esse poder sobre o mais ordinirio da vida fora organizado pelo cristianismo, que tinha criado a “obrigacio de fazer passar pelo fio da lin- guagem 0 mintisculo mundo de todos os dias, os pecadilhos, as faltas, mesmo que imperceptiveis” (Foucault, 1992b, p. 110). Tal “ritual de confidéncia, no qual aquele que fala é ao mesmo tempo aquele de quem se fala”, apaga a coisa dita por meio de seu proprio enunciado, que, secreto— como deve permanecer aconfissio auricular cristd —, nao deixa trago atras de si: “Tudo dizer para tudo apagar.” (Foucault, 1992b, p. 111) Cumpre observar, contudo, que, a partir do final do século XVII, a confissdo é enquadrada em um mecanismo adminis- trativo, no mais religioso; em um mecanismo de registro, naio mais de perdao. Mas 0 objetivo permanece o mesmo: “Discursificagio do cotidiano, revista do universo infimo das irregularidades e das desordens sem importancia.” Cria-se, assim, uma enorme massa documental que abarca “todos os males do mundo” sob a forma de “tracos escritos” (Foucault, 1992b, p. 111-112). Outra espécie de escrita também dard forma a essa discursificagdo de- senfreada. O leitor ou leitora talvez pense na constituigdo de novos saberes, as ciéncias humanas, e nio estar equivocado(a). Mas Foucault surpreende ao apontar, mais nitidamente, para um novo regime de literatura, instaurado na virada do século XVII para o XVIII. Até entio, a fibula era o lugar do que merecia ser dito porque fabuloso, isto é, marcado por um toque de impossivel. Desde entio, “o Ocidente viu nascer toda uma ‘fibula’ da vida obscura, de onde o fabuloso se achou proscrito” (Foucault, 1992b, p. 125). O que nao se dizia, o nao evidente, 0 oculto, o sem gléria, 0 infimo, 0 quotidiano, o infame, em suma, passa com isso a constituir “a ética imanente do discurso literario do Ocidente” (Foucault, 1992b, p. 125). E Foucault que, nos anos 1960, tanto prezava a forma na definigao da literatura moderna, desloca tal caracterizagiio para a ética: Mais que uma relacao essencial com a forma, é este constrangimento, eu ia dizer esta moral, aquilo que a caracteriza e que até nés transportou o seu imenso movimento: dever de dizer os mais comuns dos segredos. A literatura nao resume por si sé esta grande politica, esta grande ética discursiva; também nfo se the reconduz inteiramente; mas é ai que ela tem seu lugar e as suas condigdes de existéncia (Foucault, 1992b, p. 126). Nesse sentido, a posigao singular da literatura moderna, que toma a seu cargo o escindalo, a transgressio ¢ a revolta, “niio ¢ sendo o efeito de um certo dispositivo de poder que atravessa, no Ocidente, a economia dos discursos ¢ 47 igt....-.-- LL... Lo... LL e....er — Eseritas de si . iro” (Foucault, 1992b, p. 127), as ext oy i 102), eu encerraria esta SeC%g gy. i vtie de que eu quis juntar aqui alguns restos, ig, eat ae oimplicante interlocutor imaginério, que Fepetidamente te Citys bisturi pouco afiado que traga linhas incertas sobre o corpus foucauige 4eby escrita, Passemos, enti, 20 tltimo Foucault, tag Esculpir-se Sugere Frédéric Gros (2004) que o segundo e terc Histéria da sesualidade tenham tardado oito anos aps: meiro no tanto por uma “crise” de Foucault, enquanto efetuava seu recuo histérico-geneal do sujeito do desejo,¢ sim pela descoberta, cuidado de si- nova problematizagio a qual inteiraliberdade” em funcio de obriga Varios volumes da série prometida, Porém, se nfo em livros, 0 cuidad. cursos do Collége de France,em especi Ali, os “exercicios espirituais” SiO Volumes dy «.. 