ARROJO - Oficina de Tradução

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Pee RR aL Praga © que ocorre quando traduzimos um texto? A que deveMos ser “fiéis” quando realizamos uma tradugio? Seb os portas de vista te6rico e pratico, 6 possivel traduzirmos GoM SHOES 80 textos literd 2 Beses silo alguns dos pontos essenciais que norte Oficina de traduedo ~ A teoria na pratied, Com bane rias textuais contempordneas, que considera fandarner tais o papel do leitor e de seu contexto historica-soctal Hi produgdo de uma leitura, este liv discussao atualizada sobre os prineipais problert envolvem a tradugio. Além disso, Rosemary Arrojo Urinals re essas questdes para a pratica, por meio da analise de Wey poemas - de Elizabeth Bishop, Sylvia Plath ¢ Garloy Devin mond de Andrade ~ e sua tradugio. Jos € poético ‘am as reflexdes desenvolyidas et Rosemary Arrojo € pés-doutora pela Yale University ¢ doit tora pela Johns Hopkins University, BUA ISBN 978-8508" 1121-4 NN glizagsoslite ao ETRE mos Ser incipios 74 Rosemary Arrojo Oficina de tradugao A teoria na pratica © Rosemary Arrojo Diretor editorial emando Paixio Carlos $. Mendes Rost ‘Tatiana Coma Pimenta Coordenadora de revisioIvany Pieass Batista Estagidrio Rodrigo Antonio Ante Editor Anonio Paulos Diagramador Claudemir Camargo ‘Capa e projeto gréfieo Homem de Melo & Troia Design Editoragio eletrd Moacie K, Matsusaki [BpigKo anrERIOR Diretores Benjamin Abdala Junior © Sumim Yosser Canypedetl Preparadora de teyto —_Lenive Bucno da Silva CIP-BRASIL.. CATALOGACAO-NA-FONTE “10 NACIONAL DOS EDITORES DE LIV! INDI ABI30 Se Aro, Rosemary Oficina de eriducHo: a tora na prétca/ Rosemary Arrojo,~ Sd. S80 Paulo Atiea, 2007 85p,~ (Série Prinepios ; 74) Incl bibliografa comentada ISBN 978.-85.08-11281-4 1. Tradugioe interpretagio. 1. Titulo. I. Série. o7-234s. cpp 418.02 eDU8I25 ISBN 978 85.08 11281-4 (aluno) __[TMRORTANTE:Ao comprar ur ro voce vermuneta revo ISBN 978 85 08 11282-I (professor) | mace stabatno do autor eae mutes autos paisionats Eiysbides na podurtopaloria ena corerealzacao das ore eens evtes dagramaderes hstadores aces, Aivuloudoves, dlsiouldere,Iveivosevte outros Aude 2007 ‘hea combateracdya legal Bagera desempreg prejicn Stedieto iliistoda sutra encarece os os que voce compra T impressio rnessio scananinTo “Todos os dicitos reservados pela Eitora Atea, 2007 |Av, Ofaviano Aves de Lima, 4400 ~ CEP 02909-000 — Sto Paulo = SP Divulgagio: (11) 3990-1775 ~ Venda: (11) 3990-1777 — Fax: (11) 3990-1776 “www.tica.com.br~ wv. aticaeducaciona com be ~atendimentoatca.com.br Sumario 1. Abre-se uma nova oficina 7 Oficina de tradugio ou translation workshop? 8 2. A questo do texto original 41 significado/carga ¢ o tradutor/transportador 44 “Pierre Menard, autor del Quijote”, uma ligao de Borges sobre linguagem e tradugo 18 ‘A obra “visivel” de Menard e 0 sonho de uma linguagem ndo-arbitritia 14 ‘A obra “invisivel” ¢ a missio impossivel de Menard 48 O texto original redefinido 22 3. A questio do texto litersirio 25 preconceito da inferioridade ou da impossibilidade 25 Uma teoria literéria menardiana 28 Repensando o literatio 30 Quando ameixas nio so simplesmente ameixas 34 ‘A tradugio de textos literirios redefinida 36 4. A questiio da fidelidade 37 ‘Oconceito de fidelidade 0 texto/palimpsesto 37 ‘Uma Cleépatra melindrosa 38 O autor, o texto eo leitorftradutor_ 40 A fidelidade redefinida 42 A teoria na priitica 46 “Aporo”, de Carlos Drummond de Andrade 46 tm inseto cava”, 48; “Que fazer, exaust, em pas bloqueado?”, 48; “Eis que bint [1 presto se desata, 80; “Un orgie formas" 5 © poema: maquina de significagio 52 ‘nsect”, versio de John Nist_ 54 ‘Uma nova verséo de “Aporo” 58 “Poema de sete faces” versus “Seven-sided poem” $9 “Jum anjo tort, 61; "As casas espiam os homens”, 685 “permas brancas 4; "O hhomem atts do bigode", 64; “Mundo mundo vaste 6 pretas amarelas”, mundo”, 65; “[...J comovido como o dia “The rival” versus “Rival” 67 wvethe moon smiled, she would resemble you", €8, "And your fist gif is snaking stone out of everything”, 70; “The moon, to, abases her subjects”, 72; "No day is safe from news of you", 78: "The rival’ 0 tule, 74 Recado ao tradutor/aprendiz 76 . Vocabulario eritico 78 |, Bibliografia comentada 81 Dicionatios 84 Obras sobre tradugio 82 Obras sobre teorias textuais 83 Outros 84 A Maria José Arrojo ste livro 6 parte de um projeto de pesquisa patrocinado pels Pontificia Universidade Catdlica de Séo Paulo 1 Abre-se uma nova oficina Provavelmente o Ieitor nunca tenha ouvido falar numa oficina de tradugdo. Se consultar diciondrios, ou se perguntar a outros falantes de portugués, perceberd que oficina de traduco nao existe como expressao ja cons- trufda e consagrada pelo uso. Teremos que entendé-la, portanto, metaforicamente e, para construir esse sentido figurado, partimos do subs- tantivo concreto oficina. Segundo diciondrios da lingua, oficina pode ter as seguintes acepgbes: “lugar onde se trabalha ou onde se exerce algum oficio”; “laboratorio”; “casa ou local onde funciona o maquinismo de uma fé- rica”; “lugar onde se fazem consertos em veiculos auto- méveis”; e, em sentido figurado, “lugar onde se opera transformagao notivel”. J4 que temos, por assim dizer, permissio de liberar nossa imaginagéo quando tentamos entender uma meta- fora, vamos relacionar os possiveis significados de oficina A nossa metaférica oficina de traducao, delineando, ao mesmo tempo, seus objetivos. Em primeiro lugar, pretende-se que esta oficina crie um espago ao oficio e & pratica da tradugio, onde a teorla oo teré um papel importante, na medida em que poderd nos auxiliar a entender o que acontece quando traduzimos ¢ também a enfrentar o constante proceso de tomada de decisdes envolvido em toda tradugio. A imagem da ofi- cina sobrepomos, entao, a imagem do laboratdrio, onde se poem em prética ¢ se testam as formulas € os conceitos aprendidos da teoria. ‘Além disso, como oficina pode ser “casa ou local onde funciona o maquinismo de uma fabrica; lugar onde estdo os instrumentos de uma indtstria, arte ou profissao”, nossa oficina de traducao pretende mostrar também 0 outro lado do processo de traduzir, os instrumentos © os meca- nismos dessa atividade que, coincidentemente, pode ser considerada uma “inddstria” (em seu sentido mais amplo), “arte” ou “profissio”. E, ja que analisaremos ¢ comentaremos alguns textos em inglés ou portugués e suas respectivas versbes para uma dessas Iinguas, nossa oficina, um pouco pretensiosamente, também estaré tentando “consertar” as tradugdes € as so- lugdes que consideramos inadequadas. Por fim, mais a nivel do inconsciente, ha ainda o desejo, alids sempre presente em toda decisio de escrever ¢ publicar um livro, de que esta oficina também possa set “um lugar onde se opera transformacao notével”, mesmo que essa transformagdo seja, em nosso caso, simplesmente tentar chamar atengdo para um campo ainda tao pouco explorado e carente de estudos mais especializados. Oficina de tradugao ou translation workshop? Embora tenha tentado mostrar ao leitor que oficina de tradugao pode ser um titulo sugestivo e eficiente, na medida em que enfatiza a abordagem pratica que pretendo desenvolver aqui, devo confessar que esse titulo nao € exa- etl tamente “original”, tendo, na verdade, surgido de uma tradugao. Enquanto buscava um titulo para o livro, lembrei-me de um curso que fiz na Universidade Johns Hopkins (Bal- timore, EUA), na primavera de 1981, chamado Transla- tion Workshop. ramos um grupo de seis alunos © nos reunfamos semanalmente para discutir nossas proprias tra- duces e tradugbes consagradas de textos famosos (a partir de varias linguas, mas sempre para o inglés), sob a orien- tacdo do professor William Arrowsmith, poeta & tradutor de renome nos meios literdrios americanos ¢ internacionais. “Antes de iniciarmos 0 curso, j& sabfamos que seria um curso mais prtico do que teérico, devido ao seu proprio titulo. Segundo o American heritage dictionary of the English language (ver Bibliografia comentada), workshop, além de “oficina” (“an area, room or establishment in which ma nual work is done”), também pode se referir a “a regularly scheduled seminar in some specialized field” que, numa tradugo nao muito satisfat6ria para o portugues, seria “um curso regular sobre algum assunto especializado”. Um se- minar, como um workshop, 6 um tipo de curso para o qual bao temos uma palavra especifica em portugues. De acor~ do com o mesmo diciondrio, um seminar € “a small