Flávia Biroli_GêneroEdesigualdades_2.Cuidado_e_responsabilidades 1

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SUMARIO Introdugao 9 1. Divisio sexual do trabalho 21 2. Cuidado e responsabilidades 53 3, Familia e maternidade 9 4, Aborto, sexualidade e autonomia 133 5, Feminismos ¢ atuagio politica 171 Conclusio 205 Bibliografia 213 Sobre a autora 229 Scanned with CamScanner © Boitempo, 2017 © Flivia Millena Biro Tokarski, 2016 ‘Todos os direitos reservados. sta publicagio ecebeu apoio do CNPq (405604/2013-0) e da FAP-DF (0193.000832/2015). Dirge editorial Wana Jnkings Eeigto \sabella Marcas Asisténcia editorial Thaisa Burani ¢ Carolina Yassui Prepanagto Wone Benedetti Revisio Thais Rimkus Coordenacio de predugio Livia Campos Capa Antonio Keb sobre Dey low Gren Gil (aril sbre madera), de Edgar Garcia Diagramagéo Crayon Editorial Equipe de apoio: Allan Jones, Ana Carolina Meira, Ana Yumi Kajiki, André Albert, Artur Renzo, Bibiana Leme, Camilla Rllo, Eduardo Marques, Elaine Ramos, Frederico Indiani, Heleni Andrade, Isabella Barbora, vam Oliveira, Kim Doria, Marlene Baptista, Mauricio Barbosa, Renato Soares, “Thals Barros, Talio Candiotto CCP-BRASIL. CATALOGAGAO NA PUBLICAGAO SINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, RJ BS2g Biro, ia, 1975 (Geneoe desigualade os limites da demeeracia no Bras / iva Bll. 1. ed - Si0 Paulo Boitempo, 2018. Inca biog ISBN 978.85-7559-604.3 1, Soilogia. 2. Citncia politica. L Tilo 1746758 cop: 306 CDU:3167 vedada a reprodu de qualquer parte deste io sem a expressa autorzaio da editors. 1 edigo:fevereiro de 2018 1 reimpresso: lho de 2018; 2 reimpressio: margo de 2019 BOITEMPO EDITORIAL Jinkings Editores Asociados Leda. Rua Pereira Leite, 373. (05442-000 Sto Paulo SP “Tels (1) 3875-7250 / 3875-7285 editor@boitempoeditoral.com.br | www.boitempocdi -wunublogdaboitempo.com.br | wwwfacebook.com/boitempo ‘worw.ewitercomleditraboitempo | ww.yourube.com/evboitempo Scanned with CamScanner 54) GPNERO F DESIGUALDADES. de cuidado a todas as pessoas’, estabelecido como alternativa ético-politica a0 neoliberalismo’, Aqui, 0 fato de que todos somos vulnerdveis e em alguma medida depen- dentes de cuidado ¢ abordado como um problema politico de primeira ordem, O cuidado esté, no entanto, longe de ser um tema com alguma centralidade ‘nos estudos teéricos e empiticos sobre a democracia. No Brasil, é uma questio pouco presente, sobretudo na Cigncia Politica, embora pesquisadoras das Areas de Sociologia e Antropologia venham se dedicando sistematicamente a com. preender as articulagdes entre género, cuidado e familia ¢ entre género, cuida- do e trabalho’. Oacesso desigual a cuidados necessirios ea posigio de quem cuida compéem dimensées das desigualdades de género, classe e raga que, como aqui argumen- to, constituem problemas para a democracia por pelo menos dois motivos. As relagdes de cuidado demandam cempo e, em sua forma privatizada, dinheiro, Estamos, portanto, falando de recursos que séo também importantes paraa participagéo politica, o que me permite estabelecer uma conex4o com os padroes de inclusio, no debate piiblico e na agenda politica, das experiéncias, das ne- cessidades ¢ dos interesses de quem cuida e de quem encontra barreiras para ser cuidado. Hé, como na divisio sexual do trabalho, um paralelo entre as posicdes de desvantagem nas relagdes de cuidado e a exclusao ou baixa presen- ga nos ambientes em que les e politicas séo definidas. Isso nos leva a0 segundo motivo para considerar 0 cuidado como problema para a democracia, As relagbes de cuidado, apesar de envolverem dimensies profundamente pessoaise fetvas da vide, organizam-se em ambientes ins tucionais ¢ econémicos especificos. As alternativas nas relagGes cotidianas e os lade e solidariedade séo estruturados, e pesam, padrées correntes de social 7 oan © Tronto, Caving Democracy: Markets, Equality and Justice (Nova York, New York Uni- versity Pes, 2013) e"There isan Alternative: Homine: rant and the Limits of Neoliberalism’, International Journal of Care and Caring, ¥. 1, 1. 1, 2017, p. 27-43. Idem, “There isan Alternative”, ct Vale conferr a coletinea sobre cuidado e cuidadoras organizada por Helena Hirata e Nadya ‘Araujo Guimaries, Cuidado e euidadoras: as vdrlas faces do trabalho do care (Sio Paulo, Alas, 2012) ¢ também o trabalho de auroras como Clara Aratjo ¢ Céli Salon, “Género ea distin- cia entre a intengio ¢ 0 gesto”, Revista Brasileira de Ciéncia Politica, v. 21, n. 62, 2006, 1p. 45-68; Helena Hirata, “Genero, classe ¢ raga: interseccionalidade ¢ consubstancialidade das relagdes socias", Tempo social, n. 1, 2014; v.26, p. 61-73; Bila Sor), “Arenas do cuidado nas inerseges entre géneroe classe social no Brasil”, Cadernos de Pesquisa, v. 43, n. 149, 2013, p. 47891, entre outras. Scanned with CamScanner 2 CUIDADO E RESPONSABILIDADES A necessidade de cuidado pode ser pensada como parte do cotidiano das pessoas. As formas e a intensidade desse cuidado variam porque somos mais vulneriveis em alguns momentos da vida, como na infancia e na velhice, e porque somos desigualmente vulnerdveis durante a vida adulta, devido a condigées fisicas especiais, a enfermidades ea fatores sociais. Tanto coletiva quanto individualmente, néo se trata de um tipo de pro- blema passageiro: néo é possivel suspender a dependéncia de cuidado, No entanto, 0 cuidado pode ser significado e organizado de formas profunda- mente diversas. A disponibilidade ¢ os padroes de distribuigéo de recursos ateriais ¢ tecnolégicos, por exemplo, incidem no cuidado das criangas e nas formas que a vulnerabilidade e mesmo 0 sofrimento podem assumir em condic6es de doenca e na velhice. Os recursos disponiveis para atender as necessidades de cuidado sio, assim, um dos aspectos que determinam as difetencas nos modos como certos momentos ¢ certas condigées de vulnera- bilidade sio vividos pelas pessoas ¢ nas comunidades de que fazem parte. ‘Além disso, estamos falando de relagées interpessoais, que envolvem afetos ce alguma proximidade, na maior parte dos casos, independentemente de as pessoas nelas engajadas manterem ou néo lacos anteriores de parentesco, amor ou amizade, Fato cotidiano na vida das pessoas, elemento organizador das suas relagées, as necessidades € os problemas tratados nesta discussio também tém sido vistos como um eixo de disputas no atual ciclo do capitalismo, em que