5 APOS a publicacig oe cuja criacao estaria l6gico em busca da ¢ na antiguidade, © fildsofo nao po, \gOes contratuais, poi bloguead 'MergEng, da experiencia y de se dedicatcom is deve a Gallimard aparecerio escrita, entendida/praticada como esc em minticia, Entre eles(as), a rita de si.E apés uma atribulada trajetéria por tantos modos de escrita de Foucault eou modos de escrita por ele analisados, finalmente se atinge o que foi privilegiaio wait 8 1980 € que, sem diivida, remete ao problema que se pode chamar dt » Publicado em 1983, Nele, um antetexto do: fis. sofo esti em pleno acordo com as Consideragdes precedentes: “Estas pigias fem parte deuma série de estudos soles artes de si mesmo’, isto so noe dct dt existencia eo governo de sie doe outros na cultura greco-romas nos dois primeiros séculos do Império.” (Foucault, 1992a, p. 129) de-se dizer que esse antetexto atenua algumas das provocativss arm ® Que Permeiam a escrita de Foucault: costumeiramente, ele iniias* t0s palataveis, com os quais o(a) leitor(a) — Malidade de homem/mulher “de seu tempo” fr vel ~ de poucos parigrafos a muitas paginas ~> volt do titulo, apenas dois capt ba ©"O eu e os outros” (Foucal igita.-.- -_... -2...---. ner identifica na gy xtensio varig apés uma Ensaio sobre a escrita em Michel Foucault esse leitor gritar por perceber-se iludido pela estratégia do genealogist.” No artigo em pauta, para alguém que tenha descartado a leitura do antetexto, as primeiras consideragdes de Foucault sobre a escrita de si soam aceitaveis, reconheciveis, pois ele remete a Atandsio, que solicita: “Que cada um de nés note € escreva as agdes ¢ os movimentos da nossa alma, como que para no- Jos dar mutuamente a conhecer...” (Apud Foucault, 19922; p. 129-130) # claro que as referencias posteriores do autor cristo ao pecado, a impureza, 4 fornicagao e, principalmente, ao Inimigo poderiam desencorajar tal “reco- nhecimento” por parte de um nao-religioso; porém mesmo este talvez nao discordasse integralmente de que “quem consente ser visto quando peca, & apds ter pecado, prefere mentir para ocultar a sua falta” e que “escrevendo ‘0s Nossos pensamentos como se os tivéssemos de comunicar mutuamente, melhor nos defenderemos” (apud Foucault, 1992a, p. 130) - contanto que 0 relativo a alma, ao pecado ed salvagiio fosse atualizado, substituido por termos como “psiquismo”, “mal-estar”, “satide” etc. Além de fornecer 0 antetexto que evitaria tais identificagdes-armadilha, Foucault no tarda a desencorajar os que porventura admirem, mais clara ou mais secretamente, as palavras de Atandsio. Apés rapida apreciago dessas palavras, apelando a analogias e contrastes, expde seus proprios objetivos para iniciar 0 artigo com o que é dito, acerca da escrita espiritual, por um autor cristdo: Podemos captar nele bastantes tragos que permitem analisar retrospectivamente o papel da escrita na cultura filos6fica de sina época imediatamente anterior ao cristianismo: a estreita ligacdo A camaradagem, o ponto de aplicagiio aos movimentos do pensamento, o papel de prova de verdade. Estes diversos elementos encontram-se ja em Séneca, Plutarco ou Marco Aurélio, mas com valores extremamente diferentes ¢ de acordo com. procedimentos de todo outros. (Foucault, 1992a, p. 1325 grifos nossos) A partir dese momento, o texto volta-se para uma detalhada especifi- cagio desses valores extromamente diferentes ¢ desses procedimentos de todo outros, excetuando-se apenas 0 fato de que pagiios e cristios coincidem em nao acre- ditar que a arte de viver possa ser adquirida sem exerci ios, ou melhor, sem uma dskesis, entendida como “adestramento de si por si mesmo” (Foucault, 1992a, p. 132). A dskesis aparece, remotamente, sob a forma de abstinéncias, ‘em Vigiar e punir e Histéria da sexualidade | 25. Essa estratégia est presente, por exemplo, a “"p casa dos loucos” (Foucault, 1979). entre os livros; entre os artigos, pode-se destacar 9 igi... LL... Lee. -er Escritas de si memorizagbes, exames de consciéncia, meditages, stan miss tardiamente a escritn passa a ter papel considersyel °° documentos dos séculos I ¢ II como etapa essencial, 0, 38 ela its pregar uma expressio de Plutarco, uma funcdo erapoisgen sino, Gaverdade em dos” (Foucault, 199205. 