group of advanced students engaged in original research under the guidance of a professor” (um grupo pequeno de estu- dantes universitérios adiantados, envolvidos em trabalho de pesquisa, sob a orientagdo de um professor). Um semi- nar, como um workshop, sugere uma dindmica especial fm sala de aula: os alunos assumem um papel essencial- mente ativo, pesquisando e realizando trabalhos, enquanto 6 professor passa a ser um orientador. ‘Assim, supondo que este livro fosse escrito e publi- cado nos Estados Unidos, seu titulo, Translation work- Shop, envolveria um leque de significados diferentes dos que siigeri no inicio desta introdueo. Além disso, para: doxalmente, Oficina de traducdo é um titulo mais original Catford, um dos teéricos mais conhecidos ¢ divulgados no Brasil, a tradugfo é a “substituigdo do material textual de uma lingua pelo material textual equivalente em outra lingua” *, Eugene Nida, outro te6rico importante, expande essa imagem através da comparacao das palavras de uma sentenca a uma fileita de vagdes de carga *. Segundo sua descri¢ao, a carga pode ser distribuida entre os diferentes vag6es de forma irregular. Assim, um vagao poder conter muita carga, enquanto outro poderd carregar muito pouca; em outras ocasides, uma carga muito grande tem que ser dividida entre varios vagdes. De maneira semelhante, su- gere Nida, algumas palavras “carregam” varios conceitos € outras tém que se juntar para conter apenas um, Da mesma maneira que © que importa no transporte da carga nio 6 quais vag6es carregam quais cargas, nem a seqiién- cia em que os vagies esto dispostos, mas, sim que todos 08 volumes aleancem seu destino, 0 fundamental no pro- cesso de tradugdo é que todos os componentes significati vos do original alcancem a Iingua-alvo, de tal forma que possam ser usados pelos receptores. Se pensamos 0 processo de traducio como transporte de significados entre lingua A e lingua B, acreditamos ser © texto original um objeto estavel, “transportével”, de con- tornos absolutamente claros, cujo conteido podemos clas- sificar completa e objetivamente. Afinal, se as palavras de uma sentenga sao como carga contida em vagdes, & per- feitamente possivel determinarmos © controlarmos todo o seu contedido e aé garantirmos que seja transposto na integra para outro conjunto de vagoes. Ao mesmo tempo, se compararmos 0 ttadutor ao encarregado do transporte dessa carga, assumifemos que sua fungi, meramente me cAnica, se restring: @ garantir que a carga chegue intacta Una teoria tinge da tradupto, . 22. V. Bibliografin comen- 2 Language structure and translation, p. 190. V. Bibliograti mentada, iS : prope _——————— ao seu destino. Assim, o tradutor traduz, isto ¢, trans- porta a carga de significados, mas nao deve interferir nela, nao deve “interpreté-la”. ‘Essa visio tradicional, que obviamente pressupde uma determinada teoria de linguagem, se reflete também nas diretrizes em geral estabelecidas para 0 trabalho do tra- dutor. Nesse sentido, os trés principios basicos que defi- nem a boa traducio, sugeridos por um de seus te6ricos pioneiros, Alexander Fraser Tytler, ainda sio exemplares: 1) a tradugéo deve reproduzir em sua totalidade a idéia do texto original; 2) 0 estilo da tradugao deve ser 0 mesmo do original; € 3) a tradugdo deve ter toda a fluéncia e a naturalidade do texto original ®. “Pierre Menard, autor del Quijote”, uma lig&io de Borges sobre linguagem e tradugao Para que possamos discutir os problemas ¢ as limi- tages dessa imagem consagrada que vincula a traducio & transferéncia de significados de uma lingua para outra, yamos examinar um conto do escritor argentino Jorge Luis Borges que tem um titulo instigante: “Pierre Menard, autor del Quijote” #, Embora seja um conto bastante com- plexo que, & primeira vista, pode desiludir os leitores me- nos acostumados a visitar 0S textos: Jabirinticos de Borges, vale a pena tentar penetrar sua trama aparentemente sim- ples, mas que oferece, em suas poucas paginas, um dos comentérios mais brilhantes ¢ mais completos que j4 se escreveu sobre os mecanismos da linguagem e suas impli- 3 The principles of translation, publicado em 1791. Apud BASsNETT- “McGumre, Susan. Translation studies, p. 63. V. Bibliografia co- mentada. {Ini —, Ficciones, p. 47-59. V. Bibliografia comentada. Todas as citagdes sero traduzidas do original pela Autora. cagSes para uma teoria da traducdo e para uma teoria da literatura °. O conto é apresentado como uma resenha péstuma das obras de Pierre’ Menard (personagem ficticio criado por Borges), um homem de letras francés que viveu na primeira metade do século XX. O nartador € um critico literario que tenta apresentar 0 verdadeiro catélogo das obras de Menard, de quem se diz amigo, com o objetivo de retificar um catélogo recém-publicado, que considera falso e incompleto. Segundo o narrador, é facil enumerar © que chama a obra “visivel” de Menard; e ele nos apre- senta dezenove obras (monografias, tradugdes, andlises alguns poemas) publicadas e nao-publicadas, que sugerem, como escreveu Borges no prélogo de Ficciones, 0 “dia- grama da histéria mental” de Menard: sua ideologia, suas concepgGes tedricas, seus desejos e até suas contradicdes A obra “visivel” de Menard e o sonho de uma linguagem ndéo-arbitraria ‘Vamos examinar algumas das obras “visiveis” de Me- nard para que possamos entender um pouco sua concep- co de linguagem. Se analisarmos mais detidamente seus trabalhos tedricos, veremos que tém muito em_comum com as teorias tradicionais da_traduga ‘omecemos nossa leitura 5 Para uma versio mais aprofundada da leitura de “Pierre Menard, autor del Quijote” proposta aqui, ver ARROJO, Rosemary. “Pierre Menard, autor del Quijote”: esboco de uma poética da tradugio via Borges. Traducdo e Comunicagéo — Revista Brasileira de Tra- dutores, n° 5. V. Bibliografia comentada. pelos seguintes “trabalhos” encontrados no arquivo parti- cular de Menard: (...1 1 c) uma monografia sobre “certas conexées ou afinidades' do pensamento de Descartes, (U6IBAIZ e de John Wilkins: d) uma monografia sobre a Ars magna generalis, de Ramén Lull; L.-J h) os rascunhos de uma monografia sobre a légica simbo- lica de George Boole (p. 46). © que teriam em comum esses pensadores? No en- saio “Fl idioma analitico de John Wilkins”, da coletanea Otras inquisiciones *, 0 proprio Borges sugere algumas co- nexdes entre o pensamento de René Descartes (1596- -1650), importante fil6sofo francé igioso_ inglés John Wilkins (1614-1650). ; cada palavra teria um significado fixo e nico, independentemente de qualquer contexto. Segundo Borges, no idioma universal idealizado por Wilkins, “cada palavra define a si mesma” (p. 222), constituindo um signo evidente ¢ definitivo, imediatamente decifrével por qualquer pessoa. Tal idioma, imaginava Wilkins, deveria ser capaz de “organizar e abarcar todos os pensamentos humanos” (p. 222). Borges descreve esse projeto ambi- cioso: [Wilkins] dividiu 0 universo em quarenta categorias ou gé- heros, subdivisiveis, por sua vez, em espécies. Atribuiu a cada género um monossilabo de duas letras; a cada dife- renea, uma consoante; a cada espécie, uma vogal. Por exemplo, de quer dizer elemento; deb, primeiro dos ele- ©P, 221-5, V. Bibliografia comentada. Todas as citagdes serfo tra- duzidas do original pela Autora. 16 mentos, 0 fogo; deba, uma porgio do elemento do fogo, uma chama (p. 222). E examina mais detidamente a oitava categoria, a das pedras: Wilkins as divide em comuns (rocha viva, cascalho, ardé- sia), razoavels (marmore, ambar, coral); preciosas (pérola, opala); transparentes (ametista, safira) insoliveis (carva' argila e arsénico). Quase tao alarmante quanto a citava ‘a nona categoria. Esta nos revela que os metais podem ser Imperfeitos (cinabre, merctirio); artificiais (bronze, latéo), recrementicios (limalha, ferrugem) e naturais (ouro, esta- nho, cobre) (p. 223). De acordo com Borges, ainda no mesmo ensaio, Des- cartes, antes de Wilkins, j4 havia sonhado usar o sistema decimal de numeragdo para criar uma linguagem univer- sal, absolutamente racional, livre de ambigiiidades. Supu- nha Descartes que, através da utilizacao de algarismos, poderiamos “aprender num s6 dia a nomear todas as quan- tidades até o infinito e a escrevé-las num idioma novo” (p. 222). O filésofo alemao Gottfried Wilhelm Leibniz (1646- -1716), precursor do projeto da (SgiGaysimbélica, cujo objetivo ultimo é John Wilkins e na Ars magna do fil6sofo e missionario espanhol Ramén Lull (1236-1315)’. De todos esses projetos, a obra de Lull € talvez a mais extravagante. Tratava-se de uma armacao de discos com 0s quais propunha relacionar exaustivamente todas as possiveis relagdes de um tdpico. A armacao era cons- 7 Cf, Lewis, E. 1. A survey of symbolic logic. Berkeley, University ‘of California’ Press, 1918. p. 4. Se tituida de trés cfrculos concéntricos divididos em compar- timentos. Um circulo era dividido em nove predicados re- levantes; 0 terceiro efrculo era dividido em nove pergun- tas: “O qué? Por qué? De que tamanho? De que espé- cie? Quando? Onde? Como? De que lugar? Qual?”