se estabeleceria uma “crise de cuidado” sistémica'. Uma perspectiva ética fun- dada no cuidado e na interdependéncia permitiria, assim, avaliar 0 cardter da democracia, tendo como referéncia 0 provimento igualitério ¢ adequado "Nancy Fraser e Sarah Leonard, “Interview with Nancy Fraser: Capitalism’s Crisis of Care”, Dissent Magazine, 2016. Scanned with CamScanner CUIDADO E RESPONSABILIDADES $5 neles, os padrdes de responsabilizagéo ¢ as formas de concentragio de poder cortentes. Em sintese, 0 ambiente institucional em que 0 cuidado é provido é resultado de decis6es politicas, Alocacéo de recursos ¢ normas regulatérias incidem diretamente sobre o modo como cuidamos ou deixamos de cuidar uns dos outros, Se estas esto sendo definidas por légicas antagonicas as possibili- dades de cuidar e de receber cuidado da maior parte da populagio, falar de cuidado é falar das assimetrias no exercicio da influéncia politica e na confor- macio do mundo. A centralidade do cuidado como problema no cotidiano das pessoas € como problema politico nao tem, conforme mencionei, correspondéncia nas teorias nem nos estudos empiricos da democracia, sobretudo quando ultrapassamos os limites do feminismo. Isso se deve, entendo, ao predominio de concepgées restritas da politica. Ao foco — miope — nas instituigées politicas e nas disputas entre os atores nos espacos formais de representagio pode corresponder o esfu- macamento do cotidiano, das relagées de trabalho e da dimensio macroeconé- mica das decisées, sobretudo quando se considera seu impacto na vida cotidiana. Com isso, as relagées de poder ea interdependéncia no cotidiano, de um lado, ea atuagio de agentes econdmicos privados na conformacio das ins- tituigées, da agenda ¢ das politicas puiblicas, de outro, podem nao ser tomadas como problemas. Abre-se, assim, uma distancia entre, por um lado, os fendme- nos ¢ os espagos considerados para a andlise da democracia ¢, por outro, as ex- periéncias cotidianas das pessoas; ¢ essa distancia se acentua quando se trata das experiéncias dos grupos que tém menor acesso as arenas politicas institucionais. Ha varios nds na construgao do ambiente institucional em que 0 cuidado se estabelece. A legislagio trabalhisea, por exemplo, incide diretamente no cotidia- no das pessoas ¢ no tempo de que disp6em para cuidar de alguém. O tempo é, novamente, um dos recursos que conectam a vida cotidiana eas condigées para a participacao politica, estreitando os caminhos pata que as experiéncias de quem cuida ganhem espago no debate puiblico. Quando o cuidado ¢ mercan- tilizado, classe e renda séo varidveis importantes, nao apenas pela possibilidade de contratagéo de servigos no mercado, mas também porque as condigées de trabalho de pessoas préximas definem a disponibilidade que terao para cuidar de outras pessoas. Penso nas condigées para o cuidado das criangas pequenas, de filhos ou irmaos com necessidades especiais, nos processos de adoecimento em que é necesstio receber cuidado e apoio, na fragilidade trazida pela velhi- ce. A divisdo sexual do trabalho permeia os arranjos, articulada a outros fatores Scanned with CamScanner 56 GONERO B DESIGUALDADES que posicionam ¢ abrem ou restringem as alternativas: mulheres cuidam e sig afetadas em suas trajetérias por estarem posicionadas como cuidadoras; cuidam em condigées diversas, dependendo de sua posigao de classe, em relagbes con- formadas pelo racismo estrutural ¢ institucional. Certas nogées de autonomia, que constituem o debate liberal sobre demo- cracia e justiga, de que falarei adiante, também podem restringir o olhar para a interdependéncia no cotidiano e seu contexto institucional. A autonomia indi- vidual, embora seja um valor de referéncia importante na critica As formas de subordinagéo algo que discuti em livro anterior’ =, pode servir para afastar do debate politico o fato de que somos dependentes uns dos outros ¢ de que é preciso tomar algumas decisées polfticas para que as formas inevitdveis de depen- déncia néo causem prejuizo a quem se responsabiliza por elas‘. Esse debate é fundamental porque 0 horizonte normativo que aqui mobilizo nao 6 0 da su- peragio de todas as formas de dependéncia, uma vez que isso seria impossivel ¢, principalmente, est4 muito distante da condigéo humana. O horizonte que assumo é 0 da definigéo de possibilidades mais igualitdrias de provimento de cuidados, nas quais a dignidade das pessoas prevaleca sobre a 6gica de mercado, Dat a importincia de levar em considerag4o perspectivas que contrastam com as abordagens individualistas, buscando um equilibrio entre garantias individuais, solidariedade social e responsabilidades coletivas e do Estado. As teorias feministas da democracia diferenciam-se de outras correntes te6ricas por dar atengao s relagées cotidianas de cuidado — embora nem sem- pre seja considerada a dimensio da economia politica. Na andlise das formas histéricas de excluséo e marginalizagao das mulheres nas sociedades ocidentais, cessas teorias estabeleceram duas perspectivas fundamentais para a abordagem dos limites da democracia: uma delas é a critica & dualidade entre as esferas publica e privada, uma vez, que nela a vida doméstica foi apresentada como naturale pré-politica, posicionada aquém dos requisitos de justica e de critérios democraticos para avaliar as relagoes; a segunda, bastante conectada a primei- ra, éa ctitica autonomizacéo da politica em relagao As experiéncias concretas das pessoas ¢ is formas cotidianas de dominacio ¢ de opressio. O destaque Flivia Biroli, Autonomia e desigualdades de genero: contribuigées do feminismo para a critica de- -mocrdtica (Nicer6iValinhos, Eduff/Horizonce, 2013). ‘Martha Albertson Fineman, The Autonomy Myth: A Theory of Dependency (Nova York/Cambridge, “The New Press/Poity Press, 2004). Scanned with CamScanner CUIDADO F RESPONSABILIDADES §7 dado as relagdes de cuidado como problema para a democracia esté ancorado nnessas duas criticas fundamentais, Ele seria resttito ¢ mesmo artificial, por outro lado, se no ultrapassasse o bindrio feminino-masculino e nio incorpo- rasse 0 fato de que as experiéncias de cuidado sio diversas ¢ as hierarquias de género sio produzidas conjuntamente pelo patriarcado, pelo capitalismo e pelo racismo, dimens6es interligadas das estruturas de privilégios correntes nas sociedades que aqui tomo como referencia. Para situar