134). Para tanag et os iypomnemata¢ a correspondénci, de um modo, fige seth -nos ao estranhamento de nds mesmos pela “exposigo a un, We Pog estranho” (Foucault, 1984, p. 13). Saber Originalmente livros de contabilidade, registros notari pessoais com fungio de agenda, 08 hypomnemata, nos séeulma', 4 Hany lados, passam a ser prética corrente, entre um puiblico cultivadg i Site da vida, guia de conduta”, Incluiriam eles confissées, objtivaggec tt do mais profundo da consciéncia, expresses sinceras de semtin movimentos infimos da alms, como viri a propor Atandsio? Tie contro, Nos /yponmemata slo anotados fragmentos de obra, agg? se tenha sido testemunha ou cujo relato se tena lido, reflexdes ou ae” ouvidos ou evocados. Nessa linha, constituem “uma meméria mal coisas lidas, ouvidas ou pensadas”, oferecidas, qual tesouro acumula leitura e & meditagio ulterior. Formam também “uma matéria-prima pany redagio de tratados mais sistematicos”, nos quais si fornecidos meios an “Jutar contra este ou aquele defeito (como a célera, a inveja, a tagarelice, abi. julago) ou para ultrapassar esta ou aquela circunstancia dificil (um luto,ua exilio, a ruina, a desgraga)” (Foucault, 1992a, p. 135). Nao sio, porém, mes auxiliares da memeéria, pois se oferecem ao exercicio da meditagio, a fimét que estejam permanentemente “i mio” - mais do que presentes & cons: éncia, devem ser utilizéveis na agiio. Em tudo diferentes dos diirios ition de qualquer espécie — religiosos, literdrios, autobiograficos etc. -, que, com” narrativas de si, inclinam-se sempre, em algum sentido, a purificagio (0% menos, 4 revelagio), propiciam a constituigio, para os que os escrevem/ar ditam, de um logos boethikos, conforme a expressiio de Plutarco: “Um equip mento de discursos a que se pode recorrer, susceptiveis [... proprios a voz e de fazerem calar as paixdes, como 0 dono ques palavra, sossega o alarido dos cies.” (Foucault, 19928, P. 136) OW ay fere Séneca, “profundamente implantados na alma, ‘gravados n° Veiculos de uma “subjetivagio do discurso” (Foucault, 19928 P 137% ag Enquanto a literatura cristi e, mais tarde, a das ciéncias MUM. ae cologia e psicandlise em destaque -, com os dispositivos ue thes i 85 sesst ciados ~ confissio, enquetes, consultas, didrios, autobiografias» ee isa? ~,aspiram a captar 0 nio dito, 0 movimento que 08 /yPOMMEN 4 ott efetuar é exatamente o inverso;‘“Trata-se, nio de persegult 01 is ve revelar o que esté oculto, mas, pelo contrario, de eaptar 0 8 dito} | ‘Que fy NEO igit....te- LL... Lo ener Ensaio sobre a escrita em Michel Foucault que se pode ouvir ou ler, ¢ isto com uma finalidade que nfo é nada menos que aconstituicdo de si.” (Foucault, 1992a, p. 137) Entre imimeras aproximacées foucaultianas aos hypomnemata que, in- dependentemente de sua acuidade, niio serdo expostas aqui, cumpre minima- mente ressaltar que a escrita desses cadernos pessoais, nas relagdes evidentes que mantém com a leitura, nfio tem por alvo amontagem de um corpo de dou- trina, mas sim, como propde Séneca, a montagem do “préprio corpo daquele que, ao transcrever as suas leituras, se apossou delas e fez sua a respectiva verdade: a escrita transforma a coisa vista ou ouvida ‘em forcas e em sangue’ [...] Bla transforma-se, no préprio escritor, num principio de ago racional.” (Foucault, 1992a, p. 143) Contudo, se nao ha montagem de corpo doutrinal, ha, decerto, constituigo de si. Menos que formar um retrato reconhecivel, porém morto, daqueles que so lidos e transcritos, deve tornar-se possivel, por meio da escrita dos hypommemata, constituir uma identidade mediante a qual se 1é uma genealogia espiritual. Nas palavras de Foucault (19924, p. 144) “Num mesmo corago hé vozes altas, baixas e medianas, timbres de homem e de mulher.” E nas de Séneca: “Nenhuma voz individual se pode ai distinguir 86 0 conjunto se impée ao ouvido... Assim quero eu que seja com a nossa alma, que ela faca boa provisio de conhecimentos, de preceitos, de exemplos tirados de mais do que uma época, mas convergentes numa unidade.” (Apud Foucault, 1992a, p. 144-145) ‘Chegamos, por fim, as cartas — ponto focal do livro a que pertence este ensaio, A radical diferenga que o exercicio da correspondéncia poderia vei- cular quanto aos hypommemata — a presenca do outro como interlocutor im- prescindivel - a