. Um dos circulos era fixo; os outros giravam, fornecendo uma série completa de perguntas, e de afirmacSes relacionadas a elas ® Finalmente, 0 matematico légico inglés George Boole (1815-1864) & considerado o segundo fundador da légica simbélica, intuida por Lull e Wilkins, e formaliza- da, pela pri r Leibniz. . Esse desejo, compartilhado por Descartes, , Lull e Boole, € que nos fornece um esboco da teoria da linguagem ¢ da teoria da tradugdo professadas por Menard, se revela também na teoria literaria implicita em seus trabalhos criticos. Para Menard, ‘anto 0 poético como 0 nao-poético sio caracteristicas textuais intrinsecas ¢ es taveis, que podem ser objetivamente determinadas. O item }b do catélogo de suas obras 6, por exemplo, uma monogratia sobre a posstbilidade de construir um voca- bulario poético de conceitos que nao fossem sindnimos ou perifrases dos que informam a linguagem comum, “mas ob- jetos ideais criados por uma convengao e essencialmente destinados as necessidades posticas" (p. 48). 3Cf, Reesz, W. L. Dictionary of philosophy and religion; eastern and western thought. New Jersey, Humanity Press, 1980. Cf, Lewis, E. L, op. cit, p. 4 18, O item 7 é “um exame das leis métricas essenciais da prosa francesa, ilustrado com exemplos de Saint-Simon” (p. 49). O item n é “uma obstinada anélise dos ‘costumes sintaticos de Toulet’”, ¢ o item s é “uma lista manuscrita de versos que devem sua eficdcia a pontuagao” (p. 50). p. 47). $ Leibniz, Ramon Lull e John Wilkins, considera que a cri- tica, como a tiadugdo ou a Ieitura, ndo deve “interpretar” ou ir além do texto original ¢, sim, delimitar scus contor nos objetivos ¢ imutdveis. Contudo, a propria bibliografia de Menard sugere a impossibilidade desse desejo. Como poeta ¢ tradutor, ele constantemente produz verses diferentes do “mesmo” texto. O item que encabeca o catélogo de seus trabalhos 6 “um soneto simbolista que apareceu duas vezes (com variagées) na revista La Conque (nimeros de marco e outubro de 1899)”. O item g é uma traducio, “com pré- Jogos e notas do Libro de la invencion liberal y arte del juego de ajedrex, de Ruy Lépez de Segura”. O item k é outra traducdo, “uma traducio manuscrita” (e, portanto, n&io uma versao “definitiva”) da “Aguja de navegar cul- tos”, de Quevedo, intitulada “La boussole des précieux”. © item o € “uma transposiedo em alexandrinos do ‘Cime- tigre Marin’, de Paul Valéry”. Curiosamente, ha também uma “versio literal da versio literal” que fez Quevedo da Introduction @ la vie dévote de San Francisco de Sales (p. 48-50). y que examinamos a seguir. ——_——_ -—n—n«6«<—Oaw>wm>4s,s— A obra “invisivel” e a missao impossivel de Menard Segundo narrador, a obra que realmente define o talento de Menard 6 seu trabalho “invisfyel”, sua obra mais significativa — “a subterranea, a interminavelmente herdica, a impar”, ou seja, a reprodugio dos capitulos IX e XXXVIII da Primeira parte do Dom Quixote, de Mi- guel de Cervantes, e parte do capitulo XXII. Por que seria Sinvisivel” essa obra de Menard? Em _primeinopiugaissem oposicéo a sua obra “visivel” Além disso, invisive g que Menard chama de a “reescritura” ou a do Quixote fosse, na verdade, uma “leitura”, forma “invi sivel” de se reescrever ou traduzir. trole total sobre o texto, “total identificagao com ul determinado” (p. 51). Tal atitude rejeita, obviamente, uma interpretagao contemporanea do Quixote e, ao negar- -se a simplesmente “interpretar” ou “traduzit” o Quixote, Menard pretende recuperar ndo apenas a! © projeto “invisivel” de Menard reflete, portanto, uma teoria da tradugio (e uma teoria da leitura) seme- Ihante A de Catford ou Nida, j4 que parte de uma teoria da linguagem que autoriza a possibilidade de determinar delimitar o significado de uma palavra, ou mesmo. de um texto, fora do contexto em que é lida ou ouvida. conhecer bem o espanhol, recuperar a f6 catélica, guer- rear contra os mouros ou contra os turcos, esquecer a his- téria da Europa entre os anos de 1602 e de 1918, ser Mi- guel de Cervantes (p. 52-3). Abandona, entretanto, tal método, por ser pouco es- timulante, Afinal, como nos explica o narrador, fenard imp6e-se, assim, 0 “misterioso dever de recons- truir literalmente a obra espontinea de Cervantes” (p. 52). toda traducao parece, inclusive, rada do tradutor imaginado por Tytler, refletido nos trés principios basicos comentados no inicio deste capitulo: 1) a tradugao deve reproduzir em sua totalidade a idéia do texto original; 2) a tradugdo deve ter 0 mesmo estilo do original; e, 3) a traduedo deve ser fluente e natural como o ‘original. Embora reconheca que seu projeto é ainda mais “im: possivel” do que “tornar-se” Cervantes, 0 proprio Menard, como um supertradutor, consegue (aparentemente) ven- cer essa impossibilidade ¢ produz alguns fragmentos ver- balmente idénticos ao Dom Quixote de Miguel de Cer- vantes, Entretanto, ao tentar identificar-se totalmente com Cervantes e proteger a intencfio ou o significado “origi- nais” do texto, Menard inadvertidamente ilustra a invia- bilidade de seu projeto. © narrador nos apresenta um fragmento do Dom Quixote reescrito por Pierre Menard e 0 compara ao fragmento equivalente do Dom Quixote de Cervantes: £ uma revelagtio cotejar 0 Dom Quixote de Menard com 0 de Cervantes. Este, por exemplo, escreveu (Dom Quixote, primeira parte, capitulo nono): -] a verdade, cuja mae € a histéria, émulo do ‘tempo, depésito das a¢Ges, testemunha do passado, exem- plo e aviso do presente, adverténcia do porvir". Redigida no século dezessete, redigida pelo “engenho leigo” Cer- vantes, essa enumeragaio 6 um mero elogio retérico da his- t6ria. Menard, por outro lado, escreve: -] a verdade, cuja mae 6 a histéria, émulo do tempo, depésito das agdes, testemunha do passado, exem- plo e aviso do presente, adverténcia do porvir”. A historia, "mae" da verdade; a idéia é assombrosa, Menard, con- temporaneo de William James, nda define a histéria como uma indagacao da realidade, mas como sua origem. A ver- dade histérica, para ele, ndo € 0 que aconteceu; 6 0 que julgamos que tenha acontecido. As sentengas finais — xemplo @ aviso do presente, adverténcia do porvir” — so descaradamente pragméticas. Também 6 vivido 0 con- traste entre os estilos. O estilo arcalzante de Menard — no fundo estrangeiro — padece de alguma afetacdo. O mesmo néo acontece com o do precursor, que maneja com naturalidade 0 espanhol corrente de sua época (p. 57). Menard tenta recuperar o significado “original” de Cervantes, mas somente consegue reproduzir suas pala- vras. O que Menard 1é e reproduz como sendo o verda- deito Quixote (e, portanto, de acordo com Menard, imu- tavel e evidente) € como al; 22 bilidade: da repeticao total, exatamente porque as pala~ vras do texto de Cervantes nao conseguem delimitar ou petrificar seu significado “original”, independentemente de um contexto, ou de uma inferpretacdo. Essas mesmas pa- Javras assumem um determinado valor quando 0 narra- dor/critico as relaciona ao & valor diferente quando relacionadas ao contexto de Pier Menard. Assim, ainda que um tradutor conseguisse che- gar a uma repeti¢go total de um determinado texto, sua tradugdo no recuperaria nunca a totalidade do “original”; revelaria, inevitavelmente, uma leitura, uma interpretacao desse texto que, por sua vez, sera, sempre, apenas lido interpretado, ¢ nunca totalmente decifrado on controlado. ‘Além disso, quando Menard se transforma em “au- tor” do Quixote, seus leitores também interpretam seu texto sob diferentes pontos de vista e nfo conseguem recuperar suas intengdes originais, Além da interpretacao do narra- dor/eritico, que ja mencionamos acima, ha, por exemplo, a de Madame Bachelier, que ve no Quixote de Menard “yma admirdvel ¢ tipica subordinagao do autor a psico- logia do her6i”. Outros Ieitores, “nada perspicazes”, se- gundo o narrador, consideram a obra “invisivel” de