o problema do cuidado nos debates sobre democracia e justiga, apresento inicialmente algumas frentes na abordagem tedrica da responsabili- dade. Trato primeiro da diferenga entre o foco nas responsabilidades individuais eaanilise da responsabilizapéo como problema politico. Discuto, brevemente, 0s sentidos que a nogéo de responsabilidade vem assumindo no pensamento liberal, diferenciando o liberalismo de vertente igualitéria das abordagens ul- traliberais. Apesar dessa diferenciagio, argumento que o enquadramento libe- ral do problema da responsabilidade nao permite avancar em diregio a reflexdes capazes de incorporar as injusticas ¢ as vulnerabilidades associadas ao trabalho doméstico e ao cuidado porque ele opera com a dualidade entre piblico ¢ privado ¢, de modo correspondente, entre independéncia e dependéncia. Em seguida, trato da divisio sexual do trabalho, que discuti no primeiro capitulo, aqui analisada como fundamento de formas diferenciadas e desiguais de responsabilizagéo, com implicagées para a participacéo das mulheres na sociedade, sobretudo das mais pobres. Isso porque me parece adequado enten- der 0 cuidado como trabalho — sem que tal afirmagio signifique que se trata de um tipo de trabalho qualquer. Desse modo, pode-se ressaltar que: 1) cuidar exige tempo ¢ energia, retirados do exercicio de outros tipos de trabalho, assim como do descanso ¢ do lazer; 2) a grade de valorizacio (simbélica e material) das ocupagées é determinante na precarizagio do trabalho de quem cuida e na vulnerabilidade de quem precisa de cuidado; e 3) os padrdes de organizacio e (des)regulacdo das relagées de trabalho incidem diretamente sobre as relagdes de cuidado, podendo favorecer ou dificultar a tarefa de cuidarmos uns/umas dos/as outros/as. Por fim, trata-se de alocacio de responsabilidades, como dito, mas isso nao implica limitar 0 foco aos arranjos privados, entre individuos ou entre casais, embora eles denotem elementos importantes nas relagdes de género. O foco que assumo nos leva, sobretudo, ao problema politico de como se estabe- lecem as fronteiras entre responsabilidade estatal, responsabilidade coletiva, Scanned with CamScanner 58. @ieno # DestGuALDADES responsabilidade das familias, responsabilidades mas familias ¢ privatizagio, E, claro, a0 problema de saber quais sio as implicagdes dos diferentes desenhos, comas formas de alocagio de responsabilidades que estes pressupdem e ativam na vida das pessoas. Finalizo sugerindo que ¢ preciso avangar na andlise critica comparada de trés configuragées. O que as diferencia é prevaléncia de solugées privatistas, de solugées convencionalistas ¢ de solug6es coletivistas. Enfatizo as vantagens das tiltimas quando se tem como referéncia uma perspectiva iguali- téria ¢ emancipatéria, que aponte para a ampliagéo de condig6es dignas para as pessoas em diferentes momentos da vida. Do individuo responsavel a responsabilizagao como problema A nogao de autonomia individual € peca-chave das tradigdes liberais de pen- samento, Remonta a diferentes concepcbes de liberdade ¢ agencia moral dos individuos, assim como da relagdo entre Estado ¢ pluralismo de valores, que se estabeleceram em abordagens como as de Immanuel Kant, no século XVIII, eJohn Stuart Mill, no século XIX’, Para além de seu interesse para uima histé- tia dos conceitos ¢ do pensamento politico, trata-se de nogées que participaram da construgéo do individuo moderno, como tealidade juridica, politica e socio- légica. A pluralidade de crengas e valores, em sociedades que se tornavam mais complexas, ¢ a igual capacidade dos individuos, como agentes racionais, de refletir sobre sua vida e seus objetivos estabeleceram-se como valores de refe- réncia, codificados em normas ¢ instituig6es. Definiriam, 20 mesmo tempo, direitos ¢ exclusses. A “igual liberdade” e as garantias de que os individuos pudessem agit lives de coergées tiveram sexo, core classe, assim eomo a con- cepcio moderna da democracia’, pensamento liberal contemporineo apresentaria variagoes significativas na definigéo dos sentidos da autonomia ¢ dos requisitos necessérios para se 7 Paul Guyer, “Kant on the Theory and Practice of Autonomy”, em Ellen Frankel Paul, Fred D. Miller Jr. ¢ Jeffrey Paul (orgs), Autonomy (Cambridge, Cambridge University Press, 2003), p. 70-98; Gerald Dworkin, The Theory and Practice of Autonomy (Cambridge, Cambridge versity Pres, 2001 (1988); Hague, Autonomy and Identity. The Politics of Who We Are (Londres! Nova York, Routledge, 2011); Nancy J. Hirschmann, The Subject of Liberty: Towards a Feminist ‘Theory of Freedom (Princeton/ Oxford, Princeton University Press, 2003). CChatles W. Mills, The Racial Contract (Ithaca/Londres, Cornell University Press, 1997); Carole Pateman, The Sexual Contract (Stanford, Stanford University Press, 1988); Ellen M. Wood, Democracia contra capitalism: a renovagéo do materialismo bistbrico (trad. Paulo Castanheira, Sio Paulo, Boitempo, 2003 [1995)). Scanned with CamScanner CUIDADO E RESPONSABILIDADES 59 garantirem as liberdades individuais, © individualismo que catacteriza esse campo de pensamento limita a incorporagio de nogdes substantivas ou radicais de igualdade’, Porém, entre ultraliberais, como Milton Friedman, Friedetich Hayek e Robert Nozick, ¢ liberais de vertente igualitétia, como John Rawls, hd uma enorme distancia, A centtalidade do individuo esté presente em todos esses autores, mas a conexao enitte liberdade, escolhas individuais e responsa- bilidade se organiza de maneiras distintas. As implicagdes nao séo de pouca importancia. No pensamento ultraliberal, 0 métito individual é tomado como pressuposto ¢ valor; participando de uma visio individualista concorrencial que justfica as desigualdades ¢ limita radicalmente abordagens sociais — e, em algum grau, coletivas — das desvantagens e da pobreza. No liberalismo de vo- cagio igualitéria, a critica e a desconstrugao das nogées de mérito e talento abrem a possibilidade de analisar os contextos em que as escolhas individuais sio feitas e as trajetérias tomam forma, Entende-se, nesse caso, que 0 mérito pressupée a existéncia de um sistema cooperativo ¢ depende amplamente de circunstincias sociaise familiares favo- raveis, pelas quais 0 individu nao pode reivindicar crédito". A coincidéncia entre talento e riqueza, por sua vez, remete a “determinada estrutura econdmi- ca’, a