principio se dissipa, quando advertimos que esses livros da vida podem servir de base para textos enviados a outras pessoas (cartas, em suma) e que as cartas, em contrapartida, também dio lugar a um exercicio pessoal de meditagao: a carta tanto atua sobre quem a envia, em virtude do gesto da escrita, como sobre quem a recebe, via leitura e releitura. No que tange a esse aspecto, Foucault dé grande destaque & correspon- déncia entre Séneca e Lucilio: retirado da vida publica, o primeiro continua a exercitar-se ~ no periodo helenistico-romano, 0 cuidado de si deve ser pra-~ ticado durante toda a existéncia - por meio da diregio de consciéncia do segundo e, além disso, conta com sua ajuda para o proprio trabalho de si sobre si-a presenga do outro é requisito para tanto. Ocorre também algo ainda mais explicito: o servigo que aquele que escreve presta a seu correspondente Ihe é eventualmente restituido sob a forma de “conselho equitativo” (Foucault, 1992a, p. 148), Empregando palavras que evocam, como é frequente entre os estoicos, o atleta, escreve Séneca a Lucilio: SI igi. LL... Loe. er jutador conserva-se pelo exercicio continy, dr joo bio necessita manter em ut assim, cle réprioincentivando;recebe ang ; ; le as cartas nao sio mero pro} »m igualmente uma forma, = Essa presenga nao é me; Cady em comums jos cadernos pois constitue! ifestar para sie para os outros. Essa pre vos «Escrever € pois ‘mostrar-se’, dar-se a ‘9 outro”, escreve Foucault tonne 150) apoiado em ; seu filésofo estoico prefer dot ventar ainda que @ reciprocidade que se instala na cone. imita ® ajuda, atingindo o olhar € 0 exane sein, labora no sentido da subjetiagiy da sua elaboracio como ‘ben po uma objetivago da alm” informativa, ™as se fisic to proprio junto jubitavelmente do discurso verdadeiro, proprio’, consticul tambs (Foucault; 19928; P. 1. 51) ‘Com base nessas ultimas consideragdes € k cidade presente na ‘correspondéncia — 0S efeitos 8 quanto no emissor ~> Foucault menciona um trabalho de “introspecsio” Preocupado com o modo como 0 {e170 possa ser recebido, adverte: “Higa entender esta menos como uma *jecifragdio de si por si mesmo do que como time abertura de si mesmo que se dé a0 outro.” (Foucault, £9928 P.15)4 seguir, todavia, uma modulacdo nO due tange & histéria da cultura de sic mega a aproximar a filosofia antiga de desenvolvimentos que jé enc Sit A subjetivagaio moderna. Dizo fildsofo, entao: levando em conta a recipe ¢ dao tanto no destinatitn Os primeiros desenvolvimentos hist6ricos da narrativa desinlo devem ser procurados pelas bandas dos “cadernos pessoais”, 4 Aypomnemata, cujo papel é permitir a constituigao de sia Pat da recolha do discurso dos outros; em compensagio,é Pos Na sequéncia, Foucault traz 4 cena o que podemos denominerg da verdade de algumas outras escolas filosoficas, dado que, ne em Demétrio, a avaliago da utilidade dos conhecimentos passe de possuirem, ou nio, efeitos sobre a mancira de agir (éthas) do 5 terem ou nao, como diz, Plutarco, carter “etopoético” Foucault, 20045,» 290). Passando 4 leitura de textos epicuristas, neles também identifica uny nogao ligada ao modo etopoético de funcionamento, a bhysiologia (fisiotogi), Foucault, entio, acompanha Epicuro quando este, nas Sentengas vaticanas, inicialmente aponta o que ela no é: “O estudo da natureza (Physiologia) nig forma fanfarrdes nem artistas do verbo, nem pessoas que ostentam une ce ‘ura julgada invivel para as massas, mas homens altivos ¢ independentes que se orgulham de seus préprios bens, nao dos que advém das circunstiness™ (Apud Foucault, 2004, p. 291) Tudo aquilo que a physiologia nao & carats & baideia;* a respeito da qual, diferentemente de muitos contemporints Epicuro ¢ radicalmente critico: trata-se de um saber de jactincia, de um cultura elaborada por “artistas do verbo”; melhor dizendo, artistas da palavta Entendida como ruido (e niio como logos), cuja tinica meta é “fazer-se admit Pelas massas” (Foucault, 2004b, P. 292), Diferentemente da paideia, 0 a {22.8 plosiologia? Para