Me- nard uma mera “transcricfio” do Quixote. Outros, ainda, como a Baronesa de Bacourt, reconhecem na mesma obra a influéncia de Nietzsche (p. 56). © texto original redefinido ‘Até aqui, nossa répida incursao pelo conto de Borges tentou questionar a visio tradicional de texto, sugerida pelas teorias da tradugio esbocadas no infcio deste capi tulo. Como sugere nossa leitura de “Pierre Menard, autor del Quijote”, ‘Assim, se yoltarmos jest6es iniciais, referentes ao proprio titulo deste livro, parece ficar mais claro que, ao traduzirmos translation workshop pot “ofi- cina de tradug’o”, o que acontece nao é uma transferéncia de significado, porque o proprio significado do “ori- B io & fixo ou estayel e depende do contexto em que ocorre. Assim, antes de traduzir translation workshop por “oficina de tradugfio”, estabeleceu-se 0 contexto em que havia originalmente ocorrido: titulo de um curso espe~ cial e ayangado, oferecido por uma universidade ameri- cana, Ao mesmo tempo, a traducio que sugeri, “oficina de tradugdo”, como 0 Quixote de Menard em relagdo ao Quixote de Cervantes, passa a existir num outro contexto © ganha vida propria, a partir do momento em que se transforma no titulo de um livro publicado no Brasil. © texto, como o signo, deixa de ser a representacio “fiel” de um objeto estével que possa existir fora do labi- rinto infinito da linguagem e passa a ‘A imagem exemplar do texto “original” deixa de ser, portanto, a de uma seqiiéncia de yagdes que contém uma carga determinayel e totalmente resgatével. Ao invés de considerarmos 0 texto, ou 0 signo, como um recepticulo ffijgu® algum “contetido” possa ser depositado e mantido sob controle, proponho que sua ima- taforicamente, em nossa “oficina”, o “palimpsesto” passa a set 0 texto que se apaga, em cada comunidade cul- tural e em cada época, para dar lugar a outra @Serituralp (ou interpretac&o, ou leitura, ou tradugao) do “mesmo” texto, Assim, como nos ilustrou o conto de Borges, 0 texto de Dom Quixote nao pode ser um conjunto de sig- nificados estéveis ¢ iméveis, para sempre “depositados” nas palavras de Miguel de Cervantes. O que temos, 0 ue é possivel ter, sio suas muitas| suas muitas agdes — seus muitos “palin 3 A questao do texto literario Nenhum problema tao consubstancial com as letras e seu modesto mistério como o que propée uma traducao. Um esquecimento estimulado pela vai- dade, 0 temor de confessar processos mentais que adivinhamos perigosa- mente comuns, a tentativa de manter intacta e central uma reserva incal- culdvel de sombra velam as tais escri- turas diretas, A traducdo, por outro lado, parece destinada a ilustrar a discussio estética. (Jorge Luis Borges) O preconceito da inferioridade ou da impossi lade © ponto nevrilgico de toda teoria de tradugao parece ser a tradugao dos textos que chamamos de “literdrios”, questéo geralmente adiada ou exclufda tanto dos estudos sobre tradugao quanto dos estudos literérios. 'A grande maioria dos escritores ¢ poetas que abor- dam a questo da tradugdo de textos literdrios considera que traduzir & destruir, & descaracterizar, & trivializar. Para muitos, a traducdo de poesia é teérica e praticamente impossivel. Para outros, a eventual traduzibilidade do texto poético é vista como sinal de inferioridade. Para o poeta americano Robert Frost (1874-1963), por exemplo, a verdadeira poesia & intraduzivel, definindo-se preci mente como aquilo que “se perde” em qualquer tentativa de traducfo'. Segundo o francés Paul Valéry (1871- -1945), “contemporaneo” e “companheiro” de Pierre Me- nard, a qualidade do texto poético 6 inversamente pro- porcional a sua traduzibilidade: quanto mais resistente for © texto “aparentemente” poético ao ataque de qualquer transformacdio formal, menor sera o seu grau de pocsia >. George Steiner, em After Babel: aspects of langua- ge and translation (¥. Bibliogratia comentada), cita varias opinides semelhantes, também de escritores e poetas céle- bres, insatisfeitos com os “estragos” causados pela tra- dugao. Entre outros, Steiner cita 0 poeta alemao Heinrich Heine (1797-1856), para quem as versdes francesas de seus poemas eram “luar recheado de palha” (p. 240). O russo- ~americano Vladimir Nabokov (1899-1977), um dos maio- res escritores deste século e que, entre suas inimeras obras, incluiu tradugSes, expressa sua visto no poema “On trans- lating ‘Eugene Onegin’ ”: What is translation? On a platter A post's pale and glaring head, A parrot's speech, a monkey's chatter, And profanation of the dead (p. 240). (Sobre 9 Tradueao de ‘Eugene Onegin'” O que é traducéo? Numa bandeja, 'Citado pelo poeta ¢ tradutor inglés Donald Davie numa confe- réncia apresentada para os alunos do Programa de Mestrado em Teoria ¢ Prdtica da Traducko Literdria, Universidade de Essex, chester, Inglaterra, no ano letive de 1967-1968; texto mimeo- c arafado. “Idem, A cabega pélida e fulgurante de um poeta, A fala de um papagaio, a tagarelice de um macaco, E a profanagdo dos mortos.) Marin Sorescu, poeta romeno contempordneo, tam- bém expressa sua critica através de um poema, intitulado “Tradugio”, que traduzo a partir da versao inglesa: Estava fazendo exame De uma lingua morta. E tinha que me traduzir De homem para macaco. Fiquet na minha, Transformando uma floresta Em texto. Mas a traducéo ficou mais dificil Quando fui chegando perto de mim. Porém, com um certo esforco, Encontrei equivalentes satisfatérios Para as unhas @ os pélos dos pés. Perto dos joelhos Comecei a gaguejar. Perto do coragéo minha méo comegou a tremer E inundou o papel de luz, Mesmo assim, tentei improvisar Com os pélos do peito, Mas falhei completamente Na alma. Segundo esses poetas e escritores, a tradugao é uma atividade essencialmente inferior, porque falha em captu- rar a “alma” ou o “espirito” do texto literario ou poético. Essa visio reflete, portanto, a concepgo de que, especial- mente no texto literario ou poético, a delicada conjungao 28 entre forma e conteiido nfo pode ser tocada sem prejuizo vital, o que condenaria qualquer possibilidade de tradugio bem-sucedida. Uma teoria literaria menardiana Novamente, estamos diante de uma concepgao “me- nardiana” da literatura, reflexo da teoria lingiifstica e da teoria da tradugfo que comentamos no capitulo anterior. Como vimos, Pierre Menard somente consideraria legitima uma tradugao que, literalmente, nao alterasse em nada o texto “original”, uma traducdo que, em pleno século XX, pudesse resgatar © yerdadeiro Quixote escrito pot Miguel Fe Cervantes no inicio do século XVII. Para o poeta, tradutor e “romancista invisivel” Pierre Menard, como para os poetas ¢ escritores citados acima, © literério € 0 poético sao caracteristicas textuais intrinsecas e estaveis, que permitem, inclusive, uma distingao clara © objetiva entre textos literdrios ¢ textos nao- iterérios. Portanto, qualquer mudanga (tanto a nivel formal, quanto a nivel de contetido) que pudesse ocorrer num texto “‘literério” implicaria uma alteragfo de suas caracteristicas ¢, conse- giientemente, a eventual perda daquilo que o torna “Tite- rario”. ‘Ao mesmo tempo, podemos observar que a teoria de tradugdo implicita nos comentarios desses poctas & escri- tores é essencialmente a mesma do tedrico Eugene Nida, cuja comparagdo do processo de traducdo a uma transfe- réncia de carga de um grupo de vag6es para outro exami- namos no inicio do capitulo anterior. Nida redime a tra~ dugfio de textos nao-literérios exatamente porque, nesse caso, a conjungao contetido/forma nao € considerada fun- damental, no importando, como vimos, em quais vagoes se encontram as diversas partes da carga transportada, AERA TT nem a seqiiéncia em que os vagbes se organizam, mas, sim, que todos os contetidos alcancem 0 seu destino. Essa “transferéncia” nao pode, portanto, ser aceita pelos defensores da intraduribilidade do literério ¢ do poé- fico porque consideram que é precisamente essa intocabi- Tidade da conjunco forma/contetido que constitui a pe- culiaridade do texto 4artistico”. A literariedade é, assim, considerada como algo que alguns textos privilegiados “contém”, como uma “alma” ou um “espitito”. Conforme escreveu poeta italiano Giacomo Leopardi (1798-1837) + ‘As idéias esto contidas e praticamente engastadas nas palavras como pedras preciosas num anel. Elas se incor- poram as palavras como a alma ao corpo, de tal modo que Constituem um todo. As idéias sao, portanto, inseparaveis, des palavras:e, se se sopararem delas, ndo sero mals 0 mesmas. Escapam ao