uma estrutura de mercado que valide a relagao entre riqueza-talento ea producao de riqueza"'. Por isso, reconhece-se que as trajetérias individuais sio permeadas por fatos arbitrérios e contingentes; a posigao das pessoas, com seus Norberto Bobbio, Liberalismo e democracia (trad. Marco Aurélio Nogueira, Sao Paulo, Brasilien- se, 1988); Louis Dumont, Exsas sur Vindividualime: une perspective anthropologique sur Uidéo- logie moderne (Pati, Editions du Seuil, 1983). {© John Rawls, A Theory of Justice (Cambridge, Harvard University Press, 1971), p. 103-4. Ronald Dworkin, Virtude soberand (ead. Jussaa Simées,Sio Paulo, Martins Fontes, 2005 {2000)), .458-9. Nao h razdes para pressupor que as riquetas-talentos seam virtudes, segundo Dworkin. ‘Afinal, a sorte seria o fator mais importante: “Estar no lugar certo ¢ quase sempre mais impor- tante do que qualquer outra coisa”, E ainda que as riquezas-talentos fossem virtudes, dat néo decorre necessariamente que deva haver recompensa material para elas. E, mesmo que asim fosse, nio ha justfiativaplausvel para que © mercado comercial fossa forma mais adequadsa de gerar esas recompensas (ibidem, p. 460-1). Destaquei Ronald Dworkin pela sua importincia nesse debate, mas ele tem sido situado numa subcorrente, a do *igualitarismo de fortuna’. Além de Dworkin, Blizabeth Anderson situa nessa vertente Richard Arneson, Gerald Cohen, Thomas Nagel, Eric Rakowski e John E. Roemer, indicando também a incorporagio de muitos dos seus prinefpios por Philippe van Paris. Na sua definigfo, “oigualtaismo de fortuna se ancora em dluas premissas moras: que as pessoas devem ser compensadas pela ma sorte imerecida e que esa compensagio deve vir somente da parte da boa sorte dos outros que ¢imerecida. Ver Elizabeth ‘Anderson, “What Is the Point of Equality?”, Ethics, v. 109, n. 2, 1999, p. 5. Scanned with CamScanner 60. GENERO & DESIGUALDADES atributos, néo ¢ em si justa ou injusta, e nao hé raz6es para, portanto, aceité-la como tal. O modo como as instituigées lidam com esses fatos, por outro lado, pode ser justo ou injusto'’, Instituigées sensiveis as escolhas individuais seriam capazes de obstar ou amenizar arbitrariedades e contingéncias ¢, assim, garan- tira igual liberdade dos individuos. Rawls ¢ 0 chamado “liberalismo igualitério”® podem ser situados numa vertente reformista da critica 4 concentragao de recursos e ao poder no capita- lismo, na segunda metade do século XX. ‘As erfticas ao Estado de bem-estar social, explicitadas nos cursos que ofereceu nos anos 1980, talvez sirvam, dé- cadas depois, menos como um atestado da diferenciagéo entre suas posicées ¢ 0s prineipios do Welfare State do que para evidenciar a distancia entre aborda- gens reformistas otientadas por valores igualitéris ¢ o neoliberalismo, que se tornaria crescentemente hegeménico. Para Rawls, & um regime que permite 0 “quase monopélio dos meios de p 0 tornaria incompativel com os princfpios liberais de justica, por ser incapaz de garantir a igual liberdade dos individuos. Ele adere, na discusséo, a um re- gime que manteria a propriedade privada e, ao mesmo tempo, impediria que “uma pequena parte da sociedade controlasse a economia e, indiretamente, o Estado de bem-estar social rodugao"™. Isso também a vida politica”. problema que Rawls apontava no Estado de bem-estar social se tornaria mais agudo. A concentragao de renda e de poder politico tem-se ampliado”, inviabilizando a democracia e tornando mais precéria a vida da maioria das pessoas. A “crise do cuidado” pode ser pensada dessa perspectiva, como resul- tado da implementagio da agenda neoliberal de retragio do Estado, tanto quanto da conformagéo das subjetividades num ambiente em que a concor- réncia se estabelece como valor, a medida que os principios coletivos ¢ solidé- rios véo sendo minados. Os pressupostos presentes nas abordagens dos 1 John Rawls, A Theory of Justice cit, p. 102. 1 Alvaro de Via, “Libealismo, ustiga sociale responsabilidade individual”, Dados, v. 54, n. 4 2011, p. 569-608. 4 John Rawls, justice a Fairness: A Restatement (Cambridge/Londces, The Belknap Press of Harvard University Press, 2001), p. 139. 5 Veros dados apresentados no World Social Science Report de 2016 e no Relatério da Ofkam de 2017. Dsponves em: cw. worldsocialcenceong/documentsworld-ocial-science-eport 2016-chalengingnequalites-pathwaysjustworl.pdt> e ; acessados em: ago. 2017. Scanned with CamScanner CUIDADO & RESPONSABILIDADES 61 ultraliberais so, ainda hoje, pontas de langa no projeto neoliberal! e tém sido atualizados em disputas politicas no Brasil ¢ em diversas partes do mundo. ‘Atuam para restringir a dimensfo coletiva da politica e, constituindo as subje- tividades de acordo com uma exacerbagao da Idgica concorrencial individua- lista, limitam as altetnativas ao “autoinvestimento” individual ¢ aos néicleos familiares “funcionais””, O que esté em questio ¢ como ¢ até que ponto o Estado pode regular as relagbes ¢ em que medida a regulagio compromete ou promove a liberdade de escolha. Mas as respostas séo bastante distintas. £ entre os ultraliberais que a nogéo de autonomia ganha o sentido de “ser capaz de dar conta de si mesmo” € 08 individuos sio reduzidos & condicéo de agentes econdmicos racionais, responsabilizados por suas escolhas e, como tal, submetidos aos resultados dos assos equivocados e “irresponséveis” que eventualmente deem. Embora exista uma dimenséo moral no pensamento ultraliberal, o que 0 define é uma perspectiva econdmico-politica que recusa pactos coletivos soli- darios. Se, na pratica, estamos falando da baixa porosidade do Estado a neces- sidades ¢ interesses populares, a dimensio ideolégica que justifica essa conformagio tem na nocio de responsabilidade individual um elemento-chave. Definem-se, assim, dindmicas e instituides politicas crescentemente imunes a projetos coletivos e avessas & soberania popular", orientadas por uma légica “econémica” que se apresenta como algo desvinculado das decis6es politicas e das vantagens que implicam. Com a ideia de que o Estado é neutro em relagéo a individuos e grupos que concorrem entre si e, para tanto, langam mao de suas melhores capacidades, constitui-se um ambiente institucional que alaca recursos - direta e indiretamente, isto é, por meio de subsidios e de politicas fiscais que garantem os “investimentos” ~ de um modo que amplia