retomar as palavras de Epicuro, ela prepart, la ai (Paraskeudzei) homens altivos que se dotam da coragem que Ihes perl alrontar as crengas, os perigos da vida e as autoridades. oth Para quem se interessa Pelas praticas da formagiio na contemp' coin? tincdo entre physiologia e paideia, embor vase) dos anacronismos, um equipamento Oe ue efetivamente importa? A paraskeué, diz €“a equipagem, a Preparagio do sujeito eda alma ma estardo armados como convém, de manera Ne 2S, cong Pelo fay yjeito, de lo de evitar desastra Precioso para avaliar o (2004b, p, 293), © sujeito ea a 26. Acerca da Nosho grega de paideia, consultar Jaeger (2001). igit...--- LL... Lo. er Ensaio sobre a escrita em Michel Foucault suficiente, para todas as circunsténcias possiveis da vida com que viermos a nos deparar [...] 0 que permitiré resistir a todos 0s movimentos que poderiio advir do mundo exterior.” Debater, no contemporaneo, governo e resisténcia, conduta ¢ contra- conduta, obediéncia e insurgéncia~a escolha dos termos aqui importa pouco ~ implica, talvez, que formemos e nos formemos menos via um corpo dou- trinal rigido do que por meio daquele(s) capaz(es) de nos equipar com a co- ragem da verdade” (parrésia); menos pela adesio a um modo de vida saudavel ¢ tranquilo, despreocupadamente imerso nos dispositivos hegeménicos, do que pela invengaio coletiva de tecnologias de si aptas — por mais que sem garan- tias — a nos libertar - a0 menos em parte — do que tem sido feito de nés por tantas paideias, empreendedoristicamente bem instaladas em um mercado neoliberal de bens de salvacio. Aeescrita, indubitavelmente, e a escrita de si, no que singularmente nos ocupa, so partes de nao pouca importdncia nesse processo de constituigao de modos contempordineos de vida vivivel. A escrita de si, por meio de cartas ou de outros veiculos — livros, por exemplo, que so, lembramos, longas cartas a amigos -, vem sendo subordinada ao biogrifico. Acredito que 0 ensaio que ora se encerra tenha sido capaz de ao menos sugerir, quer por meio das biogra- fias menores, rastros de infamia, quer mediante a escultura de equipamentos de coragem, que 0 sujeito, outrora entendido como o mais préprio da expe- rigncia, precisa ser, hoje (e sempre?), radicalmente abalado, desconstruido, “desatado” de si. Para tanto, entre as coisas que tenho lido além de Foucault — faco isso, acreditem! -, encantaram-me nos iltimos tempos: a nogio de autoficgio (Klinger, 2012, 2018), as aventuras do contar-se (Rago, 2013; Rosa, 2013), 0s lagos entre animalidade, literatura e biopolitica (Giorgi, 2016), o saber noturno e os ensaios sobre a singularidade (Hara, 2017, 2012), a ética bixa (Vidarte, 2019), a correspondéncia de Artaud (2017). Sem paginas disponi- veis para sobre elas escrever, trago unicamente uma frase de Clarice Lispector, em Agua viva, extraida de uma das obras dessa coleta permeada de desejados efeitos de perturbagaio: “Escrevo ao correr da maquina, Muita coisa no posso contar. No vou ser autobiogréfica, Quero ser ‘bio’.” (Apud Giorgi, 2016, p. 133) 27. Sobre a parrésia, 0 arriscado franco falar, pouco ou nada abordada, embora sempre Pressuposta, neste ensaio, ver 0 curso de 1984 A coragem da verdade (Foucault, 20!Ib). 7 igt....---- LL... Lo... a....er Eseritas de si Referénelas Augen Meroe oir: ciinsos py ron ned parla owe, Pre Rie Hern a, sey bro, Tempe veut Aperde de sh arts de Antonin Artaud Rio deanery Reeea 297 Arrest, PApresenagfo" nM, Foucault A grande estan Sobre Horizonte: Auténtica, 2016 eta Burtin-Vinholes, S. Diciondrio francés-portugués, Portugués-francés, Porto Alegre: Dot, RP Miche! Foucault ntreistas, Rio de Janeiro: Gral, 2006 Se, Fin ont’. Fouls Heri Bath de cn Pr ga Foucault M."A eat dos ours’ Mite do pader, Rio de Janina i579" > "Overdsro sex, Hen Barn: o do de um hemofodnanr im Francisco Alves, 1982 Anti, > uso dos prozeres [Hitadoseeuadode I] Rio de Janeiro: Gra ~ Qaida desi Histria do senuldade I] Rio de Jancre: Grae Boo =. 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