nosso intelecto @ a0 nosso poder de compreensto: tornam-se irreconheciveis, exatamente © que aconteceria & nossa alma se se separasse de nosso corpo*. ‘Tanto a imagem de Leopardi, que sintetiza as con cepgdes de Nabokov, Frost, Valéry © Sorescu (além de Menard), quanto a de Nida, apresentam © texto (literd- rio ou nao) como um receptaculo de idéias e/ou carac- teristicas distinguiveis € objetivamente determinaveis. No capitulo anterior, através do conto de Borges, tentamos questionar essa concepgao de texto e, A imagem do texto/ /vagao de carga sabrepusemos @ imagem do texto/palimp- testo, ‘Tentaremos, agora, examinar as implicagoes desse texto/palimpsesto para uma definicao da propria literatura, pois a discussao sobre a traducio ou a traduzibilidade dos fextos que chamamos de literdrios ou poéticos depende de uma discussio anterior sobre o status do texto “original”, isto é, sobre aquilo que nos leva a considerar um deter- minado texto “poético” ou “literério”. TApad Sremer, G. After Babel..., note 1, Ps 242. Repensando o literdrio Se tentéssemos rastrear, através da hist6ria da cultura ocidental, as diversas respostas dadas a pergunta aparente- mente simples: “O que € literatura?”, provavelmente che- gariamos a respostas tao diferentes quanto as épocas que as produziram. Basta lembrar, por exemplo, que enquanto Plato bania a poesia de sua Republica por ser “perigosa”, Aristételes a celebrava, principalmente sob a forma de tra- gédia, por seu efeito benéfico de catarse. Mas, nem pre- cisarfamos consultar nossos mestres gregos. Se fizéssemos 4 mesma pergunta a te6ricos contempordneos, também ob- teriamos respostas divergentes. Na verdade, seria surpreen- dente se obtivéssemos respostas muito semelhantes, uma vez que nossa tradi¢ao cultural tem chamado de “poemas” textos tao dispares quanto Os Lusiadas, de Camées, e “Quadrilha”, de Carlos Drummond de Andrade, ou Para- dise Lost, de John Milton, e “In a Station of the Metro”, de Ezra Pound. De um lado, temos textos monumentais como os de CamBes e Milton e, de outro, textos que um leitor avesso sutilezas do poético consideraria prosaicos, como 0 poema citado de Pound, constituido de apenas dois versos: The apparition of these faces in the crowd; Petals on a wet, black bough. (A aparicéo dessas faces na multidac Pétalas num ramo negro, imido.) que teriam em comum esses textos tao diferentes? O que nos permite classificé-los com 0 mesmo rotulo de “poema”? Certamente, o que nos permite chamar tanto Os Lustadas quanto “Quadrilha” de “poemas” nao sio suas caracterfsticas textuais intrinsecas, nem sua tematica, nem mesmo-as eventuais “intengdes” de seus autores tio distintas entre si, mas sim, nossa atitude perante os mes- mos. O poético é, na verdade, uma estratégia de leitura, uma maneira de ler e, no, como queria Pierre Menard, um conjunto de propriedades estaveis que objetivamente “encontramos” em certos textos. Assim, ha textos que, devido a circunstdncias exteriores ¢ nao as suas caracte- risticas inerentes, nossa tradigao cultural decide ler de forma literdria ou poética. A literatura seria, portanto, uma categoria convencio- nal criada por uma deciséo comunitéria. Como sugere 0 teérico americano Stanley Fish, 0 que ser4, em qualquer época, reconhecido como literatura é resultado de uma de- cisdo, consciente ou nao, da comunidade cultural sobre o que serd considerado “literério” *, Podemos imaginar, por exemplo, que 0 contexto histérico e cultural que produziu e celebrou um poema como Os Lusiadas certamente nao produziria nem reconheceria como “poema” um texto como “Quadrilha”. Hoje, entretanto, nossa comunidade cultu- ral, que Stanley Fish chama de “comunidade interpreta~ tiva”, permite incluir tanto Camées quanto Drummond entre os maiores poetas da lingua portuguesa. De ma- neira semelhante, podemos entender também por que al- guns poetas so to celebrados durante um certo perfodo e completamente esquecidos em outro, ou, ainda, porque as vezes “redescobrimos” ou “‘revisitamos” um poeta “in- justigado” no passado. Quando ameixas néo sao simplesmente ameixas Tomemos um exemplo pritico que possa nos ajudar a ilustrar essas conclusées sobre o literiirio ou 0 postico 41s there a text in this class?; the authority of interpretive commu- nities, p. 1-17. V. Bibliogratia comentada. = € a examinar suas implicagdes para 0 proceso de tra- dugao. Suponhamos que o seguinte fragmento seja o con- teido de um bilhete deixado por um héspede norte-ame- ricano sobre a mesa da cozinha de seu anfitrido brasileiro, que nao domina muito bem o inglés: This is just to say | have eaten the plums that were in the icebox and which you were probably saving for breakfast. Forgive me, they were delicious: so sweet and so cold. Como tradutores de um simples bilhete de cardter pessoal, cujo contexto e fungo acabam de ser estabelecidos, sabe~ mos que nosso objetivo é reproduzir a informacdo e 0 pedido de desculpas do “original Este bilhete 6 6 para Ihe dizer que comi as ameixas que estavam na geladeira © que provavelmente vocé estava guardando para o café da manha. Desculpe-me, elas esta- vam deliciosas, tao doces e geladas. Terfamos, entretanto, outras leituras, outras tradugdes ¢, portanto, pelo menos um outro “texto” ao constatarmos que o fragmento acima é, na verdade, um poema do ame- ricano William Carlos Williams (1883-1963): This is just to say I have eaten the plums: that were in the icebox 50 exemplo ¢ os argumentos apresentados aqui foram inicialmente desenvolvidos em ARROJO, Rosemary. A traducio como reescri- lura: 0 texto/palimpsesto © um novo conceito de fidelidade. Tra- hathos em Lingiiistica Aplicada, Campinas, Universidade Estadual de Campinas, Instituto de Estudos da Linguagem, dez. 1985, n.° 5 © 6, p. 1-8. 33 — SY and which you were probably saving for breakfast Forgive me they were delicious 80 sweet and so cold ® Ao setmos apresentados ao “mesmo” fragmento, agora rotulado de poema, o que antes era prosaico passa a ser poético. Como leitores do poema, membros de uma comunidade cultural para a qual tal texto se enquadra dentro das convengdes literdrias estabelecidas, aceitamos o desafio implicito de interpreté-lo poeticamente ¢ passamos a procurar um sentido coerente para ele, Passamos a pen- sar, por exemplo, nas possiveis implicagdes da oposi¢ao entre 0 ato de comer as ameixas ¢ as relagdes sociais que esse ato viola. Oposigdo essa que nao se resolve pacifica- mente: ao mesmo tempo em que o poema, pela sua propria razao de ser, reconhece a prioridade das regras, através do pedido de perdio, afirma também que a experiéncia sensual imediata € importante (principalmente pelas suas diltimas palavras “so sweet and so cold”) © que as relagdes pes- soais (a relagao sugerida entre o J e o you) devem ante- cipar um espaco para tal experiéncia , Enquanto que a tradugdo do texto/bilhete ndo nos trouxe maiores dificuldades, a traduciio do texto/poema nos obrigaria a tomar varias decisées nada faceis. Um leitor/tradutor que concordasse, em linhas gerais, com a interpretacdo esbogada acima, teria que resolver, por exem- Em Brabtey, S. et alii, ed. The American tradition in literature, 4, ed. New York, Grosset & Dunlap, 1974, p. 1618-9. 7 Essa leitura foi esbogada pelo critico americano Jonathan Culler, em Structuralist poetics. New York, Cornell University Press, 1975. p. 175-6, 34 plo, 0 problema da tradugao de plums. Se aceitamos que, no poema “original”, as frutas representam um estfmulo & sensibilidade que transgride as regras sociais, é importante que as associacdes desenvolvidas a partir de plums en- contrem equivalentes no texto traduzido. J4 que passam a representar 0 sensual, ou aquilo que excita os sentidos, 6 importante que essas frutas, cobicadas e consumidas pelo eu do poema e especialmente reservadas pelo vocé para o café da manha, sejam frutas vermelhas e redondas (talvez como a fruta proibida e desejada do Jardim do Eden), de pele lisa e macia, carnudas, suculentas e doces. Tam- bém passa a ser significative 0 fato de que essas associa~ des encontrem eco num outro sentido possivel de plum, que em inglés coloquial pode significar “algo considerado bom e desejavel, como por exemplo, um emprego bem re- munerado”, acepgao derivada de outras mais antigas. O Oxford English dictionary (edicio compacta) lista algu- mas que podem nos interessar: “uma coisa boa, um pitéu; uma das melhores partes de um artigo ou livro; uma das recompensas da vida; também o melhor de uma colecao