privilégios. ‘As respostas do liberalismo de vertente igualitéria so insuficientes para faver frente & concentragao de recursos ¢ de poder, assim como & disseminacao da ideologia da concorréncia e do mérito. O que me parece merecer atengao é 0 fato de que a propriedade privada permanece intocada e de que pouco é dito sobre as assimetrias no exercicio da influéncia nas democracias capitalistas”. “David Harvey, A Brif History of Neoliberalism (Oxford, Oxford University Press, 2007). Wendy Brown, Undoing the Demos: Neoiberalion’ Stealth Revolution (Cambridge, Zone Books, 2015). Idem, Isis Marion Young, Responsibility for Justice (Oxford, Oxford University Press, 2011). Scanned with CamScanner 62. GENERO F DESIGUALDADES: A permanéncia da nogao de responsabilidade pessoal como chave, apesar da critica ao mérito, é relevante. As respostas dessas abordagens ao ultraliberalismo a0 conservadorismo moral (cada ver mais associados nas disputas politicas) oscilaram do contraste moralista entre responsiveis ¢ irresponsaveis, ou inde- pendentes e dependentes, & visio paternalista dos “desafortunados™®, No debate sobre responsabilizagéo ¢ cuidado, a critica A dualidade entre esfera puiblica ¢ privada também é fundamental. Quando essa dualidade nao é problematizada, as trajetérias dos individuos podem ser apresentadas como distintas ¢ independentes das relagées na vida privada e das formas cotidianas de interdependéncia. O “sucesso” ou 0 “fracasso” individual, assim como a configuragao da vida familiar, podem ser apresentados como se fossem resul- tado de escolhas voluntérias, em vex de desdobramentos de uma série de in- jungées e do conjunto das alternativas dispontveis de fato. Em modelos tedricos nos quais as esferas publica e privada sio autonomizadas, as relages na vida doméstica cotidiana e a influéncia desmedida dos agentes econdmicos (que produz. decisées orientadas pela Iégica do lucro) podem ndo ser compu- tadas na compreensio do modo como os individuos se tornaram quem sao. O “privado”, tomado como campo dissociado do mundo puiblico politico, pode corresponder conceitualmente ao ambito da vida doméstica e familiar, mas também a0 das relagbes econdmicas de mercado. Hé uma série de problemas na definicéo das esferas como se fossem distintas, considerando as quest6es discutidas neste capitulo € no anterior. O trabalho doméstico remunerado, realizado em unidades domésticas privadas, é uma questéo do ambito privado doméstico? & por outro lado, uma questio econdmica (e privada, nesse sentido), em vez de doméstico-familiar? E poss{vel que essa problemética fique contida no ambito “privado”, em qualquer um desses sentidos, se ela configura relagées de subordi- ago ereprodu desigualdades que demonstram os limites da cidadania universal? Entre os ultraliberais, a visio de que 0 mercado regula as relagdes de forma justa quando garante aos individuos a liberdade de escolher ~ ainda que em condigées bastante desiguais - desconsidera 0 problema das estruturas de auto- ridade e de sua conexéo com a dinamica social de acimulo de privilégios. O funcionamento do mercado nao é neutro, premia quem jé tem recursos para exercer influéncia sobre sua regulacio e sobre os termos em que se organiza. Como define Martha McCluskey, o que esta em questo é “quais habilidades das pessoas %® Elizabeth Anderson, “What Is the Point of Equality?”, cit., p. 23. Scanned with CamScanner CUIDADO H nEsPoNSAMILIDADES 6 para conseguir mais daquilo que elas buscam ao deslocar os custos para outras deveriam contar como ganho societério € quais deveriam contat como ganho privado & custa de outras pessoas”, Essa dinamica permite que os privilegiados se apresentem como pessoas que construfram sua posigio por mérito proprio, obliterando 0 fato de que essa posigéo se ancora na exploragéo do trabalho de cutras pessoas ¢ na mobilizagio de normas e recursos piiblicos em seu favor. O mérito também s6 se define como tal devido & valorizagio social de certas habili- dades — 0 que se dé em processos histéricos e ganha formas institucionais. ‘As abordagens ultraliberais operam no sentido de justificar essas desigual- dades a concentragio de poder, criando uma dissociagéo entre o problema da liberdade € os circuitos das desigualdades, Entre as abordagens liberais igualitirias, em contrapartida, a conjungio da dualidade entre o piblico € 0 privado com a nogio de responsabilidade individual estreita o ambito da cri- tica As formas de reproducéo das desigualdades de recursos e de poder, Esse foi continua sendo um eixo central na critica feminista, internamente ao libera- lismo®, e de perspectivas socialistas e antirracistas™, As estruturas de autoridade nas relagbes de trabalho e na vida doméstica tém impacto na patticipacéo dos individuos em outros campos. As escolhas deles, por outro lado, néo se definem na esfera privada ow na piiblica. papel assumido por eles em uma e outra modula seu acesso a recursos im- portantes, como tempo e dinheiro, reconhecimento social de suas compe- téncias ¢ possibilidades de participagao mais equanimes no debate ¢ nas decisées politicas. Embora discutida sistematicamente hé décadas no femi- nismo, essa questéo néo foi de fato incorporada em grande parte do debate | tedtico sobre justica. O mesmo ocorre quando se pensa nas conexées entre autonomia, cidadania e democracia. ‘ficiency and Socal Citizenship: Challenging the Neoliberal Aack on the Welfare State", Indiana Law Journal, v. 78, n. 2, 2003, p. 783-876, ctado em Joan C. ‘Tronto, Caring Democracy, cit., p. 40; aqui, em tradugio minha. Susan Moller Okin, Justice, Gender, and the Family (Nova York, Basic Books, 1989). Patricia Hill Collins, Black Feminist Thought: Knowledge, Consciousnes, and the Politics of Empo- swerment (Nova York/Londres, Routledge, 2009 {2000]); Angela ¥. Davis, Mulheres, raga ¢ «ase (Séo Paulo, Boitempo, 2016 [1981]}; Nancy Fraser, “Rethinking the Public Sphere: a Contribution to the Critique of Actually Existing Democracy’, em Craig Calhoum (org), Habermas and the Public Sphere (Cambridge MA, The MIT Press, 1992), p. 109-42; Nancy Fraser, Justice Interruptus: Critical Reflections on the “Postsoialin” Condition (Nova York, Rout- ledge, 1997); Aleksandra Kollontai, “Working Woman and Mother’, em Selected Writings (Nova York, Norton, 1977 (1914), p. 127-39. ee Scanned with CamScanner 64. GiNERO B DESIGUALDADES ‘A atengao as relagoes de poder na vida privada e doméstica permite a andli- se de estruturas de autoridade que sio ao mesmo tempo distintas e complemen. tares, Um dos efeitos da configuragio dual dessas esferas & que a universalidade dos direitos (na esfera piiblica) se acomoda a distingées, divisdes e hierarquias (na esfera privada), sem que isso se configure como um problema para a demo. cracia, Enquanto a cidadania é definida como independéncia, “a dependéncia da sociedade como um todo, da economia e do sistema politico relativamente A familia e a0 trabalho das mulheres na familia ¢ ignorada’™. O trabalho que as mulheres realizam na vida cotidiana doméstica, a forma que ele assume 0 tempo que Ihe é dedicado estio longe de constituir escolhas volun tdrias, apesar de no existirem impedimentos legais paraa busca de outros caminhos ede esse trabalho nao ser resultado de coergées identificaveis como tais. A respon- sabilizagéo, problema politico, como venho procurando mostrar, implica desvan- tagens. Quando deixam de ser reconhecidos os aspectos estruturais que constituem posigdes e alternativas, as escolhas podem parecer “irracionais” e mesmo “irres- ponsiveis”, A recusa de um emprego, por parte de uma mulher, por nao haver creche para deixar os filhos, ou as faltas seguidas ao trabalho quando os filhos pequenos adoecem — 0 que pode acarretara perda do emprego ou limitar a ascen- sio profissional - s6 poderio ser tratadas como “escolhas” se for desconsiderado ‘© contexto em que estas se realizam ou se fizer de conta que néo existem criangas pequenas que precisam de cuidado. Como compreender a posicao desigual das mulheres na esfera doméstica e na piblica sem levar em consideragao que elas sio orientadas a assumir determinadas responsabilidades ¢ a desempenhar um con- junto de fungées no cotidiano? Ao mesmo tempo, como explicar os obstaculos & participagéo equinime na vida piblica quando se langa mao de uma moldura tedrica que nfo permite compreender adequadamente as conex6es entrea posig¢éo dos individuos na vida doméstica — com as responsabilidades diferenciadas que rela assumem — ¢ 0s filtros que organizam sua posigéo em outras esferas da vida? Os posicionamentos de que trato aqui nao podem ser definidos como escolhas voluntitias individuais nem podem ser entendidos como resultado de coergao. E nesse contexto de restri¢ao as escolhas, constituido pelos padrdes estrutu- rais da diviséo sexual do trabalho, que se definem formas desiguais de incluso na 3 Johanna Brenner, Women and the Politics of Class (Nova York, Monthly Review Press, 2000). Ver também Christine Delphy e Diana Leonard, Familiar Exploitation: A New Analysis on Marriage {in Contemporary Western Societies (Cambridge, Polity Press, 2004 1992]) ¢ Nancy Folbre, Who ‘Pay for the Kids? Gender and the Structures of Constraint (Londres/Nova York, Routledge, 1994). Scanned with CamScanner CUIDADO H nESPONSABILIDADES. 65 csfera priblica, Nao se trata de exclusio, propriamente, porque nao estamos fa- Jando do bloqueio & participacio das mulheres por leis nem pelo exercfcio da autoridade masculina que impeca ou restrinja a citculagio delas, O que em outros tempos foi cumprido pela franca dominacéo dos homens no ambito familiar & hoje realizado pelas ag6es casadas do capitalismo neoliberal ~ que restringe a responsabilidade puiblica por tarefas que sio alocadas para as mulhe- res -, dos padrées correntes das relagées de trabalho - que implicam menor rendimento para elas ¢ exigéncias incompativeis com as responsabilidades que ihes sio atribuidas no cotidiano doméstico ~, por fim (mas no menos impor- tante), do “familismo”, ideologia que transforma nticleos privados em sujeitos de responsabilidade, reforcando a diviséo convencional das tarefas, 0 exercicio da autoridade paterna ¢ as desigualdades entre as familias, A alocagio das res- ponsabilidades pelo trabalho e, especificamente, pelo cuidado ¢ institucionali- zada, permeia as relagées cotidianas domésticas, mas néo depende do exercicio aberto da autoridade por parte do pai nem do marido ou do companheiro. Divisao sexual do trabalho, responsabilizagao diferenciada e desigualdades No capitulo anterior, discuti a divisio sexual do trabalho de forma mais detida, Retomo, brevemente, alguns aspectos, antes de me demorar no debate mais es- peclfico sobre o cuidado. Apesar das transformagées na posigio relativa das mu- Iheres no exercicio de trabalho remunerado fora da casa, elas continuam a dedicar muito mais tempo que os homens ’s tarefas domésticas e, por outro lado, a ter rendimentos bem menores que os deles na esfera publica, Hé conexées entre um -outto desses problemas: a dedicagéo as tarefas domésticas se faz a0 longo da vida, desde a infaincia. O tempo a elas dedicado se reverte em competéncias necessirias A reprodugao da vida, mas pouco valorizadas na dindmica de mercado. AAs familias nao se organizam hoje como se organizavam hé poucas décadas, nem mesmo no que diz respeito & participagio das mulheres na renda familiar, Os valores e os sentidos atribuidos ao feminino € ao masculino também néo permaneceram os mesmos. Mas meninas e mulheres continuam a set as principais, responséveis pelo trabalho doméstico®. A gratuidade do trabalho desempenhado Clara Araijo ¢ Céli Scalon, “Género ea distancia entte a intengio eo gesto’, cit p. 45-68; Natilia Fontoura et al. “Pesquisas de uso do tempo no Brasil: contribuigdes para a formulagio de politcas de conciliacéo entre trabalho, fila e vida pessoal”, Revista Econémica , 2, . 