de objetos ou animais”. Ao traduzirmos plums por ameixas, entretanto, 0 le- que de associagdes pode se modificar radicalmente. Em primeiro lugar, ameixas nfo sao necessariamente plums. Quando falamos em ameixas, hoje, na comunidade cultu- ral em que vivemos, pensamos em ameixas pretas (prunes, em inglés), frutas secas e enrugadas, que dificilmente se- riam associadas ao sensual e que, por uma irdnica coinci- déncia, podem fazer parte de um nada “poético” café da manha, como remédio para distiirbios intestinais. Pensa~ mos também em nésperas, as ameixas amarelo-alaranjadas, de pele lisa e aveludada que, embora pudessem deflagrar algumas das associacdes que construfmos a partir das ameixas vermelhas, no stio as mesmas frutas de que nos fala o poeta norte-americano. Nesse ponto, tocamos em uma questio importante, aliés uma das primeiras a ser abordada em qualquer discussio sobre traducdo e, em especial, sobre a traducdo de textos literdrios: a que deve ser fiel nossa traducio de plums nesse poema? Deve a traducao ser fiel a0 con- texto em que (supomos que) o poema tenha sido escrito, isto 6, deve a traducdo levar em conta que 0 poema pro- vavelmente tenha sido escrito na pacata Rutherford, New Jersey, em meados da década de 30? Podemos imaginar que, nos anos 30, numa cidadezinha do nordeste ameri cano, consumir ameixas vermelhas no café da manha nao era necessariamente um habito consagrado da populagéo em geral, 0 que nos levaria a concluir que as plums do poema de Williams realmente sugerem algo que foge ao habitual. Mas, quando pensamos em “ameixas verme- Ihas” em nosso contexto cultural, a sugestiio néo é sim- plesmente de algo que foge ao habitual, mas, sim, de algo muito raro ¢ inacessivel. E isso, considerando que nosso contexto cultural é o de um grande centro urbano e de- senvolvido da regido Sul do Brasil. Essa sugestao de raridade e inacessibilidade, que mo- dificaria sensivelmente o status da sensualidade no poema traduzido, se intensificaria, por exemplo, se esse poema atingisse um piblico leitor em outras regides brasileiras, ou mesmo em outros pafses de lingua portuguesa. Assim, mesmo se fosse possivel, uma traducfo “literal” do poema estaria estimulando associagdes e relacGes diferentes da- quelas que podemos desenvolver a partir do “original”. Por outro lado, uma tradugdo “néo-literal” do poema, isto é, uma tradugo que pretendesse recriar e adaptar suas imagens mais importantes, para que 0 texto traduzido fosse fiel as associagSes que construimos a partir do “ori- ginal”, uma traducio que escolhesse “péssegos" ou “sa- potis”, ou quaisquer outras frutas, como equivalentes do original plums, nao seria fiel ao poema, enquanto repre- 36 sentante e produto de um determinado autor ¢ seu con texto histérico. A tradugao de textos literdrios redefinida © que poderia tornar extremamente dificil, e até mesmo impossivel, a traducdo do poema de William Carlos Williams nao seriam, portanto, suas caracteristicas ineren- tes, mas sim, a interpretagao que construfmos a partir dele. A tradugio do substantivo plums, que nos pareceu Sbvia quando consideramos 0 texto/bilhete, passa a ser proble- mética quando lidamos com o texto/poema, exatamente porque, quando “aceitamos” Jer um determinado texto de, forma “poética” (isto 6, quando aceitamos que determi, nado texto possa ser rotulado de “poema”), passamos, considerar significativas todas as relagbes e associacdes pudermos combinar numa interpretacdo coerente. Assim, as questdes acima, que provisoriamente deixamos sem res- postas, sugerem que qualquer traducdo de “This is just to say” seria necessariamente um reflexo da interpretaca que, por alguma razdo, decidissemos privilegiar. Da mesma forma que a leitura do critico/narrador em “Pierre Menard, autor del Quijote” “diferencia” os dois fragmentos verbalmente idénticos do Dom Quixote (um deles, de Cervantes; 0 outro, de Menard), foi a nossa leitura que distinguiu 0 poema de William Carlos Williams do simples “bilhete” escrito por um hospede norte-ameri- cano a seu anfitrido brasileiro. Tais conclusées a respeito da literariedade desmisti- ficam os preconceitos que, em geral, envolvem a tradugao dos chamados textos “literdrios” ou “poéticos”, Isso nao significa, entretanto, que a tradugao desses te im- ples ou fécil. exigem dos poetas. 4 A questo da fidelidade Qual dessas muitas traducées (da Odisséia] ¢ fiel?, quererd saber, tal- vez, meu leitor. Repito que nenhuma ou que todas, Se a fidelidade tem que ser ais imaginacées de Homero, aos irrecuperdveis homens e dias que ele imaginou, nenhuma pode sé-lo para nds; todas, para um grego do século dez. (Jorge Luis Borges) © conceito de fidelidade e o texto/palimpsesto ‘Antes de nos concentrarmos no poema de William Carlos Williams, lembremo-nos, uma vez mais, de Pierre Menard. Como vimos, Menard, 0 tradutor total, aspirava a uma fidelidade total: pretendia reescrever 0 Quixote exatamente como Miguel de Cervantes 0 escrevera, repe- tindo seu contexto histérico e social, suas circunstancias, suas intengdes e motivagées. TT A impossibilidade do sonho de Menard jé nos per- mitiu reformular o conceito de texto “original” e, até mesmo, o préprio conceito de literatura. Resta-nos, agora, Tepensar a questo da fidelidade. Menard nao pode ser completamente fiel ao texto de Cervantes porque esse texto, conforme tentamos ilustrar através da imagem do texto/palimpsesto, nao € um recep- taculo de contetidos estdveis e mantidos sob controle, que podem ser repetidos na integra. O texto de Cervantes, como qualquer outro texto, “literério” ou nao, somente poderd ser abordado através de uma leitura ow interpre- tacao. Como Pierre Menard, todo leitor ou tradutor nao Ppo- derd evitar que seu contato com os textos (e com a pré- pria realidade) seja mediado por suas circunstdncias, suas concepgdes, seu contexto histérico e social. Apropriada- mente, como sugere o fragmento do Quixote de Cervantes, “reproduzido” por Menard, a “mae da verdade é a histo. tia”, isto é, aquilo que consideramos verdadeiro sera irre- mediavelmente determinado por todos os fatores que cons- tituem nossa histdria pessoal, social e coletiva. Nesse sen- tido, é a histéria que dé a luz a verdade, e a verdade que serve de modelo para a histéria. Assim, 0 Quixote de Menard, embora verbalmente idéntico ao de Cervantes, revela, mais do que 0 mundo de Cervantes, a propria his- toria de Menard, que, por sua vez, também ¢ mediada pela visio do narrador/critico, Uma Cledpatra melindrosa Para entendermos um pouco melhor essa relacdo entre histéria ¢ realidade, vamos imaginar a seguinte situagai um concurso de fantasias realizado em Sao Paulo, em meados da década de 20, durante uma festa, a qual da- 39 remos 0 titulo de Clepatra, Rainha do Nilo. Todos os convidados deverdo comparecer vestidos a cardter, e 0 ponto méximo da festa ser a escolha daquela que apre- sentar a melhor caracterizago de Cledpatra, isto é, da- quela que se apresentar como a versio mais “fiel” a Cleé- patra “original”, que viveu no Egito cerca de um século antes de Cristo. Haverd um grupo de jurados, composto de homens ¢ mulheres, previamente escolhidos por seus conhecimentos de hist6ria egipcia e da biografia da rainha. Finalmente, havera um fot6grafo especialmente contratado para documentar a escolha. Se hoje tivéssemos a oportunidade de examinar a foto da vencedora, 0 que verfamos? Certamente, reco- nheceriamos na foto varias caracteristicas do que consi- deramos os usos e costumes da década de 20. O pen- teado, a maquiagem, o traje ¢ até a expressiio facial € corporal dessa “Cleépatra” vencedora estariam inevitavel- mente marcados pelo estilo e pela moda dos anos 20, re- velando, na verdade, um parentesco muito maior com sua propria época do que com a época da “verdadeira” Cle6- patra, Embora possamos imaginar que a confeccio do traje tenha se baseado em descrigées sobre os trajes egip- cios da época de Cledpatra, eventualmente encontradas em livros de histéria, o traje que essa Cledpatra dos anos 20 conseguiu “produzir” foi feito com os tecidos, com as té- nicas de corte e costura, e por alguém que viveu nos anos 20. Se tivéssemos a oportunidade de comparar atenta- mente essa foto com outras que documentassem eventos semelhantes realizados na mesma época, mas em cidades diferentes, como Nova York, Paris, ou, quem sabe, até mesmo, Rio de Janeiro, poderfamos registrar diferencas locais © caractetisticas especificas dos usos e costumes dessas cidades, expressas através das candidatas vence- doras, E se 0 concurso fosse repetido hoje? E se também Uirdssemos uma foto de nossa Cleépatra? Mesmo que ten- lassemos, através de uma pesquisa sétia e cuidadosa, ser absolutamente “figis” aquilo que consideramos constituir a “verdadeira” Cle6patra, ¢ evitar os “erros” que even- tualmente poderiamos detectar em nossas hipotéticas Cles- Patras dos anos 20, néo revelaria a nossa versio da rainha egipcia as idiossinerasias, 0 estilo e as concepgdes dos anos 80, vigentes numa grande cidade ocidental do He- misfério Sul? © autor, o texto e o leitor/tradutor Do mesmo modo que é impossivel para Menard tor- nar-se Cervantes, e do memo modo que é impossivel Para as “Cledpatras” dos anos 20 e dos anos 80 torna- rem-se Cle6patra, 6 impossivel resgatar integralmente as intengBes e © Universo de um autor, exatamente porque essas intenodes e esse universo serio sempre, inevitavel- mente, nossa visio daquilo que possam ter sido. Além disso, como sugeriu o teérico francés Roland Barthes, qualquer texto, por pertencer & linguagem, pode ser lido sem a “aprovacio” de seu autor, que pode apenas “visi- tar” seu texto, como um “convidado”, e nfo como um Pai soberano e controlador dos destinos de sua criac&o !. O autor passa a ser, Portanto, mais um elemento que utilizamos para construir uma interpretacio coerente do texto. Assim, quando revelei ao leitor que o texto/bilhete Sobre as ameixas vermelhas era, na verdade, um poema do grande poeta norte-americano William Carlos Williams, NET Banmits, R. From work to text. In: Haart, J. V. (ed) Textual strategies; perspectives in post-structuralist criticism. ‘New ‘York, Cornell University Press, 1979. p. 77. 41 ae esse dado provavelmente motivou o leitor a aceité-lo como texto poético e a levar a sétio a interpretagao_proposta. © foco interpretativo € transferido do texto, como recepticulo da intencio “original” do autor, para o intér- Prete, o leitor, ou o tradutor. Isso nado significa, absoluta- mente, que devemos ignorar ou desconsiderar 0 que s bemos a respeito de tim autor e de seu universo quando lemos ou traduzimos um texto. Significa que, mesmo que tivermos como tinico objetivo o resgate das intencdes ori- ginais de um determinado autor, 0 que somente podemos atingir em nossa Ieitura ou tradugéo é expressar nossa visdo desse autor e de suas intencdes. Assim, empregando novamente a imagem de Barthes, mesmo que considerds semos 0 autor 0 “pai absoluto” do texto que lemos ou traduzimos, ele sera irremediavelmente nosso “convidado” nessa empresa; sua atuacdo, sua propria “presenga” nesse Projeto dependera sempre do papel que, explicita ou im- plicitamente, the outorgamos. Contudo, quando um leitor “produz” um texto, sua interpretaciio nao pode ser exclusivamente sua, da mesma forma que o escritor nao pode ser o autor soberano do texto que escreve. No conto de Borges, a interpretacéio que © narrador/critico prope do Quixote de Menard é um produto de sua época: suas leituras, seu convivio com Menard, suas concepgies teéricas. O projeto quixotesco de Menard, como vimos, também é produto de sua teoria da linguagem, de suas convicgdes, de sua “comunidade in- ‘erpretativa”, como diria Stanley Fish. O meu proprio Projeto — a teoria de tradugao que proponho neste livro — nao pode ser inteiramente meu; é, inevitavelmente, também um produto de minha histéria: dos livros que li, dos autores que aprendi a admirar, da visio de mundo que essas leituras © esses autores ajudaram a construir, A fidelidade redefinida A primeira vista, pode parecer que, a0 questionarmos a possibilidade de que uma tradugao seja inteiramente fiel a0 texto original, estamos questionando nao sé a propria possibilidade tedrica de qualquer traducéo, mas também a possibilidade de qualquer critério objetivo para avaliarmos textos traduzidos. Conforme tentamos demonstrar anteriormente, a tra- ducio seria teérica e praticamente impossivel se esperas- semos dela uma transferéncia de significados estéveis; 0 que € possivel — 0 que inevitavelmente acontece, a todo momento e em toda tradugio — é, como sugere o filé sofo francés Jacques Derrida, “uma transformacdo: uma transformacao de uma lingua em outra, de um texto em outro” #, Mas, se pensamos a tradugio como um proceso de recriagdo ou transformagao, como poderemos falar em fidelidade? Como poderemos avaliar a qualidade de uma tradugao? Retomemos o exemplo dos concursos de fantasias. Como vimos, cada “versio” apresentada da rainha Cle6- patra traria irremediavelmente a marca de sua localizagao no tempo e no espaco. Mesmo assim, essas versdes foram avaliadas durante cada um dos concursos hipotéticos, em que os jurados, ao elegerem a melhor Cledpatra, elege- ram, na verdade, aquela que consideraram a versio mais “fiel” & Cleépatra “original”, Eo que seria, para cada grupo de jurados, a Cle6patra “verdadeira” ou “original”? Como ja sugerimos, a Cledpatra “verdadeira” u “original” seria exatamente © conjunto de suposic&es ¢ caracteristicas que, para cada comunidade interpretativa, representada pelos jurados, constituiriam o personagem histérico conhecido como Cledpatra. Obviamente, da 2Im: Derripa, J. apud Spivak, G. C. Prefficio do tradutor. In: Derewwa, J. Of Grammarology. Baltimore, The Johns Hopkins University Press, 1980. p. 87. = mesma maneira que as Cleépatras escolhidas seriam dife- rentes entre si, dependendo da época ¢ da localizagio do concurso, também seriam diferentes as caracteristicas que cada comunidade interpretativa atribuiria a “verdadeira” Cleépatra. Além disso, como vimos, se pudéssemos obser- var a foto de uma de nossas hipotéticas Cleépatras da dé- cada de 20, nao seria possivel evitar que nosso julgamento se realizasse a partir de nossas préprias suposicdes e con- viecdes. Assim, a “versio” considerada “fiel” & Cle6patra “original” por uma comunidade interpretativa de Sao Paulo, em meados da década de 20, nao seria aceita por uma comunidade interpretativa da mesma cidade, sessenta anos depois, Vejamos como essas concludes podem ser transferi- das A questéo da traducao de “This is just to say”, de William Carlos Williams, sobre a qual discutimos no capf- tulo anterior. Como o texto foi apresentado em duas “ver- ses”, uma versfo/bilhete e uma versdo/poema, teremos que considerar pelo menos duas situacdes diferentes. Uma traducdo fiel ao texto/bilhete seria, na verdade, fiel ao contexto estabelecido para sua interpretagdo. As conven- des contextuais que deveriam reger essa tradugo foram estabelecidas a partir do momento em que se especifica- ram seu objetivo e circunstincias, isto é, a partir do mo- mento em que estabelecemos que se trataya de um bilhete informal, escrito por um héspede norte-americano a seu anfitriao’ brasileiro. Da mesma forma, a tradugdo do texto/poema seria fiel as convengdes estabelecidas — implicita ou explicita- mente — para sua leitura, levando-se em conta, é claro, que essas convengdes sio mais complexas e apresentam mais varidveis, dependendo da comunidade cultural e da época que as produziram. Assim, nossa tradugao desse, ou de qualquer outro poema, seria fiel, em primeiro lugar, A nossa concepgio de poesia, concepgio essa que deter- minaria, inclusive, a propria decisio de traduzi-lo. _ Imaginemos, por exemplo, uma comunidade interpre- tativa cujas idéias sobre poesia fossem semelhantes a al- guns conceitos cultivados no século pasado. Tal comu- nidade, que certamente prezaria formas rigidas e estereo- tipadas como caracteristica fundamental do texto poético, nem consideraria a possibilidade de traduzir “poetica- mente” “This is just to say” porque nao o veria como um poema. Imaginemos uma outra comunidade interpretativa, cujos pressupostos sobre poesia permitissem “aceitar” o texto de Williams como poema. Suponhamos também que essa comunidade se tivesse interessado particularmente pela organizagao sonora e ritmica de “This is just to say”, considerando, inclusive, ser essa a caracteristica que faz desse texto um poema que merece ser traduzido. Para tal comunidade, uma tradugao fiel ao poema de Williams teria que tentar reproduzir, ou recriar, sua estrutura sonora ¢ ritmica, em detrimento de seu “contetido”, Em outras palavras, nossa tradugao de qualquer texto, postico ou nao, serd fiel nao ao texto “original”, mas Aquilo que consideramos ser 0 texto original, aquilo que consideramos constitui-Io, ou seja, A nossa interpretacdo do texto de partida, que seré, como ja sugerimos, sempre