1, jun. 2010, p. 11-46. Scanned with CamScanner 66. GtNeRo & DEsIGUALDADES | pelas mulheres no Ambito doméstico foi definida como cerne do patriarcado, exploragéo matriz, que torna posstveis outras formas de exploragio, Daf a com. preensio de que “na familia, na nossa sociedade, as mulheres sio dominadas para que seu trabalho possa ser explorado e porque seu trabalho ¢ explorado”™, Mesmo que se entenda, diferentemente, que a exploragéo das mulheres decor. re da estrutura patriarcal do Estado ¢ do mercado de trabalho, constituindo 0 que foi denominado “patriarcado piiblico”™, as posig6es distintas de mulheres ce homens na vida doméstica continuam sendo uma questéo central por pelo menos duas razbes. Primeiro, 0 trabalho doméstico ¢ o de provimento de cui- dado, desempenhados gratuitamente pelas mulheres, constituem os circuitos de vulnerabilidade que as mantém em desvantagem nas diferentes dimensées da vida, tornando-as mais vulneréveis & violencia doméstica e impondo obstéculos 4 participagéo no trabalho remunerado ¢ na politica. Em segundo lugar, a cau- salidade que assim se estabelece nao vai apenas da vida doméstica para outras csferas, uma ver. que, como venho argumentando, a alocagéo de responsabilida- des é institucionalizada e decorre de decis6es politicas. ‘Além do trabalho exercido gratuitamente, interessa a esta discussao 0 fato de que o trabalho remunerado no espago doméstico é mal valorizado e, em muitos casos, insuficientemente regulamentado por ser percebido como extensio do papel “natural” das mulheres na famili®, Ao mesmo tempo, pode ser porosa a fronteira entre servicos gratuitos prestados por mulheres da familia ¢ servigos re- munerados prestados por outras mulheres, porque, no segundo caso, também podem estar presentes lacos familiares de vizinhanga, sobretudo nas comunida- des de baixa renda®. Essas relagdes de trabalho podem ter um grau maior ou menor de verticalizagéo em termos de classe ¢ raca. Isto é, podem ser marcadas por hierarquias e formas de exploracéo entre grupos bastante desiguais no acesso a re- cursos materiais e ocupagdes — por exemplo, quando mulheres negras e/ou imi- grantes io contratadas por um casal de profssionais brancos e bem remunerados para limpara casa, lavar roupa, cozinhar, cuidar das criangas — ou entre grupos que Christine Delphy e Diana Leonard, Familiar Exploitation, cit. p. 18; aqui, em tradugao minha. Sylvia Walby, Theorizing Patriarchy (Oxford, Basil Blackwell, 1990). Helena Hirata e Nadya Araujo Guimaries (orgs), Cuidado e cuidadoras, cit. Eleonora Faur, “El cuidado infantil desde la perspectiva de las mujeres-madres. Un estudio en dos barrios populares del Area Metropolitana de Buenos Aires”, emValéria Esquivel, Eleonora Faur ¢ Elizabeth Jelin (orgs.), Las logicas del euidado infantil: entre las familias, el Estado y el ‘mercado (Buenos Aires, Ides, 2012). zeae Scanned with CamScanner CUIDADO F RESPONSABILIDADES 67 ‘ocupam posigio social semelhante ¢ compartlham dificuldades no acesso a traba- tho ea cuidado ~ por exemplo, no caso em que a prima desempregada ¢ contrata- da para cuidar das criangas, suprindo a falta de creches ou resolvendo a diferenga centre o horrio da creche ¢ a jornada da mae, que trabalha como balconista. Aalocagio das tarefas tem o género como um eixo, Ancora-se na naturali- 2agio de habilidades ¢ pertencimentos, definidos de acordo com uma visio bindtia, nao apenas simplificada, mas também iluséria, da conexio entre sexo biolégico ¢ comportamentos. A associagio entre mulher ¢ domesticidade constrdi-se nessa chave. Os arranjos tém-se modificado historicamente e nun- ca foram, de fato, homogéneos, se consideradas as relagées raciais ¢ de classe € as desigualdades entre as familias. Hoje, prevalece um modelo em que “a ten- déncia predominante é a maioria dos homens investir seu tempo prioritaria- mente no mercado de trabalho enquanto a maioria das mulheres se divide entre o trabalho remunerado ¢ os cuidados da familia”. Lembro que as formas de regulagéo do trabalho interferem no tempo dedicado ao trabalho remune- rado, para além dos investimentos voluntarios das pessoas. Quanto maiores ou mais “flexiveis” as jornadas (“‘flexibilidade” tem sido um eufemismo para a menor protegio social as trabalhadoras ¢ aos trabalhadores), quanto mais aci- mulo de ocupagées for necessério para que a renda seja suficiente, menores poderio ser as garantias ¢ a gesto autdnoma do tempo, Mas a conexao entre o feminino ¢ a domesticidade tem desdobramentos muito distintos entre as mulheres, como jé foi dito, Entre as que tém filhos pe- quenos, de até 6 anos de idade, a participagso no mercado de trabalho ampliou- -se do inicio dos anos 1990 aos anos 2000, mas de forma concentrada: nos domictlios pertencentes 20 estrato dos 40% mais ricos, aumentou cerca de vinte pontos percentuais entre 1993 ¢ 2009, crescendo menos e até diminuindo entre 0s estratos mais pobres da populagéo. E foi também entre as mulheres perten- centes aos estratos mais ricos quea jornada semanal de trabalho mais se ampliou”. HA duas perspectivas para a interpretagio desses dados, Numa delas, é chave considerar os recursos de que as mulheres com maior renda dispdem para 0 cuidado dos filhos e da casa, Em outra, tem maior peso 0 trabalho doméstico Bila Sorj e Adriana Fontes, “O care como um regime estratificado: implicagées de género e classe social", em Helena Hirata Nadya Araujo Guimaraes (orgs), Cuidado ecuidadora, ci. p.105. PNAD, citado.em Bila Sore Adriana Fontes, “O care como um regime estratiicado’ cit. p. 106. Scanned with CamScanner 68 GbNERO F DESIGUALDADES realizado pelas mais pobres e os problemas que estas enfrentam para atender aos cuidados de sua propria casa ¢ de seus filhos. Existe uma correlagio entre o nivel de ocupagio” das mulheres e a frequéncia dos filhos pequenos a creches: esse nivel é de 65,4% para mulheres com filhios de 0 a 3 anos que frequentam creche; de 40,3% se apenas algum filho frequenta a creche; ¢ de 41,2% para aquelas cajosflhos nio frequentam ereche™. Estabelece-e um circuito de precarizacéo ¢ empobrecimento quando faltam equipamentos piiblicos de cuidado™, Além disso, ¢ preciso acrescentar a essa dificil equagio a diminuigao das taxas de nata- lidade ~ ponto a que retomarei no préximo capitulo ~, conjugada & maior lon- gevidade e is necesidades de cuidado por parte das pessoas idosas. Nos domicfios mais ricos no Brasil, mas também na Europa e em outros paises da América, a divisto sexual do trabalho estd presente, porém as mulheres tém 0 apoio do trabalho de cuidadoras e empregadas domésticas, trabalho mal remune- rado ¢ caracterizado por relagées de exploragio ainda mais acencuadas do que as vigentes nas atividades vistas como produtivas e tipicamente desempenhadas pelos homens dos mesmos estratos sociais, fora de casa’*. Essa divisio do trabalho do- éstico e de cuidado entre as mulheres estd na base de perspectivas distintas sobre o universo da familia, do cuidado e do trabalho doméstico, assim como sobre as alternativas de fato existentes para as mulheres fora de casa. Atuando no seio das familias de classe média, mas como outsiders, trabalhadoras negras e imigrantes tém aviliado as formas de