produto daquilo que somos, sentimos e pensamos. Além de ser fiel a leitura que fazemos do texto de partida, nossa tradue&o serd fiel também a nossa propria concepgio de tradugio, Ainda tomando como exemplo “This is just to say”, podemos imaginar uma comunidade interpretativa, para a qual a tradugdo desse texto se jus- tificaria somente se o tradutor tentasse reproduzir o poema “originalmente” escrito por Williams numa cidadezinha do nordeste americano, em meados da década de 30. Tal comunidade, que certamente compartilharia das idéias de Pierre Menard sobre a linguagem e a traducao, tentaria produzir uma tradugao “literal” do poema, sem conside- rar que o mesmo seria lido num contexto e numa época 45 diferentes, Para tal comunidade, a tnica tradug&o possi- vel de plums seria, com bastante probabilidade, “ameixas”, ou, no maximo, “ameixas vermelhas”. Podemos imaginar, ainda, uma outra comunidade interpretativa, para a qual todo texto traduzido devesse, de algum modo, se incor- porar ou se adaptar ao contexto cultural da lingua-alvo. Tal comunidade poderia, por exemplo, considerar “pésse- gos” ou “caquis” opcées melhores ou mais “figis” do que “ameixas”. Além de ser fiel & nossa concepeao de poesia e A nossa concepgao de tradugdo, a tradugéo de um poema deve ser fiel também aos objetivos que se prope. Imagi- nemos, por exemplo, uma palestra sobre a obra de William Carlos Williams, apresentada em portugués para uma pla- téia que nao domina o inglés. O palestrador poderia apre- sentar e analisar 0 poema “This is just to say” através de uma tradugao informal, sem pretender recriar ou recuperar, através dessa tradugdo, o que considera as caracteristicas poéticas do “original”. Outras seriam as preocupacdes e os objetivos de um tradutor — outra seria a “fidelidade” — se 0 mesmo poema tivesse que ser traduzido para inte- grar uma coletinea de poetas modernos de todo o mundo. Contudo, se concluimos que toda traducio é fiel as concepcdes textuais € tedricas da comunidade interpreta~ tiva a que pertence o tradutor e também aos objetivos que se propée, isso nao significa que caem por terra quais- quer critérios para a avaliacao de tradugdes. Inevitavel- mente, como os grupos de jurados dos concursos de fan- tasia que usamos como exemplo, aceitaremos ¢ celebrare- mos aquelas tradugdes que julgamos “figis” as nossas pro- prias concepgSes textuais ¢ tedricas, e rejeitaremos aquelas de cujos pressupostos nao compartilhamos. Assim, seria impossivel que uma tradugdo (ou leitura) de um texto fosse definitiva e unanimemente aceita por todos, em qual- quer época e em qualquer lugar. As tradugdes, como nos € tudo 0 que nos cerca, nfo podem deixar de ser mortais. 5 A teoria na pratica “Aporo”, de Carlos Drummond de Andrade Através da leitura e dos comentarios sobre a tradugdo de um poema de Carlos Drummond de Andrade, vamos tentar ilustrar as conclus6es tedricas desenvolvidas nos seg- mentos anteriores. “Aporo”, publicado em 1945 na coleténea A rosa do povo, € 0 texto escolhido pois, apesar de sua brevidade, pode nos dar um bom exemplo do que seria ler “poetica- mente” um texto, Além disso, como essa leitura & regida Por convengdes que nos permitem uma interpretacéo quase sem limites de todos os elementos que constituem o texto, © exame de sua versio para o inglés (intitulada “Insect”, de autoria de John Nist) poder nos propiciar uma visio agugada dos problemas ¢ dos limites da tradugao em geral. Comecemos pelo “original” de Drummond: Aporo Um inseto cava cava sem alarme perfurando a terra sem achar escape. Rene = —_—_—— 5 Que fazer, exausto, 6 em pais bloqueado, 7 enlace de noite 8 raiz @ minério? 9 Eis que o labirinto 10 (oh razéo, mistério) 11 presto se desata: em verde, sozinha, antieuclidiana, uma orquidea forma-se 1. juando aceita par- ticipar desse projeto, quando aceita 0 desafio de ler “poe- ticamente” um texto, o leitor aceita também — como regra basica desse jogo — que todos os elementos que consti- tuem 0 poema podem adquirir um significado “poético” © contribuir para a construcéo de uma interpretacdo. A leitura de “Aporo” que proponho a seguir se asse~ melha & construcéo de um quebra-cabeca, cuja chave se encontra no titulo. Derivado do grego dporos (“sem pas- sagem”), segundo a maioria dos diciondrios da lingua, 0 substantivo masculino dporo significa: 1) “inseto hime- néptero”, e 2) “problema de dificil solugao”. A esses dois significados € possivel acrescentar-se um terceiro, encon- trado apenas no Diciondrio contempordneo da lingua por- tuguesa, de Caldas Aulete (V. Bibliografia comentada): 4poro pode ser também “um tipo de planta da familia das orquideas, solitéria, geralmente esverdeada”. Além de ser a “chave” que “abre” 0 poema e norteia minha leitura, o titulo “Aporo” também a sintetiza. Assim, os dois primeiros quartetos nos apresentam a conjungao 1 Cf. Obra completa. Organizagio de Afrinio Coutinho. Rio de Janeiro, Aguilar, 1967. p. 154. dos dois primeiros significados apresentados: um inseto que cava (0 “époro”, segundo Caldas Aulete, é um gé- nero de inseto himenéptero da familia dos cavadores) ¢ que encontra nesse cavar um problema de dificil solucio. Nos tercetos, a situaco/Aporo se resolve com a formacio da orquidea/aporo, verde e sozinha *. “Um inseto cava” Vamos tentar construir melhor esse enredo/quebra- -cabeca, O primeiro quarteto, que introduz 0 inseto e 0 seu cavar “sem alarme”, apresenta uma estrutura harmo- niosa. ‘Todos os versos tém o mesmo niimero de silabas ¢ ha simetria na distribuicao de silabas acentuadas: nos versos Ie 3, 0 acento cai na terceira e quinta silabas e, nos versos 2 e 4, as silabas acentuadas sio as primeiras ¢ as quintas. Hé também um esquema regular de rimas (abab), varias assonancias (cava, alarme, a, terra, achar, escape, inseto, sem, perfurando) e alguns sons consonan- tais predominantes, que ecoam por toda a estrofe: um, inseto, sem, perfurando, alarme, terra, escape. Esses ecos de silabas semelhantes, sons e até palavras repetidas, asso- ciados & regularidade do metro e da acentuagao, podem su- gerir a regularidade, a harmonia e a constancia do trabalho paciente do inseto, “Que fazer, exausto, em pais bloqueado?” Qual é a natureza e quais so as circunstincias desse trabalho? © segundo quarteto, na medida em que desen- A leitura de “Aporo” aqui proposta também é 0 tema de um artigo da Autora: Um dporo e suas aporias: reflexées sobre um pocma de Carlos Drummond de Andrade. Traducao e Conwni- cacao; Revista Brasileira de Tradutores, 7, dez. 1985. V. Bibliografia comentada. volve 0 segundo significado de dporo, tenta nos dar uma resposta, embora seja, paradoxalmente, também uma per- gunta. O inseto, que cava “sem alarme” na harmonia da primeira estrofe, enfrenta agora uma situacdo de dificil solugao e se encontra, portanto, numa estrofe menos har- moniosa que, diferentemente da primeira, conta apenas com algumas repetigdes de sons: fazer, exausto, bloquea- do, raiz, pais, minério. © locus da atividade do inseto se define, ainda que de forma ambigua, no verso 6: “em pais bloqueado”. A auséncia de artigo, ou demonstrativo, antes do substantivo pais empresta a0 mesmo um papel duplo. Pensamos num pais/Estado que, por se identificar com uma situacdo difi- cil, sugere 0 Brasil conturbado e autoritério do inicio da década de 40, em que o poema foi escrito. Podemos pen- sar também num pais/lugar néio-determinado: a propria regido da dificuldade e do limite. O adjetivo blogueado também autoriza uma interpretacio pelo menos dupla. Objetivamente, esse adjetivo refere-se a “pais”, ja que, de- vido & auséncia de artigo ou demonstrativo, nao faria sen- tido uma leitura que considerasse “bloqueado” como mo- dificador de “inseto”: “Que fazer, exausto, bloqueado em pais...2”. Entretanto, quando lemos a estrofe, talvez de- vido & posigao de “exausto”, que ressoa em “bloqueado”, © iiltimo parece contaminar também o “inseto”, sugerindo que 0 bloqueio € tanto do pais quanto do inseto exausto. Além disso, descobrimos que essa situagao/aporo 6 cons- tituida do “enlace de noite/raiz e minério”, uma uniao perfeita que se expressa também ao nivel da forma através do enjambement® e da auséncia de virgula entre “noite” e “raiz”, Enjambement: “[...] proceso poético de pér no verso seguinte uma ou mais palayras que completam o sentido do verso anterior Lo” (CE Ferneta, Aurélio Buarque de Holanda. Diciondrio Aurélio.) V. Bibliografia comentada,

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