exploragio do trabalho das mulheres € pensado os lacos es- tabelecidos no provimento de cuidado, numa realidade em que a pobreza dos seus espagos de origem, as desigualdades regionais ¢ 0 racismo desempenham papel fundamental, Cuidando dos filhos de outras mulheres, permitiram que estas se ® O nel de ocupaco édefinido pelo Insttuo Brasileiro de Geografia ¢ Estaistica (IBGE) como 0 perennusl de pesoxs ocupads no momento em que foi ealzada a pesquisa em relago 3s pessoas emidide de abalhar. Agu, trata-se do nivel de ocupasso entre as mulheres em idade de trabalhat Insituto Brasileiro de Geografae Estatstica (IBGE), “Estaisticas de género: uma anélise do Censo Demogtfio 2010” (Rio de Janeiro, IBGE, 2014). asta Esping-Andersen, The Incomplete Revolution: Adapting to Womens New Roles (Cambridge, Poli Press, 208). Ver Juema Gorski Brits, ‘Afro edesiguaade: nero, geragioeclase entre empregadas domés- sca seus empregadores’, Caderns Pag n. 29, jul-dex. 2007, p. 91-109, e “Trabalho domést- co: quests, turase politica”, Caderno de Pguita, v.43, n. 149, maio-ago. 2013, p. 422-51. Danila Gentil Rodriguez Cal, Comunicagdo e rabalho infantil domésico (Salvador, Edufba, 2016); Paica Hill Colins, Blac Feminit Though, cits Déia Dutra, "Marcas de uma or profs rahados domes eran em Bra’ Cader CRH, UFBA, v2, 3, jana. 2015, p. 181-97. Tae ate o ® ® ® * Scanned with CamScanner CUIDADO E RESPONSARILIDADES 69 “emancipassem” tivessem maior autonomiae reconhecimento profissional, En- quanto iso, para elas, a rotina de trabalho pode ter dificultado 0 cultivo de lagos amorosos ¢, quando mes, enfrentaram o dilema da ctiagéo dos prépros filhos em conjunto com 0 exercicio do trabalho remunerado, em condigées de precariedade, As atividades realizadas em prol de outras pessoas assumem padtées condi- cionados pelas hierarquias de raga e de classe. £ importante, também, pensar- mos na variedade dessas atividades. Embora existam diferencas importantes entre as que sio exercidas no cotidiano da vida doméstica - como cozinhar, lavar roupa, limpara casa, dar banho nas criangas, em pessoas com deficidncias ou idosos, auxiliar em atividades que essas mesmas pessoas nio poderiam exe- ccutar de maneira segura sem acompanhamento, como passeios em éreas pii- blicas, ou desempenhar 0 que algumas autoras definem como trabalho emocional?” ~, nio se pode deixar de considerar que todas elas implicam en- volvimento, tempo e energia de quem as realiza. Em todos os casos, alguma atividade esté sendo realizada em prol de outra pessoa e para sua vantagem, e, ainda que isso tenha significados muito distintos, a dependet de a vantagem set de um homem que usufrua desse trabalho sem nunca o realizar (alimenta- -se, tem as roupas lavadas e casa limpa) ou de criangas, idosos ou pessoas com deficiéncia que se beneficiem de tarefas que nao seriam capazes de realizar, 0 fato & que alguém despende tempo e energia para dispensar um cuidado — no mais das vezes, uma mulher, de acordo com os dados mencionados. ‘As mulheres néo estio igualmente distribuidas entre quem esté na posigéo de provedor de cuidado, trabalhando em beneficio de outros, e quem esté na posicao de beneficiério do cuidado provido por outras pessoas*, As mulheres negras, em especial, esto concentradas em atividades vistas como extensio das atividades domésticas nao remuneradas e, como tais, devalorizadas e menos formalizadas. Em 2013, no Brasil, 18,6% das mulheres negras € 10,6% das mulheres brancas ccupavam postos de trabalho doméstico remunerado; no mesmo periodo, 1% dos homens negros e 0,7% dos brancos estavam nessa posigio®. Desde 2009, a « Christine Delphy e Diana Leonard, Familiar Exploitation, cits Atle Russell Hochschild, The ‘Managed Heart: Commercalization of Human Feeling (Betkeley-CA, University of California Pres, 2008 [1983]). Johanna Brenner, Women and the Politics of Clas, cits Helena Hirata, “Genero case ¢ raga", cit; Joan C. Tronto, Caring Democrey, cit Instituto de Pesquisa Econémica Aplicada (Ipea), Rerato das desiqualdades de gener rapa (Bra- sia, Ipea, 2014). s Scanned with CamScanner 70 GiNERO f DESIGUALDADES Pesquisa Nacional por Amostra de Domicilios (PNAD) do Instituto Brasileiro de Geografia ¢ Estatistica (IBGE) mostrava uma queda lenta, mas ininterrupta, do mimero de mulheres empregadas no trabalho doméstico remunerado, algo que se reverteu em 2015, quando ultrapassou novamente 0 de 6 milhoes de tnulheres. A redugio no nimero de trabalhadoras domésticas pode ser interpre- tada como expressio de mudangas relacionadas & queda do desemprego, & maior escolarizagao e & redugao da pobreza na década de 2000 no Brasil", aproximan- do. pais das circunsténcias nas quais 0 trabalho doméstico remunerado diminuiu nna Europa e nos Estados Unidos ao longo do século XX. Hoje, no entanto, a reversio dessa tendéncia, caso se confirme, estaria em sintonia com 0 que ocorre nas regiées mais ticas do globo, nas quais o trabalho doméstico remunerado vem aumentando em decorréncia da situagio de precariedade e baixa remuneracio de imigrantes nao eufopeus ¢ provenientes das regides da Europa mais afetadas pelo desemprego''. A marginalizacio ea inferiorizacio das ocupag6es tipicamen- te “femininas’ tém, assim, raga e classe ¢ se inserem na geopolitica global. O trabalho doméstico remunerado, cujos padrées decorrem das desigual- dades conjugadas de género, classe e raca, pode ser definido como um proble- ma em si pata a democracia: o tipo de relagio que assim se estabelece rompe coma igualdade necessdria 4 democracia, uma vez que cria subordinados, mas também patrées (masters). Marca quem 0 exerce, ao mesmo tempo que refor- caaidentidade eo status socal diferenciado de quem emprega®. Nas condigées ‘em que é realizado, o trabalho doméstico remunerado corresponde a ima ra- dicalizagio das hierarquias e das formas de opresséo presentes de maneira mais ampla no mundo do trabalho. Por outro lado, nesta quadra inicial do século XX1 em que sé no Brasil ha cetca de 6 milhées de mulheres nos servigos domésticos remunerados, 0 valor 4] Conforme o ctado relatério do Ipea, vale observar que 0 niimero de trabalhadoras doméstics {que residem no domicfio onde tabalham vem diminuindo continuamente desde 1999: naque- Teano, elas eram 9% das tabalhadoras; em 2013, eram 1,9%. Esse dado ¢ significative porque

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